quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Antes que Acabe

Conheço um razoável quinhão da natureza exuberante de nosso país, que tão poucos brasileiros conhecem. Fui descobrindo aos poucos, ao longo do tempo, seguindo oportunidades que o generoso destino me ofereceu. Assim conheci encantada a Amazônia, as grutas de Bonito - MS, os Lençóis Maranhenses - MA, único deserto com água doce do mundo. No acervo de minhas memórias estão a praia de Jericoacoara – CE, quando recém chegara a luz elétrica e ainda se parecia a um vilarejo de pescadores; a magnitude das Cataratas de Iguaçu; o litoral paradisíaco do nordeste e outros muitos lugares. Em nenhum, porém, vivi uma experiência tão impactante quanto a que vivenciei na até então para mim desconhecida Pirenópolis - GO, a qual fui levada para fazer um curso, em tempos pré-internet.
No único intervalo dos trabalhos, fui de bicicleta visitar as cachoeiras próximas ao hotel. Era um parque ao qual cheguei após 10 minutos de trajeto em estrada de areia e pedras, entre subidas e descidas. O funcionário que me recebeu ofereceu um folheto guia, deu breves informações e disse que eu não encontraria ninguém na mata naquele horário, o que me deixou uma sombra de apreensão. Tão logo adentrei a trilha, porém, fui sendo possuída por um sentimento de intensa alegria, de uma felicidade profunda que invadia minha alma e parecia entrar pelos poros. A felicidade era tanta, tão grande e forte que comecei a rir sozinha. Num primeiro momento fiquei até desconfiada de mim mesma. Estaria enlouquecendo? Que sensação era aquela? Estava vivendo uma fase de percalços antes da viagem, o que tornava ainda mais esquisita tão súbita felicidade. Não usava drogas, não tinha tomado remédio algum e me sentia assim, de repente, tão feliz a ponto de rir sozinha. A estranheza, porém, foi deixada de lado tão logo alcancei a primeira da série de sete cachoeiras. Era a menor, mas o contato com as águas geladas e cristalinas retirou como que por milagre a dor que sentia nas pernas, fruto do esforço de bicicleta. A partir dali, segui descobrindo cada uma das cachoeiras ao longo do caminho, até alcançar a última, a mais alta. Ela surgia em uma clareira e a água caia como se viesse do céu. O sentimento de felicidade foi ainda mais absoluto, pleno e transcendente. Sentia a presença superior, Divina, em tudo que me envolvia naquele momento e precisei agradecer. Senti necessidade de agradecer do fundo da minha alma por estar ali, por toda a Natureza perfeita que estava a minha volta.
Após viver esse momento de júbilo absoluto, em que parecia que o próprio tempo havia parado, retornei radiante. Reencontrei na descida os colegas de curso, quando ainda iniciavam a caminhada. Resolvi refazer o caminho, tão feliz e energizada que estava. Agora, porém, a experiência foi outra. O burburinho das vozes, dos risos, das conversas, pareceu espantar a magia que antes existia. A mim restava apenas comparar as duas experiências, confirmando que algo extraordinário acontecera comigo. Ao retornar da viagem e contar minha vivência, uma amiga me falou que eu tivera uma experiência mística com os seres elementais, os espíritos da natureza. Que a alegria que eu sentira era porque esses seres invisíveis – que eram como crianças - me haviam envolvido. Por mais cética que eu fosse, não havia como não acreditar, tendo vivido o que eu vivera.

 E porque passei a acreditar nos espíritos da Natureza, tenho hoje a alma triste pela catástrofe provocada na região do Rio Doce, mas não quero falar dessa tristeza. Desejo que leiam esta crônica como uma exaltação às maiores riquezas do Brasil e como um convite a que conheçam as maravilhas naturais de nosso país, antes que acabem, destruídas pelo turismo predatório, pela ganância e pela insensatez humanas.
                   (publicada no Jornal Agora - em 28/11/2015)

Entre Saborear e Devorar

Muita gente confunde saborear com devorar. Cena de muitos anos atrás mostra bem a diferença. A história é de um casal hospedado em casa de amigos. Acolhedores, os anfitriões, que tudo faziam para agradar, resolveram oferecer um lanche com a especialidade da anfitriã: torta fria, para maior infelicidade do marido hospedado, que detestava esse tipo de torta. Com verdadeira ojeriza pelo prato, mas não desejando fazer desfeita, o rapaz usou a estratégia de devorar logo e se livrar do problema. Em grandes garfadas, comeu o mais rápido que pode, tentando nem sentir o gosto, como se fora um remédio amargo. Num piscar de olhos pensou ter se visto livre do sofrimento. Lego engano! Não houve nem sequer tempo para respirar seu alívio.  A dona da casa, solícita e gentil, estava atenta a tudo e a todos – como deve estar uma boa anfitriã. Ao perceber o prato tão rapidamente esvaziado imaginou estar agradando: “como gostas de torta fria”! E foi logo repondo mais uma porção, ainda mais generosa que a anterior, para total desespero da educada criatura, que teve que penar com a reprise. Restou ao comensal fazer render a torta, para não sofrer novas repetições. A anfitriã, ao confundir devorar com saborear, acabou nem percebendo o desconforto que causara.
Confusão semelhante parecem fazer as pessoas que, detestando determinada tarefa, a deixam sempre para depois; procrastinam, acumulando ainda maior quantidade do serviço detestado. Um exemplo cotidiano são os que não gostam de lavar louças: deixam para depois um copo, dois copos, um prato, dez pratos... E vão acumulando a mistura de louças sujas; talheres e pratos engordurados se juntam a copos, num empilhamento digno de obra de arte abstrata. Sempre deixando da manhã para a tarde, da tarde para a noite, para o dia seguinte, para depois do dia seguinte, talvez imaginando o dia do nunca. Quem, sendo diferente, tenha o desprazer de conviver, pode pensar que seja mera estratégia para transferir a função. Por vezes até vira uma guerra doméstica. Mas esse tipo de atitude acontece até com quem mora só. A pessoa vai usando todas as louças e talheres. Quando não mais restam copos, passa a beber água em xícaras ou qualquer recipiente no qual se possa colocar água. Faz isto até o dia em que nada mais reste senão louça suja. Aí, como num ataque, coloca mãos à obra e, com profundo desgosto, encara a grande faxina. Mas se não gosta, não seria mais fácil fazer em doses homeopáticas? Não seria mais inteligente resolver o problema logo, cortando o mal pela raiz? Os acumuladores de louça suja parecem discordar ou talvez sejam apenas masoquistas e estejam curtindo saborosamente o sofrimento do martírio auto-induzido.

Divergências à parte, o fato é que o prazer de sentir sabor não combina e até é o oposto da voracidade do devorar, do engolir rápido e inteiro – seja lá o que for: uma comida ou uma situação. Para o que se acha bom e gostoso, o melhor é saborear devagar, desfrutando todas as nuances, prolongando a sensação de prazer. Agora quando a coisa é amarga, tem gosto ruim ou é desagradável, o melhor mesmo é se despachar do problema ou devorar logo, se for o caso. Pode parecer simples, mas muita gente faz exatamente o contrário: devora sem sentir o gosto do que aprecia e gasta a existência saboreando lentamente o que mais detesta. Vá entender a humanidade!
                (publicada no Jornal Agora - em 14/11/2015)

Made in Brazil

Perdi a conta do tempo em que tudo ou quase tudo que se comprava trazia um “made in Brazil” ou a impressão do selo de origem, indicando cidade e estado brasileiro. A vida como me lembro na infância era assim, nacionalista. Coisas estrangeiras eram poucas e restritas às classes de maior poder aquisitivo. Até que surgiram as calças Levis, americanas, um dos primeiros produtos importados de grande sucesso e consumo de massa. As Levis eram muito disputadas e para comprá-las se recorria a um comércio informal, estilo contrabando.  Esse e alguns outros poucos produtos importados, como perfumes, eram oferecidos por pessoas confiáveis, como uma vizinha de porta ou o conhecido carteiro da zona onde morávamos.  Como os traziam era mistério jamais decifrado por minha mente então juvenil, que, aliás, nem pensava sobre esse assunto. Mas isto é passado.
Fomos sendo tragados pela globalização e pelo mundo do livre comércio dominado pela comunista China, numa das grandes ironias desta época. Qualquer coisa que se compre traz o selo chinês, cuja qualidade costuma ser bem duvidosa, para não falar coisa pior. Talvez para disfarçar essa origem, freqüentemente vêm inscritas apenas as iniciais “RPC”, em letras bem pequenas, num lugar de difícil localização. Agora, porém, com a meteórica suba do dólar, a dominação chinesa está ameaçada e, quem sabe, possa se aproveitar a oportunidade para resgatar a sofrida produção nacional. Os governos não parecem estar planejando nada a respeito. Na verdade, eles nunca parecem estar planejando. Como fazer planos se vivem assoberbados com outros esquemas do jogo político? Quem precisa e deve fazer planos somos nós, o heterogêneo eleitorado, que de alto a baixo da escala social sofre os desvarios da política econômica.
De minha parte, está alinhavado o plano e traçadas as linhas estratégicas de ação: vou dar prioridade a tudo o que seja brasileiro e, mais do que isto, tentarei adquirir o que precise em comércio local, resistindo o tanto quanto possa às seduções das compras virtuais. A primeira coisa a observar, em qualquer escolha, será a origem do produto. Como as marcas são globalizadas será preciso buscar a etiqueta ou o registro de origem, pois o que antes era feito por aqui, agora pode ser apenas montado ou embalado, enganando facilmente o consumidor distraído. Quando se olha este detalhe, é de se espantar. Todo tipo de coisa está sendo trazida de fora: de alimentos a eletrodomésticos simples. Alguns itens, como brinquedos, por exemplo, são bem difíceis de serem encontrados nacionais, tal a hegemonia da dominação chinesa.

Não me importarão, porém, as dificuldades: o plano do meu governo está feito. Vou tentar governar minha existência, apesar de todos os pesares. Darei minha minúscula quota de sacrifício para fortalecer a desvalida indústria nacional, para ajudar a manter os comércios locais e o emprego das tantas pessoas que nele trabalham. Disponho-me até a pagar um pouco a mais, como sacrifício pessoal pelo bem coletivo, muito maior e mais valioso do que meus míseros trocados e minha insignificante individualidade. Vou pensar sempre mais longe, refletir sobre a conseqüência de cada uma de minhas escolhas imediatas. Não vou levantar bandeiras, nem propor revolução. Já passei, em muito desta idade. Vou apenas exercer meu modesto direito de governar minhas escolhas. Só e apenas isto.
                  (publicado no Jornal Agora - em 17/10/2015)

Teimosa Esperança

Diante dos fatos, de tudo o que tem sido dito, visto, escrito, gravado e filmado, como alguém ainda pode acreditar no melhor? A situação conspira para o desenho dos mais sombrios presságios. É notícia ruim de todo lado e de variados tipos. A Natureza, reagindo aos maus tratos sofridos, tem dado mostras de sua força e sinais de um porvir ainda mais grave. Quedas de granizo, enchentes e enxurradas deixam de serem fenômenos esporádicos e vão se tornando freqüentes manifestações do clima. Multidões são lançadas ao desabrigo clamando ações de proteção. As ajudas antes destinadas à gente distante, agora são necessárias para vizinhos de porta.   E isso só vai piorar. O cenário político-social completa o quadro com crise de tudo: da falta de dinheiro à falta de juízo e de vergonha. A confusão inspira um caos coletivo e um país à deriva.
Olhando mais adiante, aparecem maiores e mais graves problemas. O drama de refugiados oriundos de vários países; multidões fugindo em desespero a implorar por ajuda humanitária. Fechar os olhos e tapar os ouvidos já não mais é possível. Acreditar em que? Em quem?Como?  Se essas parecerem perguntas sem resposta, então estamos no ponto em que só resta o amparo da esperança, a força da fé capaz de remover a montanha de coisas ruins e afastar os maus agouros.
Esperança é coisa que raramente se tem quando ainda se é jovem e está de bem com a vida. Nessa época a autoconfiança e auto-estima bastam para tocar o barco. Jovens confiam na melhor versão do porvir, cheios de alegria e entusiasmo, plenos de certezas. Quando, porém a existência vai se prolongando, as expectativas dificilmente se cumprem à altura do esperado. É preciso enfrentar decepções, frustrações, dificuldades e problemas. As alternativas vão ficando cada vez mais restritas. Ai, a tal autoconfiança vai se esvaindo, minguando diante das situações vividas. Excluindo os poucos vitoriosos, para quem a vida só sorri e parece tudo dar certo, a grande leva dos demais escreverá uma biografia mediana ou pior que isto.  E por este ser o script mais comum no existir, alimentar esperanças é uma preciosa dádiva que se pode ganhar e aprimorar ao amadurecer. A sabedoria da vida coloca cada coisa a seu tempo, nem antes e nem após o necessário: aos jovens ímpetos e coragem; aos mais idosos, prudência, paciência e esperança. Isso na escala individual, a nível coletivo situações dramáticas e drásticas como as citadas ao início são impostas a crianças, jovens e velhos, atirados a mesma condição de impotência e desamparo.

Nos momentos mais difíceis, quando se perde de vista o horizonte e não se encontra sequer sinal de algum porto seguro, só a esperança pode salvar. Esse sentimento poderoso e insistente é capaz de manter o ânimo, restituir a energia, apesar de tudo e apesar de todas as mais adversas circunstâncias. A teimosa esperança que insiste sempre na possibilidade de uma saída, de um salvador desfecho, ainda que este possa parecer impossível. A teimosa esperança que repete sempre: tudo passa e esse momento ruim também vai passar. A chuva passa, o Sol volta a brilhar e o mundo vai melhorar, um dia vai melhorar. Diante das agudas aflições do momento, para manter a saúde e sobreviver é preciso teimar em manter acesa a chama da esperança.
                  (publicado no Jornal Agora - em 03/10/2015)

Os Estranhos e os Semelhantes

Ainda se ensinam às crianças a temerem estranhos e desconfiarem de quem não conhecem. Atrocidades recentes, porém, tem demonstrado o quanto a ameaça maior à infância pode estar em pessoa próxima, conhecida, e até na intimidade da própria família. Mas, afinal, quem são os tais “estranhos”?
Pela lógica do senso comum, estranhos são mais do que meros desconhecidos. São os que vem de um mundo diferente do nosso, que se trajam e se comportam de outro jeito. Por critérios subjetivos geralmente se refuta como ameaçadores estranhos todos os que se situam em situação econômica muito inferior, em posição social desfavorável. E por serem assim tão diferentes, exóticos, merecem distância, desconfiança e até desprezo.
Já os parecidos conosco, os que nos espelham, despertam confiança e afinidade. Também aqueles nos quais nos desejamos espelhar, por mais diferentes que sejam de nós, contam com sentimentos positivos de afeto. Se estiverem acima, em condição superior, merecem crédito, admiração, respeito e adulação, a despeito de mérito ou caráter, como tanto se vê no universo da idolatria a celebridades e no sucesso dos golpistas bem apresentados.
Outro sinal que demonstra e confirma o modo como as pessoas se escolhem é a expansão dos condomínios fechados, com suas ruas exclusivas e gente de viver semelhante, que se afina ou imagina se afinar por identificação.  Assim se erguem altos muros visíveis e mais algumas barreiras invisíveis, mas intransponíveis, demarcando territórios exclusivos.  De um lado, os que estão “podendo”, os donos do pedaço, de outro os mal-ajambrados em geral, o resto excluído. Resto é palavra que se ajusta como luva às demais pessoas, que não tem condições de morar no condomínio, nem direito de sequer pisar em sua calçada e representam ameaça pelo simples fato de existirem, de serem presenças indesejáveis.
A essência humana, entretanto, transcende aos trajes e as posses. Gente mal vestida é capaz de atitudes de extrema elegância e generosa cortesia. Já pessoas finamente trajadas não raro são protagonistas de maus modos e grosserias escabrosas.  Paradoxalmente, a vida mostra que nos tornamos todos muito semelhantes quando desprovidos dos enfeites e penduricalhos que nos diferenciam. Colocados em condição de igualdade, como nas tragédias, nas situações de graves crises ou colapso social, reencontramos a genuína humanidade que a todos irmana, nos fazendo capazes de atos de nobreza, generosidade e solidariedade. Esses efeitos tem sido muito vistos nas dramáticas cenas de êxodo de multidões em busca de exílio na Europa, em que pese a situação também tenha feito surgir reações de hostilidade, que expressam o lado menos nobre do ser humano.

Esses movimentos populacionais que a tantos desaloja e tantos conflitos geram acenam com a possibilidade de construção de um outro mundo, que exigirá novas referências e novos valores. Não vai sair barato e deverá ser bem doloroso o processo de transição. Mas haveremos de evoluir para o entendimento. Precisamos fazer deste Planeta um lugar em que a diversidade nos enriqueça e que todos os seres se considerem, se tratem e se respeitem como semelhantes, apesar e acima de qualquer estranhamento. Do jeito como a coisa está, certamente não vai ficar. Quem tiver a sorte de sobreviver, há de ver surgir esse novo ciclo.
                             (Publicado no Jornal Agora - em  19/09/2015)

O Suficiente

O senso de medida e a noção de proporção vêm sendo banidos pela conspiração de excessos de todos os gêneros. Exageros de consumo, de lazer; de palavras, de atos; excessos de escândalos de todos os tipos.  Nada parece bastar, nada chega ao suficiente, que poderia dar o alento da satisfação ou de mínima tranqüilidade.
Sobressaltados por constantes e imprevisíveis variações de maré, vamos tocando a vida aos solavancos. Por momentos, inebriados com a ilusão de felicidade vendida pelas propagandas de sorridentes celebridades.  Na fase do compra-compra, devoramos a vida sofregamente, gastamos o que ainda não temos, embevecidos com o crédito fácil do viva hoje e pague a perder de suas vistas. Quando vira a maré chegam as duras penas da imprevidência e o caro preço das fantasias de consumo, que custam os olhos da cara. E porque a vida vem sendo tocada assim, refém dos apelos de consumo, a maioria das pessoas está hoje à deriva, refém da atual crise. Pouca, pouquíssima gente tem reservas financeiras ou mesmo de crédito para se amparar por algum período, ainda que seja o curso de apenas alguns dias. A lufa-lufa do salve-se quem puder está instaurada e a agonia por sobrevivência está espalhada por todos os cantos. Por ora, é preciso socorrer a quem mais precise, ajudar a quem possamos, mas além disto, parece importante fazer do presente caos uma oportunidade de reflexão e aprendizado.
Um ponto pacífico e, penso eu, de consenso: não dá para confiar em políticos e suas políticas. Eles nos apresentam o paraíso apenas nas milionárias campanhas. Eleitos, tiram o manto da bondade e se revestem de incompetência, tirania e arrogância. Renovar o plantel político com gente de melhor quilate é possível, mas vai demandar tempo. A revolução que podemos produzir, de modo mais seguro e imediato, é a revolução interna, pessoal.
 Precisamos balizar esse mar de insolvência para vencer a deriva, governada pelo capricho dos ventos e das tempestades. Sair do círculo vicioso das necessidades inventadas para o círculo virtuoso de uma vida auto-sustentável é um caminho seguro e possível. Para isso não é preciso recorrer à complexa orientação de caros especialistas e nem fazer um curso on-line, apenas pensar, refletir e decidir orientar a própria existência para uma vida mais simples.

 Podemos viver com menos e ser mais felizes assim. Para isso, não há receitas mágicas, mas critérios básicos a serem definidos de acordo com a característica de cada pessoa. Essa é a base da corrente de pensamento crítico e consumo consciente chamada de suficientismo, defendida por pessoas que cansaram de comprar o que não precisavam com o dinheiro que não possuíam. A atitude de buscar e viver apenas com o suficiente rompe com os costumes vigentes e livra a existência dos grilhões das idéias de êxito, sucesso, luxo, popularidade e outras tantas frivolidades. A vida fica mais leve, tranqüila e, por conseqüência, feliz.  Dispensadas todas as ansiedades desnecessárias, vivendo apenas com o suficiente conseguimos saborear cada hora e cada dia como quem sorve a taça de preciosa bebida. Afinal, a gente leva da vida a vida que a gente leva, como canta Leila Pinheiro, e para isso o suficiente é o bastante, nada aquém e nada além disto.
             (Publicado no Jornal Agora  - em 05/09/2015)

O Plano B

Por mais otimista que se seja, por mais que tudo indique êxito no que se pretenda, é bom ter um plano B. É prudente que se pense em algum caminho alternativo, para o caso de imprevistos. Convenhamos, porém, que prudência cheira coisa velha, arcaica. Algo completamente fora de uso, por desnecessário, nestes tempos instantâneos.
As transformações tecnológicas impulsionaram drásticas mudanças sociais que aconteceram de tal modo rápidas que nem cederam espaço a reflexões. Fomos todos engolidos pela modernidade. O mundo movido por mil facilidades e mínimo esforço veio envolto numa aura de encanto e confiança. Porém, por uma dessas tantas ironias da vida, quando todas as apostas estavam num mundo promissor de ilimitados confortos, veio o revés, a crise. A vida, com suas infinitas facilidades, ficou cada vez mais cara. Para viver agora se precisa mais do que abrigo, pão e água. É preciso internet rápida e TV a cabo com mil canais; se precisa disso e mais de tantas outras coisas tornadas indispensáveis.  E tudo, absolutamente tudo, custa dinheiro, cada vez mais dinheiro. E dinheiro é o que está faltando aos governos e, por conseqüência, ao contribuinte – que os sustentam.
E se falta dinheiro, que paga todas as coisas, principalmente as mais caras, é preciso buscar alternativas. Ah, cheguei ao plano B, titulo deste artigo, e que na verdade precisa ser uma sucessão alfabética de planos: B, C, D e assim por diante. Afinal de contas, os problemas e suas conseqüências virão num turbilhão de etapas. O governo parcela salários e não paga fornecedores, o “povo” (nós aqui), passa a sofrer restrições de serviços e de pagamentos e precisa inventar alternativas.
A reação começa pelo plano B, vão-se os anéis e ficam os dedos: cortam-se gastos desnecessários, mas que eram habituais.  Como já se havia diminuído consumo de luz e água, sem com isto economizar tostão algum devido ao aumento de tarifas, é preciso avançar na poda econômica. Corta-se lazer, tv a cabo,  restaurantes, cinemas  – e estes empreendimentos entram em colapso, aumentando a crise de emprego, de renda e de impostos. Mas como isso não representa muita coisa no orçamento doméstico, logo é preciso inventar o plano C: agora o corte atinge gastos com vestuário, utensílios domésticos, etc. Mas o cerco aperta, o salário atrasa e as contas se acumulam. É preciso seguir cortando, avançar e inventar o plano D: reduzir despesas de comida, de combustível. Ah, chegamos ao carro, comprado e sustentado a caro custo e que agora precisa ficar na garagem: gasolina caríssima, IPVA em atraso... Estamos quase voltando a pão e água, mas não chegamos ainda no Pet da casa, que com suas tantas necessidades nutricionais consome em ração e tratos mais do que os demais membros da família. Este, por questões afetivas, por mais oneroso que seja ao orçamento, será o último elemento a sofrer cortes de consumo. Seria perverso demais que ele sofresse privações por questões econômico-financeiras que o bichinho não tem a menor noção de existirem. Os Pets só serão atingidos quando o alfabeto de nossos planos estiver se esgotando.

O caminho de pedras e privações que se anuncia está só começando. Por ora é falta de dinheiro e atinge apenas o que com ele se compra. Infelizmente, tudo indica um porvir ainda mais difícil. Portando, é bom ir treinando a técnica do “plano B, C, D...” . 
                    (publicada no Jornal Agora - em 22/08/2015)

O Indispensável Pai

Pai? Para que? Assim parecem pensar algumas mulheres que decidiram importar sêmen humano, escolhendo-o com o critério da melhor genética, segundo a lógica estética do “alto, loiro e de olhos azuis”.  O pensamento é um tanto semelhante ao aprimoramento genético desejado por Hitler, apenas aplicado à escolha individual. Também remete ao mundo criado pela reprodução da espécie de forma selecionada e não sexual, retratado magistralmente por Aldous Huxley em seu livro Admirável Mundo Novo (ano 1932). O homem, o pai, entra nessa história apenas como reprodutor qualificado, idêntico ao que já se faz com a classe animal, sem dilemas éticos, morais ou emocionais. O filho sob encomenda prescinde da presença paterna, tornada opcional, mero detalhe.  A mulher se alforriou, literalmente, da necessidade de parceiro para engravidar. Além da perda de importância do pai no ato de gerar filhos, há hoje o desprestígio da função simbólica da paternidade, que segue outro nexo, independente da biologia e da genética
Talvez por uma conspiração de fatores como a ascensão do feminismo, a liberação da mulher com radical mudança no modo de viver e na organização das famílias. Talvez pelas transformações produzidas pelas novas tecnologias, dominadas pelos jovens da geração Y, nascidos para mandar e não obedecer, desde a saída das fraldas. Talvez por tudo isso e mais alguns outros motivos, o pai e a autoridade de sua palavra parecem proscritos do cenário familiar. É neste ponto que a coisa se torna mais complexa e problemática.
Enquanto a mulher vai sendo talhada desde as brincadeiras de infância para a maternidade e, ainda que assim não o seja, pode amadurecer seu aprendizado ao longo das transformações da gestação, o pai só irá entrar na história psicológica do filho bem mais tarde.  Nas fases iniciais o pai pode ser um coadjuvante das funções da mãe. Valioso se for presente, solidário e amoroso nesse momento, mas seu papel mais importante só virá mais adiante. Dele é a função de estabelecer limites, os tantos “nãos” necessários, as frustrações fundamentais e também o estímulo à superação de desafios. Pode a mulher acumular as funções maternas e paternas, por certo, porém a vida nos mostra o quanto é difícil manter este equilíbrio no duplo papel parental. Ou a mulher fracassa no seu papel de pai ou se atrapalha bastante com as funções maternas. Excessos ou prolongamento da função materna fez surgir a “geração canguru”: adultos que resistem em alçar autonomia e assumir responsabilidades, para não perderem roupas lavadas, comida e casa de graça.
Segundo termos psicanalíticos, o pai representa a Lei e a Castração, fundamentais para que o filho possa romper a proteção dos braços maternos e ganhar o mundo com as próprias pernas. Quando avança a idade da prole e seu desenvolvimento evolui, a cena familiar vai precisando cada vez mais do protagonista paterno. Há que se ter força para segurar birras de pequenos pirralhos, mas é preciso braço forte, pulso firme e autoridade moral para lidar com arroubos adolescentes ou com os excessos dos jovens adultos. A força masculina aparece como algo tão fundamental que sua ausência faz marcas profundas e pode ter conseqüências trágicas como a criminalidade e a violência.

Neste domingo, milhões de pessoas não terão a quem homenagear, beijar ou mesmo apenas lembrar, pois são os filhos de pais desconhecidos, que arrastam pela vida a fora a certidão de nascimento incompleta e uma falta em ferida aberta ou inesquecível cicatriz. O filme “Nada sobre meu Pai”, da cineasta Susanna Lira e o livro “Em Nome da Mãe – o não reconhecimento Paterno no Brasil”, da filósofa e socióloga Ana Liese, são sugestões para quem queira saber mais sobre o quanto a presença de um pai é indispensável.
             (publicada Jornal Agora - em 08/08/2015)

A Culpa é dos Neurônios Espelho

   Há não muito tempo, por obra de acaso em meio a um estudo, neurocientistas da Universidade de Parma (Itália) descobriram os neurônios-espelho.   O sistema desses neurônios é ativado pelo simples fato de se ver determinada ação, reagindo e acionando a área cerebral correspondente, como se estivesse fazendo a mesma coisa.  Estudados pelos mais modernos métodos de mapeamento cerebral, hoje se sabe que há neurônios espelho em várias áreas do córtex e que eles estão envolvidos em atividades importantes como o desenvolvimento da linguagem, a compreensão dos gestos lingüísticos e a compreensão da intenção da ação que visualizam.  Juntamente com outros grupos de neurônios, eles são responsáveis pela empatia, que é a capacidade de conseguir entender e sentir emocionalmente o sentimento de outra pessoa. Altruísmo, generosidade, solidariedade e outras nobres ações humanas dependem dessa capacidade de empatia, que se há uns falta, afortunadamente, outros tem de sobra.
Patologias graves, como psicoses e autismo, estão associadas a falhas severas no sistema dos neurônios espelho levando a profundas dificuldades de compreender emocionalmente a ação das outras pessoas. Há pessoas, entretanto, nas quais a falha do sistema não chega a nível psicótico, mas provoca dificuldades no convívio interpessoal por sua frieza emocional ou indiferença moral. É o caso dos golpistas que conseguem com naturalidade envolver e ludibriar outras pessoas por não sentirem mal estar pelos danos que estão provocando. Mas também é o caso de pessoas que apenas não conseguem entender sentimentos alheios: os imprudentes verbais, as pessoas inconvenientes, egoístas, egocêntricas e outros tipos humanos que por aí circulam sem carimbo de patologia, mas provocando danos a uns e outros.  Culpa da falha de seus neurônios.
Saindo da patologia e adentrando ao social no qual estamos todos inseridos, a neurociência poderia oferecer revolucionárias alternativas à sociedade. Sabendo-se, como hoje se sabe, como o cérebro é capaz de reagir e repetir a ação do outro, espelhando-a, não seria o caso de se repensar a forma como se aglutinam as pessoas?
Se juntarmos pessoas de má índole com gente ainda pior, o que poderemos esperar? Obviamente, a maldade se potencializará pelo convívio com pessoas semelhantes. Exemplo disso é o modelo medieval de genérico encarceramento de criminosos que fracassa na função corretiva e mais ainda no objetivo pedagógico. É um resultado óbvio diante de um sistema estruturado em avesso ao bom funcionamento da mente e do comportamento humano. Não dá bons resultados e nem poderia se esperar que desse.

Pela forma como funciona nossa mente e pelas conseqüências sociais da ação dos neurônios espelho, também não deveria causar espanto que as pessoas se tornem tão iguais quando afinem o convívio, como acontece tanto com presidiários como com nossos políticos. Eleitos para nos representarem, deixam de espelhar nossos anseios tão logo mergulham nas confortáveis águas do poder. Literalmente exilados da vida cotidiana normal, inseridos em ambientes “diferenciados”, laureados por privilégios de todos os gêneros, as “excelências” adquirem não apenas novos trajes, mas novos modos de ser e de pensar. É a ação dos neurônios espelho, reagindo apenas ao que aos olhos vêem e não enxergando o que o coração não sente. Gentileza gera gentileza; esperteza gera esperteza... Culpa dos neurônios espelho.
                           (publicada Jornal Agora - em 25/07/2015)

A Grande Herança

Há quem sonhe encontrar o tesouro da vida guardado em dourado baú deixado por algum ancestral ou passe sonhando receber o espólio de um parente próximo que, imaginam, seja muito rico. Normalmente, essas são situações enganosas: ou o dinheiro nunca chega, ou nem é tanto e ainda precisa ser dividido por mais gente. Há outros que dedicam sua efêmera passagem a amealhar patrimônio. Juntam muitos bens para deixar amparada a existência de sua descendência.  Esse pensamento talvez explique a ganância, a usura e outras atitudes doentias relacionadas ao dinheiro.  Só a necessidade de viver várias vidas – através de outras pessoas – justifica juntar desmesuradas fortunas.
As heranças, via de regra, trazem problemas, pelo menos no que trata de bens materiais. Riqueza que cai assim do céu, vinda em decorrência da morte de outra pessoa, parece ser pesada demais. Há um sentimento de culpa inerente ao recebido, assim diz a Psicanálise. O patrimônio herdado queima nas mãos, precisa ser logo vendido, trocado, pulverizado em coisas passageiras. Daí uma frase antiga, mas sempre atual: pai rico, filho nobre, neto pobre. Poucos são os herdeiros que valorizam e preservam o que recebem, salvo se o espólio material vier acompanhado de um baú de muitas boas memórias e sábios ensinamentos, como acontece em gerações sucessivas que tocam e aprimoram negócios familiares.  Essas são abençoadas pela transmissão de ideais de vida, de valorização do trabalho e da família, algo freqüente na cultura italiana e alemã.
A grande herança, entretanto, é imune a impostos, a cobiça, a ódios, a crimes e todos a recebem, embora a maioria nem se dê conta. Todos recebemos ao nascer uma bagagem genética, uma coleção de genes herdados de pai e mãe e de seus ancestrais.  Essa cota que a cada um cabe é única, como cada filho é único, mesmo os que sejam gêmeos. Nesta valiosa bagagem podemos ser aquinhoados com fatores de proteção a algumas doenças graves, para nossa maior sorte, ou ao contrário poderemos vir marcados com a tendência a sofrer certos agravos de saúde. Por conta dela seremos mais ou menos belos, inteligentes, altos, etc. Também podemos descobrir alguns talentos inatos, reconhecidos nos parentes diretos ou vindos de gerações muito anteriores.  Entretanto, qualquer que seja a carga genética que nos tenha sido atribuída, ela não é um destino: poderemos reverter tendências negativas, do mesmo modo como poderemos não aproveitar as habilidades geneticamente recebidas.  Todo esse capital inato da herança genética é feito por uma transmissão involuntária, resultado de combinação de fatores aparentemente aleatórios que a uns protege e a outros ameaça.
Além da saúde, inteligência ou formosura que nos tenham sido destinadas pela genética, a maior de todas as fortunas que poderemos herdar só pode vir pela via da transmissão, pelo ensinamento, pelo exemplo, pelo modelo. Essa realmente é a grande herança, a mais valiosa e a única que podemos voluntariamente receber dos ancestrais ou deixar aos descendentes.

Escrevo esta crônica em grata homenagem a minha mãe, Iara, que completará 90 anos nos próximos dias. Não herdei sua beleza e nem seus olhos azuis, mas da poetisa recebi certa facilidade com as letras, grande legado de ensinamentos de vida e, quiçá, a longevidade?
  (publicada no Jornal Agora - em 11/07/2015)

Guardiões de Sementes

Estive na terça-feira passada na feira de agricultura orgânica, ali ao lado do Mercado Público Municipal. Meia dúzia de bancas dividia o pequeno lugar, cercadas por uns tantos interessados. Era a inauguração de um novo espaço, verdadeiro oásis oferecendo a oportunidade de se encontrar alimento realmente saudável em nossa cidade. Comparada à fantástica feira da Redenção, em Porto Alegre, poderia parecer pouco, mas soaria assim apenas a olhos pouco observadores. A iniciativa é emblemática, representa uma grande esperança para quem busca uma vida plenamente saudável e saiba que o corpo é feito exclusivamente do que é alimentado. Chega num momento em que são divulgadas notícias ainda mais assustadoras sobre a quantidade e a toxicidade dos agrotóxicos que estão sendo aplicados nas lavouras e, por conseqüência, chegando a nossas mesas.
Legumes, verduras, mudas, ervas de chá e sementes são oferecidas na feira orgânica por gente de ânimo sereno e aparência feliz. Há um orgulho singelo, mas profundo, nas pessoas que conseguem resistir aos apelos da produção em grande escala, fugir das sementes transgênicas, dos adubos químicos e dos agrotóxicos.  O orgulho desse produtor não tem peito estofado e nem olho gordo nos lucros. É um sentimento simples e genuíno, semelhante ao que se tem com os próprios filhos.  As “crias” da agricultura orgânica não tem a formosura e nem as dimensões dos frutos geneticamente modificados, feitos para impressionarem pela boa cara e grande tamanho.  O que importa na agricultura orgânica é produzir um alimento isento de ameaças químicas e de transmutações genéticas, apenas isto.
As bancas encantam pelos produtos e pelo simpático atendimento. A mais preciosa para mim foi a que apresentava as sementes crioulas, que não estavam à venda, mas alimentavam a alma com verdadeira aula sobre o assunto. Ali estavam  variadas e pouco conhecidas espécies de sementes de abóboras, milhos e feijões. Variedades quase extintas que estão sendo recuperadas pelos guardiões de sementes, pessoas que tem a nobre tarefa de preservar e redistribuir espécies cada vez mais raras. Que valiosas são essas pessoas capazes de devotarem a vida a salvar de extinção alimentos, desenvolvendo sua tarefa no anonimato, sem receber para isto paga, incentivo ou reconhecimento. Fazem pelo valor que dão ao patrimônio genético das sementes, independente da indiferença que a maioria das pessoas atribua ao assunto.  Silenciosa e pacientemente, garimpam exemplares de sementes raras, catalogam, guardam protegidamente, formando um precioso banco de sementes. Depois redistribuem a produtores realmente interessados e comprometidos em semear as preciosas sementes crioulas. Fazem isto através do sistema de trocas, fortalecendo a diversidade genética das espécies locais. São exemplos de devoção ao trabalho, de amor à natureza e à humanidade. Parecem pertencer a um universo paralelo no qual continua prevalecendo o que realmente é mais importante.

Num mundo balizado pela ganância, pela ostentação econômica, pela insaciável fome de lucro, os guardiões de sementes são verdadeiros anjos da guarda da agricultura livre, sustentável e autônoma. Mereceriam ser chamados de Guardiões da Humanidade e reverenciados como tal.
 (publicada Jornal Agora -em 27/06/2015)

Lindo Dia

Após mais uma sequência de dias chuvosos, finalmente voltou a brilhar o sol em nossas vidas. Pelo menos esta é a previsão. Escrevo na quarta-feira o artigo a ser publicado no final de semana, ancorando minhas palavras na previsão do tempo. Portanto, creio eu que a chuva tenha passado e estejamos vivendo a alegria de ver o sol brilhar no céu.
A mesma chuva que rega plantas e irriga colheitas, inunda ruas, trás transtornos e por vezes grandes problemas. Na medida em que se prolonga o período de chuva, vai proporcionalmente aumentando as dificuldades a serem enfrentadas. Difícil, senão impossível, manter intacta a rotina e vencer os planos traçados. É preciso estar muito, mas muito animado, para permanecer indiferente a um prolongado período de chuvas. As roupas vão ficando encharcadas, se acumulando sem que se possa lavar, as paredes de casa vertem lágrimas de umidade. Rostos franzidos circulam agoniados pelas calçadas. Os carros fluem ainda mais apressados, num ritmo estressante. Tudo muda quando está chovendo, a cidade parece ficar triste.
Porém, não é só a chuva que entristece. Alterações de temperatura e principalmente da luminosidade do dia influenciam o ânimo das pessoas. Não há como ser indiferente, basta que se observem quantos se queixam do frio, da chuva, do vento.  Não é coisa subjetiva, meramente psicológica, mas algo orgânico, físico. A questão é que o corpo humano é regulado por hormônios, dentre eles a Melatonina, que regula o sono e é produzida no escuro, e a Serotonina, neurotransmissor que regula o humor, a energia e o apetite e que aumenta quando estamos expostos à luz brilhante. Os tempos sombrios do inverno produzem aumento de melatonina e redução da serotonina, provocando alterando os padrões de apetite, de sono e de humor. Por isso, e não por falta de capricho ou disciplina, salvas as exceções, todos sentimos necessidade de mudar a dieta, o ritmo de exercícios, o tempo de sono.
Algumas pessoas, porém, são ainda mais vulneráveis e chegam a sofrer da chamada depressão sazonal ou depressão de inverno, contrariando os cientistas que consideram que no Brasil não ocorreria tal transtorno, por ser um país tropical. Tropical? Nós, aqui ao pé do país, estamos muito longe da linha do Equador.  Por estas bandas açoitadas pelo Minuano, com frio de renguiar cusco, sofremos as agruras das mudanças do clima, dos longos períodos de céu cinzento. Temos muito bem definidas as quatro estações do ano, diferente das demais regiões do país. Mudam o cenário e o modo de nosso viver e algumas pessoas chegam a adoecer e se deprimir com isso.
Mas não estou aqui para dar força ao desânimo. Ao contrário, escrevo hoje para lembrar os vizinhos uruguaios, que saúdam com alegria o céu azul e os dias de Sol. Quando lá estou ouço com freqüência: “que lindo dia!”, saudação que a mim alegra e anima. Nossos hermanos, que estão ainda mais ao Sul, valorizam os dias iluminados, talvez por lhes serem ainda mais raros dado o rigor de seu inverno. Entre as tantas coisas que me encantam no Uruguai, essa valorização da beleza do dia é algo precioso e sábio. Vale copiar a receita. No inverno, lagartear o quanto se possa, aproveitando cada nesga de sol, incentivando a produção de Serotonina e regulando a melatonina, sempre agradecendo com um elogio: “que lindo dia!” 
     (publicada Jornal Agora - em 13/06/2015)

Meu pedacinho de Mundo

As curtidas e não curtidas do Facebook estabelecem o pedaço de mundo de nossa preferência, o que gostamos de ver e o que não nos interessa saber. Bem-me-quer, mal-me-quer; entre curtidas e não curtidas vai sendo segregado o joio do trigo. É usando esta informação que o algoritmo do site filtra os conteúdos a serem apresentados nas páginas que, distraídos, visualizamos. O Facebook inclusive oculta atualizações de amigos com quem interagimos pouco – e dessa forma aprofunda a distância com esses amigos.
A ordem das pesquisas na internet é estabelecida também com base em concordâncias ou discrepâncias, priorizando páginas coerentes com pontos de vista que já temos, banindo o que se contraponha, conspirando para estreitar  e enrijecer nosso horizonte mental. Criamos uma bolha ideológica em torno de nosso umbigo. E, pior, muitos de nós acreditam que o Mundo todo, quiçá o Universo, está representado nas páginas da internet que visualizam.
A galáxia da internet está enviesando nosso olhar, restringindo as veredas que trilhamos. É fácil observar essa intervenção quando, por exemplo, se faz uma pesquisa para compra de determinado item. A gente pesquisa, escolhe o item, compra e depois por longo tempo continua a ser bombardeado por publicidade sobre dito objeto. O mesmo acontece no caso de outras escolhas, como no site do Netflix. Se um dia você viu dois ou três filmes de ação, o algoritmo entende que é disso que você gosta, só disso. Assim, a página só vai indicar esse gênero ou gêneros semelhantes. Os milhões de páginas que se apresentam no buscador do Google estão ordenados por esse mesmo critério arbitrário e é preciso saber pesquisar para encontrar os conteúdos considerados “irrelevantes” pelo árbitro lógico-matemático do site.
 No entanto, não seja paranóico de pensar que há seres de carne e osso tramando nossas escolhas. Não há pessoas ocupadas conosco, pelo menos não diretamente: são algoritmos que programam e retroalimentam as respostas do computador. Estamos nos tornando reféns dessas equações complexas que ditam a ordem e os conteúdos que serão apresentados e os que serão suprimidos de nossa rede de informação. Só “cai” na nossa rede o que eles, os algoritmos, determinaram ser relevantes para nós, a partir do que nós, inadvertidamente, escolhemos. Vale dizer, portanto, que somos co-responsáveis pelo pedacinho de mundo no qual nos encarceramos. Não por acaso, mas por conseqüência do modo como é balizado o oceano virtual na qual cotidianamente navegamos, parece estar crescendo a intolerância a pensamentos e comportamentos divergentes.  As pessoas estão se aglutinando em guetos ideológicos, buscando apenas o que reflete e reverbera as próprias idéias, banindo quem pense diferente, mesmo que sejam pessoas próximas no mundo real.
Pensa diferente do que alguém postou? Publique sua divergência, exponha contrapontos e se prepare para as pedradas. Virá chumbo grosso e tiro amigo por todos os lados. Saiba que poderá perder amigos de longa data, romper com vizinhos de porta e ser banido até por familiares amados. A internet deveria vir com tarjas de advertência: Use com moderação. Os conteúdos publicados não refletem o pensamento de toda humanidade e podem ser explosivos se entrarem em contato com pessoas que pensem diferente.

           (publicada Jornal Agora - em 30/05/2015)

O Salvador Raciocínio Lógico

Parece que falta raciocínio lógico e inteligência matemática a essa gente que pilota o país. Pela rota que vem sendo traçada não aparenta haver a mínima noção de um plano de vôo.  Na maior farra, jogam com os números, com os preços, com os aumentos. Como podem estabelecer valores sem se debruçarem sobre uma planilha de custos? Como?  A resposta é tão simples quanto fácil. Lá de onde nos olham, sem nos enxergarem, eles lidam apenas com elementos da dita macro-economia, não que entendam muito deste ramo especializado da Economia. A questão é que só tratam de milhões, bilhões. Diante de tais cifras as pessoas e as vidas humanas se apequenam, seus dramas e suas tragédias se tornam coisa minúscula, mero detalhe, desconsiderado nas decisões que tomam e no resultado das vultosas somas com que lidam. Eles – os que nos governam – simplesmente não pensam nisto. Nem consciente, nem inconscientemente refletem, tão ocupados que estão com as tantas lidas do poder, entre trajes e solenidades.
Essa falta de raciocínio é bem plausível, afinal a maioria quase absoluta dos que ascendem aos mais altos postos de governo são muito versados em outros tipos de habilidades. Dotados de grande inteligência interpessoal, conseguem captar desejos e carências alheias e com essa facilidade seduzem eleitores com promessas, receita de sucesso na seara política. Alguns poucos possuem alta inteligência lingüística, hábeis na arte de iludir com as palavras, mas mesmo estes se mostram torpes nas contas com números. Ou não sabem ou fingem não saber.
Pelo que agora vamos descobrindo, a sangria do país vem sendo praticada a várias mãos, a golpes de caneta, entre papéis e assinaturas. É de se pensar até que no meio da papelada surjam personagens que realmente tenham assinado sem ler ou lido sem entender. Isso é bem plausível, afinal, quem de nós pode dizer que jamais assinou papéis sem ler? Estes personagens, no entanto, só serão autênticos se a eles não estiver associada alguma vantagem. Do contrário se juntarão aos tantos que juram desconhecer enormes depósitos feitos em suas próprias contas bancárias e não se preocupam em explicar sua injustificável riqueza.
O fato que aqui quero refletir é que o raciocínio lógico-matemático, coerente e racional tem estado ausente da gestão política e econômica, em todas as instâncias deste enorme país, do mais miúdo dos municípios até a sede da capital federal. Parece que ninguém vem fazendo as contas e olhando os números, a não ser para puxar a brasa para sua sardinha. Essa atitude, infelizmente não é novidade, basta lembrar o maior confisco da economia brasileira na história recente. Há 25 anos, o governo confiscava todo o dinheiro das contas bancárias do país, deixando apenas Cr$ 50.000,00, equivalente a pouco mais de treze salários mínimos da época. Passou-se um tempo até que a ministra da economia de então confessasse que o valor deixado nas contas não havia sido fundamentado em cálculos; fora escolhido aleatoriamente, sem razão alguma. E até hoje os processos decisórios públicos continuam acontecendo assim aleatórios, visando interesses imediatos, indiferentes as mais sérias conseqüências coletivas. Está faltando ética, compromisso social, mas também raciocínio lógico-matemático nas decisões dos governos.

Por tudo que já vivemos e ainda estamos vivendo, neste inicio de ano letivo é pertinente fazer um pedido a pais e professores. Por favor, por amor ao futuro das novas gerações, além de cultivarem valores éticos, estimulem o desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático de nossas crianças. Quem sabe no futuro possamos ter lideranças mais coerentes, sensatas e capazes de acertarem as contas e construirem um Brasil justo e decente.
      (publicada Jornal Agora - em 07/03/2015)

Trabalhar é Preciso

Está inscrito no nosso DNA: precisamos trabalhar. Para o bem da saúde e aprimoramento da mente precisamos trabalhar. Os músculos e o cérebro foram programados para o movimento, necessitam de exercício para se manterem sadios. É de tal modo, que mesmo quando chega o momento de parar de trabalhar, a sonhada ou temida aposentadoria, se descobre que para sobreviver é preciso buscar atividades alternativas. E lá se vai a criatura, toda faceira ou completamente contrariada, fazer força e puxar ferros numa academia. A luta continua, apenas muda a briga que passa a ter como objetivo manter os músculos e as forças. Alforriados de bater ponto no emprego, o serviço agora é fazer caminhadas, andar de bicicleta ou se dedicar a qualquer coisa para gastar energia e manter ativo o sistema corporal, mantendo também a cabeça ocupada.  Se parar as atividades e ficar da cama para a poltrona alguma doença é resultado certo. Decididamente, não fomos planejados para o ócio estático.
Trabalhar faz parte natural da vida. No dia 1º de maio se celebra o trabalho e as conquistas do trabalhador. Infelizmente, o trabalho como forma de sobreviver está cada vez menos valorizado. O poder do dinheiro, a força do capital está dizimando os ganhos de quem honestamente labuta.  Esse é um fenômeno global, mas a desqualificação por aqui nasceu antes, remonta desde uma colonização feita às custas do sofrimento da escravização de negros e da insubordinação dos índios e foi se perpetuando, mudando apenas a forma de apresentação. Foram quatro séculos de escravatura e ainda hoje se arrastam marcas desse passado sombrio. Como um monstro que revive depois das cinzas, sistemas escravagistas continuam a assombrar muitas vidas em nosso país, com condições de trabalho indignas e jornadas estafantes.
Evoluímos mas continuamos a arrastar as pesadas correntes da desigualdade principalmente no campo do trabalho. Marcados com a sina de ser o país da esperteza, do mínimo esforço e do máximo resultado, chegamos a este 1º de maio sem ter o que comemorar, sem o alento de alguma boa notícia. Reclamações ecoam por todos os lados: da desvalorização do dinheiro, da crescente inflação e desemprego, dos abusivos aumentos de impostos, das ameaças de falta de pagamento de aposentadorias.  E nós, os que têm vozes para bradar ainda estamos de algum modo protegidos pelo sistema e suas leis, nem nos damos conta de tudo o que acontece aos mais desfavorecidos, àqueles que nem vozes têm para falar.
Fortes conglomerados empresariais e requintadas grifes famosas se apropriam de mão de obra em condições de escravidão, se utilizam dos serviços de pessoas que trabalham em condições subumanas. Muitas vidas são transformadas em barata e descartável mão de obra. Paradoxo desse tempo de tecnologia de ponta, mas acumulação de riqueza e aprofundamento das desigualdades sem precedentes.

Nesse nebuloso cenário é difícil, mas indispensável resgatar o valor do trabalho. A profissão nos define como adultos, cola a nossa personalidade, ao nosso nome, a nossa história. Sem seu trabalho, o homem não tem honra. E sem a sua honra, se mata, não dá para ser feliz, como dizia o sábio Gonzaguinha.  Portanto, apesar de todas as circunstâncias: Viva o trabalho!
                  (publicada  Jornal Agora - em 02/05/2015)

Promiscuidade Hospitalar

Dona Bárbara, em toda sua conformada humildade, coberta de paciência, aguardava que a chamassem para atendimento. Mandaram que esperasse e ela se postou a esperar e esperar, por um dia e uma noite, inteiros. Quarou sua espera sem comer, sem beber e sem saber o motivo de suas dores. Só no dia seguinte foi descoberta por uma enfermeira mais atenta. Atendida, ainda permaneceu em observação no corredor do hospital até o início da noite. Quando foi liberada, precisei conter a vontade de pedir aos demais presentes uma salva de palmas pela libertação de Dona Bárbara, que finalmente iria para o conforto de sua casa.
Aqui, num hospital público que se destina a ensinar, estou no corredor dos desvalidos, ouvindo conversas de pacientes e outros acompanhantes enfileirados em macas e cadeiras. É o corredor-enfermaria, habitado por leitos de enfermos de todos os gêneros e com variados diagnósticos ou desprovidos até disto.  Apesar de ocupado dia e noite, o local não perdeu sua função circulatória. Passa gente agoniada em busca de alguma solução para seu sofrimento, inclusive assustadas crianças, de olhos arregalados diante de tantos doentes acamados. Enfermeiras e auxiliares circulam apressadas, sempre atribuladas, cruzando com alegres jovens de aventais brancos e estetoscópios no pescoço. Estes têm olhar de paisagem, parecem indiferentes ao cenário e aos sofridos personagens do caminho.
Vez ou outra, surge pequeno grupo de aspirantes a doutor, que se detém num leito ou noutro e faz a anamnese do paciente. O grupo de pé e o paciente acamado junto ao chão, espichando o pescoço e os ouvidos para ver e ouvir o que lhe é dito. Como a conversa é pública e a todos notória, fica-se a saber o que não se deve, nem se deseja. Desse jeito, foi desnudada a história da depauperada paciente da maca ao lado: ela é soropositiva e fugiu em sua última internação. Mais umas tantas perguntas íntimas, sem toques ou exames, e o grupo se dispersa. Do rodízio de estudantes, restam apenas duas moças que agora resolvem partir para examinar a paciente, ali mesmo no corredor, sem pudor ou privacidade. Ao final, o alento da promessa de ser mais bem cuidada com a acomodação digna num quarto, no andar de cima. Fora promovida ao final da consulta.
Passa outra senhora acompanha pela filha e de um leito se ouve a pergunta: “ela fez?”. Por aqui, mesmo os mais prosaicos atos da intimidade passam a ser compartilhados nas conversas de corredor. Sem constrangimento, alguns circulam de pijama, outros falam alto como se estivessem na sala de casa, tal a naturalidade que vai se tornando a promíscua convivência hospitalar.  É excesso de informação a todo o momento, por todos os lados.
Nos primeiros dias, o desconforto de acompanhar alguém nesse ambiente é grande. Nada parece justificar tanto descaso com a saúde das pessoas e com a sanidade do local. Só com o decorrer do tempo, das semanas, vão se acumulando observações e brotando novas reflexões.

O corredor dos desvalidos vai revelando o lado solidário do ser humano, quando desprovido de seus pertences e de seus apegos. Acompanhantes circulam e se ajudam mutuamente; pacientes fazem o mesmo, independente de estarem em situação de risco de contágio para si ou para os demais. Num modelo meio indiano, parece que todos estão protegidos dos vírus e bactérias circulantes por algo diferente ou até oposto às boas condutas de enfermagem. A promiscuidade hospitalar do corredor dos desvalidos, ao final, surge como uma experiência budista de aprendizado e transcendência.
          (publicada Jornal Agora- em 18/04/2015)

Feliz Páscoa

 Na velocidade fulminante dos dias, chega mais uma data de celebração e mal há tempo para pensar. A pressa faz buscar doces agrados aos mais queridos ou rapidamente aprontar bagagens para aproveitar o feriado em mais uma viagem alucinada, sem nem se lembrar do significado da data celebrada.  Aliás, significações andam em baixa, esquecidas, deixadas para trás, encobertas por coisas e loisas. Num tempo devorado por preocupações, afazeres ou distrações múltiplas, há pouco espaço para reflexões. Para a maioria, a vida não está fácil. Porém e é exatamente por isso, por ser uma fase bicuda de dificuldades, que ainda mais se carece de pausa, de uma trégua para reflexão e transcendência.
Num mundo crivado de atrocidades de todos os tipos necessitamos alimentar a fé, fortalecer o espírito, seja lá da forma ou do modo como o concebamos.  Só entendendo a vida numa dimensão mais ampla poderemos encontrar ancoradouro para esperanças alentadoras. A ressurreição de Cristo ou a passagem dos judeus inspiram renascimento, superação, passagem para uma fase mais auspiciosa. Esse é o espírito que precisa emanar das pessoas neste final de semana de Páscoa, semeando entendimento, harmonia, paz, solidariedade e amor.  É algo difícil de alcançar, pensarão uns tantos. É, pode ser difícil, mas não é impossível.
Dirão os mais céticos e os mais teimosos pessimistas que de boas intenções o inferno está cheio, por isso serei mais insistente e enfática. Não é preciso ser crente, bem ao contrário, basta pesquisar um pouco para confirmar que até a cética ciência dá crédito ao poder transformador do pensamento. Por isso aqui vai um convite: vamos dar uma trégua às tantas coisas ruins e abrir a alma para o verdadeiro espírito da Páscoa? Proponho um armistício pascoal, um cessar-fogo pessoal aos tantos conflitos que perturbam nosso cotidiano. Fazer deste dia uma celebração significativa e autêntica, capaz de fazer brotar os melhores pensamentos, as mais dignas intenções. Só por hoje, apenas hoje, vamos rechear o dia com bons pensamentos e boas atitudes. Nem que seja só por hoje, já será um grande começo, um sinal de transformação. Grandes mudanças começam assim, semeadas esporadicamente por uns poucos.
É apenas com esse espírito que realmente se poderá saborear a Páscoa com o legítimo sentido de celebração. Vamos, portanto, adoçar as esperanças, cultivar alegrias, semear coisas boas. Afinal, as amarguras e durezas crescem sozinhas, como ervas daninhas.

E porque a vida não é feita só de alma, vale também lembrar os doces mimos ao corpo, a refeição especial, o chocolate, para os que têm e podem.  Mas que não se faça dessa parte a mais importante e não se exagere na dose, coisas comuns de acontecer.  Saborear é degustar, sentir o gosto, diferente de devorar, engolir inteiro.  Por isso, uma sugestão: aproveite a Páscoa saborosamente, sem indigestos excessos. Com essa idéia de celebração ao renascimento que faço votos de uma Feliz Páscoa a todos os leitores, seus amigos e familiares.
             (publicada Jornal Agora em  04/04/2015)

Os Vários Nortes

Não estamos desnorteados, apenas temos vários Nortes. Essas palavras estavam impressas numa camiseta do movimento anti-manicomial, lá no início da última década do século passado. Fazia sentido, pois entender a loucura é conseguir compreender a sobreposição de lugares, coisas, tempo; a mistura dolorosa de imaginário e real, a significação dos confusos delírios, a trama das alucinações. Quem percorreu ou de algum modo se aproximou do mundo das psicoses sabe bem o que sejam esses vários nortes. Fora disso, só no terreno dos sonhos podemos vislumbrar essa estranha mistura de dimensões. Nos sonhos encontramos esses vários nortes: podemos ser e não ser, a um só tempo. Podemos estar simultaneamente em vários lugares, fazendo coisas impossíveis, como se naturais fossem. Nos sonhos vai-se a primazia da realidade e o prumo da razão, impera o imaginário e o simbólico. Os sonhos são sempre meio loucos. Tão perturbadores que nós, ao despertarmos, para aplacar a angústia, tentamos colocar pontos e costurar o nó de sentido que estava solto e sem nexo. Só assim podemos contar uma versão plausível do caótico filme que animou ou assustou nossa noite.
Ter vários nortes é tão desorientador quanto não ter noção de onde esteja o Norte, pois na verdade é a mesma coisa. O ponteiro da bússola, sem conseguir ficará saltitando de um lado para outro, sem encontrar o ponto N que nos serviria de guia, timoneiro do rumo a ser traçado.
Pois se até agora ter vários nortes só nos poderia acontecer nas tormentas da loucura ou no universo dos sonhos, agora parece estar acontecendo com a realidade a nosso redor. Por mais racionais, lúcidos e equilibrados que estejamos, estamos sendo confrontados com um emaranhado de cenários reais que se transmutam a cada dia. O que era líquido e certo até ontem a noite pode amanhecer completamente diferente no dia seguinte. As decisões, por melhor pensadas e bem fundamentadas que tenham sido, se pulverizam diante de novas perspectivas que surgem a cada instante, alterando a ordem do que até então nos balizava o caminho.  Noticias nos bombardeiam com mudanças que mudam o prumo de nossas vidas e nos obrigam a traçar, às cegas, novas coordenadas.  À carestia de tudo, aos cada vez mais escabrosos escândalos financeiros, aos anúncios de atrasos de salários e de desemprego em massa, se soma uma única certeza: a de que nada está garantido em nosso porvir.
Como camaleões, temos que mudar a todo instante, seguindo a orientação de uma biruta do tempo que se apossou do que era nossa bússola de confiável orientação. Com vários nortes e sem um Norte seguro no horizonte, falta-nos o Sul, o Leste e o Oeste. Esta parece ser a nossa coletiva situação, que é especialmente grave aos mais jovens, que tem no futuro seu maior patrimônio. As incertezas que por ora sacodem a economia do país e especialmente de nossa cidade custarão mais caro a esses moços que precisam fazer projetos de vida e não encontram amparo em mínimas certezas.

Buscando um fio de esperança, um derradeiro consolo, surgem duas pequenas, sábias e mágicas palavras: tudo passa. Só a confiança na sabedoria da impermanência nos fortalece e alenta com a esperança de que um dia reencontraremos o Norte e melhores tempos haverão de chegar.
         (publicada  - Jornal Agora - em 21/03/2015)

Apertem os Cintos, O Dinheiro Sumiu!

O início de todos os anos costuma chegar acompanhado de despesas extras e sufoco no orçamento. Férias, restos a pagar do Natal e das festas de final de ano, mais uns tantos impostos fazem parte do tradicional pacote de todo início de ano. É sempre assim, mas neste ano veio num formato de mau presságio. Como numa conspiração para tirar nosso sossego, a cada dia chegam notícias de mais aumentos de impostos e de preços.
Enquanto o país das maravilhas luxuosamente se apresenta nas avenidas do carnaval ao compasso da moda ostentação, a vida segue e as contas correm soltas neste mês tão escasso de dias quanto de dinheiro. Diferente das fictícias contas de nossos governos, o orçamento doméstico é real e até cruel. É matemática básica, pura e simples: somam-se contas e mais contas; ao final se subtrai o total da riqueza que se possua. Com certa freqüência o saldo é negativo exigindo habilidade de malabarista para equilibrar as contas e tocar a vida adiante. Usar cheque especial, pagar com cartão de crédito, pedir dinheiro emprestado... O que fazer? Algumas propagandas sugerem como maravilhosa solução para esse aperto momentâneo que se faça um empréstimo consignado de longo prazo, assim se pode trocar a dificuldade aguda de hoje pela longa agonia de mais um compromisso mensal. E há quem caia nesse canto da sereia e mergulhe ainda mais rumo ao fundo do poço das dívidas.

Para quem viva do próprio trabalho ou da aposentadoria e tenha bom senso, a solução não é doce e nem mágica. O orçamento não é uma peça fictícia, como os orçamentos governamentais. É algo concreto, real. Se nos estão tirando, ano a ano, o valor de nosso trabalho ou de nosso salário – e estão. Se não temos como fabricar mais dinheiro, e honestamente não temos. Só nos resta uma saída: apertarmos os cintos, pois o nosso dinheiro está sumindo e é preciso conseguir viver com o que se ganhe. É preciso cortar as despesas, como tanto falam, mas não fazem, nossos governantes. Trata-se de questão de sobrevivência, não somente financeira, mas também psíquica. Difícil ter saúde e quase impossível ser feliz estando endividado. Portanto, para sobreviver a mais este período adverso, a receita é apertar os cintos, cortar todos os gastos desnecessários. Trata-se de um grande desafio já que a ordem das necessidades vem sendo duramente invertida em função do hiperconsumo, desse modelo que tem seduzido com a ilusão de que a felicidade pode ser encontrada no universo das compras. Pelo menos neste aspecto a crise pode ser útil dando um choque de realidade e resgatando a importância do que realmente vale à pena. Para isso servem muito bem as crises e sofrimentos: são oportunidades de aprendizado, de crescimento. Às vezes, só se consegue mudar hábitos e transformar padrões à força da ordem da necessidade.  Está precisando caminhar, mas não acha tempo e costuma ficar passeando de carro até achar uma vaga de estacionamento? Agora é sua chance: deixe o carro em casa ou ao menos estacione tão logo encontre um espaço e siga o resto do caminho a pé. Assim a preciosa gasolina será poupada. Não consegue segurar os gastos com o cartão de crédito, deixe-o descansando em casa quando sair. Atitudes meio radicais como essa podem ser indispensáveis para quem sinceramente deseje fazer ajustes no orçamento. Do contrário, pode até ficar acompanhando seus gastos na planilha do Excel, mas só verá crescer o pelotão das contas a pagar e o dinheiro sumindo antes, bem antes, do final de cada mês.  
                   (publicada Jornal Agora - 21/02/2015)

Leques e Banhos de Caneca

A crise da água há muito anunciada chegou, é assunto do dia. As notícias dão conta de rios e reservatórios secos, de cidades sofrendo com falta de abastecimento de água. Explicações científicas comprovam os efeitos de fenômenos climáticos previsíveis e também os desperdícios que poderiam ter sido evitados, os problemas que poderiam ter sido minimizados. Por outro lado, governos se revezam sem seriamente assumirem compromissos com o meio ambiente ou com as ações necessárias ao responsável uso da água. Desviam-se rios, constroem-se cada vez mais barragens, como se a rota sinuosa, caprichosamente desenhada pela natureza, não guardasse sabedoria. Quando surgem conseqüências indesejadas, novos equívocos são cometidos, intervenções tão caras quanto desastrosas. A crise hídrica traz consigo o colapso energético, portanto, além da falta de água, está vindo junto falta de energia. Esse é o porvir que nos está chegando, num tempo em gerúndio, não num futuro hipotético.
Por enquanto, apenas os “outros” estão sofrendo privações de água. Por estas bandas continuamos a ter cacimbas cheias e certo sentimento de que assim continuaremos, sempre protegidos, imunes a essa e todas as crises. É a sensação enganosa de não ter nada haver com a situação, a indiferença moral garantida pela distância psicológica. Por mais que as notícias nos cheguem em imagens bem vivas do sofrimento alheio, se as pessoas não nos são próximas, não nos dizem respeito. Seca no sertão? Guerra por água do Sudão? Gente morrendo por falta de água na África? Isso tudo é muito distante. São Paulo sem água? Ainda parece inacreditável, mesmo diante da imagem de reservatórios vazios. Se não temos pessoas ali que nos sejam importantes a sofrer o problema, é como se ele – o problema – não existisse.
Assistimos a tudo isso inertes, seguimos a abusar da água, nos ensaboando distraídos, embaixo de chuveiros abertos. É a dissociação entre excesso de informação e ausência de reflexão e de conhecimento consciente: sabemos que a água é o ouro deste século XXI, causa de conflitos e guerras, mas lidamos como se nós – apenas nós – fossemos os senhores de uma fonte inesgotável e o resto da humanidade não nos importasse.

Enquanto a crise bate na porta de vizinhos cada vez mais próximos, vamos continuar a curtir o delírio da eterna abundância? Sinceramente, acho que já é tempo de tomarmos tenência, poupando o que ainda desfrutamos.  É hora de adotarmos novos hábitos, mudarmos conceitos e valores. À nível de atitudes pessoais podemos ressuscitar e tornar persona-grata um antigo personagem familiar conhecido de toda gente antiga: dona Parcimônia.  Essa criatura que atucanou a infância das pessoas que, como eu, já viveram mais de meio século. Gente que na infância tomava banho de caneca, numa grande bacia de metal. Gente que se abanava com leques para aliviar o calor nos dias abafados, pois ventilador era luxo, disponível para poucos e a energia era cara.  Pois esses tempos estão de volta. Para sofrer menos, o melhor é começar a ter atitudes de poupança, reduzindo o tempo no banho e o uso de água, enquanto ela ainda jorra abundante. Desligar o split e se abanar de vez enquanto é de bom tom, assim nos iremos acostumando a nova situação, treinando os músculos e a exercitando a tolerância ao desconforto. É bom ir treinando e agradecendo por ainda estarmos na fase do ensaio.
                          (Publicada Jornal Agora - 7/2/2015)

Zerando a Redação

Saiu como manchete a notícia de que mais de meio milhão de estudantes tiraram nota zero na redação. Não deveria gerar tamanha surpresa esse resultado. Ter dificuldades na elaboração de um texto é coisa antiga, por certo, afinal a tarefa não é assim tão simples. A novidade é apenas o quanto se está agravando, mas isto também já era de se esperar. São os efeitos agora visíveis do idioma internetês, da forma como as pessoas se comunicam através da internet e das novas mídias sociais. Num contexto de comunicações abreviadas por frases formadas apenas por consoantes ou idéias transmitidas por figurinhas está se tornando raro o domínio da língua portuguesa.
O mundo, quase todo, aderiu em massa às novas formas de comunicação. Salvos os que continuam a ler, pensar e escrever normalmente, apesar de usarem as novas mídias, as pessoas que só se comunicam por abreviações inventadas estão perdendo a capacidade de se expressarem verbalmente. E, pior, perdendo a capacidade de refletirem, pois isso demanda tempo e não há tempo a perder. Precisam estar conectadas a tudo simultaneamente. A prosa perdeu enredo e as palavras foram telegraficamente suprimidas; as opiniões resumidas em curtidas e não curtidas. No reinado das imagens, o verbo perdeu lugar. Compartilham-se fotos, muitas fotos. Sempre sem legenda, sem história contada, sem contexto. Uma imagem vale mais do que mil palavras, essa parece ser a ordem de nossos dias. Os telefones com os quais antes se conversava em situações excepcionais foram substituídos por celulares e estes se tornaram smartfones, com total conexão a tudo, menos ao encontro de vozes e a transmissão de conversas. Os aparelhinhos podem trazer mil programas, mas não parecem estar favorecendo a comunicação e o entendimento entre as pessoas. Fala-se menos, escuta-se cada vez menos. E as mensagens estão cada vez mais primitivas, abreviadas à imperativa urgência da comunicação instantânea. Foram-se as dúvidas entre dois ésses e cedilhas. Escreve-se de qualquer jeito e se atira na rede o que vem na cabeça, sem passar por revisão ou pelo sensato crivo da reflexão.
Como tudo que não se usa, a linguagem com toda sua riqueza e variedade vem sendo atrofiada. Por falta de uso, vai se perdendo a capacidade de pensar, refletir, escrever e até falar. Num cruel paradoxo, a mais alta tecnologia está tornando primitiva a comunicação escrita, subtraindo-a de recursos, exterminando sua riqueza formal e sua capacidade expressiva. Saem de cenário as palavras e suas figuras, entram apenas os personagens estáticos dos selfies, sempre sorridentes, sempre lindos, sempre felizes, aparentemente. Nesse cenário, o meio milhão de notas zero na redação do Enem é apenas a ponta do enorme iceberg de conseqüências da desconstrução da linguagem.

Se o mundo acabasse agora e mais adiante chegassem outros moradores, juntando os cacos das fragmentadas mensagens dessa época registradas na internet, teriam eles grandes dificuldades de entender essa nossa civilização. Talvez pensassem que éramos todos seres linguisticamente muito primitivos. E não será isto o que coletivamente estamos nos tornando?
                                 (publicada no Jornal Agora em 24/01/2015)

O Sorteio da Saúde

Desde o início da vida, o destino vai sendo caprichosamente desenhado pela sorte, pela combinação aleatória de células que nascem e que morrem. Nosso corpo todo é feito e mantido por esse sorteio, assim diz pesquisa científica divulgada ao início deste novo ano.
Até aí se podia pensar que estaríamos salvos das piores doenças cuidando bem do corpo, com atividade física regular e alimentação saudável. Dê-lhe academia, caminhada, ioga; suco de couve, cebola, alho, tomate, chá verde e outras coisinhas mais. Dê-lhe arroz integral, pão integral, comida orgânica, biodinâmica e uma tacinha de vinho tinto para completar. Licopeno, salvestrol, resveratrol e outros bichos estranhos entraram no vocabulário cotidiano. Dê-lhe exames de sangue buscando notas baixas em glicemia e colesterol. Tudo certo, tudo feito, vai sendo acalentada a esperança de quase imunidade ao que de pior se teme em questão de doença. Acumulando méritos não teríamos o sofrimento como castigo, ilusão de quem acredita na proteção do merecimento.
De repente, meio de revés, vem a ciência puxar mais uma vez o tapete das esperanças mágicas. Por melhor que se cuide da saúde, nada tem o poder de impedir o surgimento e a multiplicação de defeitos celulares. Como assim? Então não adiantou a revolução alimentar dos últimos anos?
Calma, muita calma. É preciso ler adiante da manchete e, além de ler o texto completo, refletir sobre o assunto.  O que está dito agora é que os erros na renovação celular acontecem sempre, mas algumas pessoas tem mais sorte do que outras nesse processo. Por isso, apesar de todos os cuidados, uns desenvolverão cânceres e outros, em que pese muitos abusos, cachaça, bacon e batatas fritas, passarão pela vida ilesos. Disso já se sabia, bastava observar a vida ao redor. Porém, independente da boa ou má sorte de nossa carga genética, a vida saudável continua a ser um fator de ajuda, minimizando riscos e conseqüências.
A tal da sorte na verdade nos acompanha em todas as áreas da vida: amor, trabalho, negócios, tudo é regido em grande parte por esse fator aleatório. Ainda que muita gente credite seu sucesso apenas ao próprio talento, sempre há algum toque do acaso, do fortuito, da boa sorte.

Tudo parece ser regido por uma combinação de acasos, pelo menos se pensarmos no curto prazo dessa existência. A contabilidade de longo prazo, a vida em ampla dimensão, considera créditos e débitos que estão além do alcance de nossos olhos. Se fizermos tudo do melhor modo, estaremos ganhando créditos que, de algum modo ou em algum momento, serão contatos a nosso favor. A sorte não depende da escolha de nossas mãos, mas o merecimento – este sempre esteve e estará ao alcance de nosso lúcido e livre arbítrio. 
                          (publicada no Jornal Agora em 10/01/2015)

A Caminho de 2015

Mal digerido o Natal e em escassos dias chega o 31 de dezembro. Final de mais um ano e chegada de outro, novinho nas folhinhas, nos calendários, nas agendas.  É o final de um pequeno ciclo da existência, de um trecho do caminho da vida. Pode parecer bobagem, um dia igual a todos os outros, assim diz muita gente. De fato, tirando seu significado, retirando da noite do dia 31 de dezembro o simbolismo, restará apenas a passagem de mais um dia. Outra forma de exterminar o simbolismo da data é tomar um chá de esquecimento da vida e imaginar que tudo é e sempre será só festa. Mergulhando nos excessos festivos se acaba com a possibilidade de reflexões.
Para os supersticiosos é preciso ter cuidado com os pequenos detalhes, que teriam o poder de afastarem azares e ainda trazerem boa sorte. Peru de Natal no final do ano? Nem pensar! O pobre bicho nos colocaria o próximo ano todo a andar para trás. Coitado do Peru, além de geneticamente modificado e sacrificado, ainda leva as culpas pelos atrasos da existência. E as roupas brancas, o brinde a beira da praia, os sete pulinhos? Esses e outros tantos rituais servem para tentar tornar mais marcante o momento em que os ponteiros se encontram ao alto do relógio, no último dia do ano, quando explodem os fogos de artifício. Ah, os fogos!  De uns tempos para cá passaram a ser medidos em toneladas cada vez maiores e mais demoradas foram ficando as explosões. É o excesso dos excessos, bem ajustado a essa época de overdoses e ostentações generalizadas. Tudo pelas aparências, assim ditam os mais exóticos formadores de opinião aos seus súditos seguidores-copiadores. Se o festival de excessos continua sendo sucesso de público o ano todo, como o Réveillon poderia seria diferente?
Esse ano, por certo, teremos todos que enfrentar ou “curtir” o Réveillon, com suas exageradas celebrações e as tragédias de sempre. Ainda não avançamos o suficiente. Nossos paradigmas continuam os mesmos, cheios de equívocos e contradições. Cada vez mais opulência e luxo, ladeada por miséria e desigualdade.  E o Ano Novo não dá sinal algum de que possa nos trazer a benção de grandes transformações, por mais otimistas que sejamos. Resta-nos torcer por pequenos avanços, fazer o melhor possível a nossa parte e acreditar que – ao longo do tempo – chegaremos a um mundo realmente melhor.
 A vida é transitória, fugaz, e o final de cada ano apenas faz um registro simbólico do quanto é rápida a passagem do tempo. Reforçando esse sentido, lembrei de registrar aqui um pensamento da sabedoria oriental que ouvi inúmeras vezes na minha infância e que – talvez por isso – ficou gravado na minha memória e fez vinco em minha personalidade. São palavras transformadoras, se levadas como lema de vida. Encerro essa última crônica do ano celebrando a chegada do novo ano com esse pensamento inspirador, como fazia minha mãe, ao terminar seus programas na Rádio Riograndina:

               “Só passarei por este mundo uma vez. Assim, todas as boas ações que possa praticar e todas as gentilezas que eu possa dispensar a qualquer ser humano, devo aproveitar este momento e fazê-lo. Não devo adiá-las, nem esquecer-me delas, pois não voltarei a passar por este caminho.”
                            (Publicada Jornal Agora - 27/12/2014)

Carta ao Papai Noel

Você deve estar estranhando minha carta, tão acostumado que está a receber as mensagens de gente miúda. Pois decidi vencer a inibição diante das tristes atuais circunstâncias. A coisa por aqui, no universo das pessoas grandes, anda bem cruel, meu bom velhinho. Por isso, após acender velas para todos os santos, pensei que não deveria desperdiçar a oportunidade de lhe fazer um pedido.
Antes preciso confessar que há tempos deixei de acreditar na sua pessoa e até mesmo andei censurando a excessiva importância dada a sua figura. O nascimento de Jesus me parecia o suficiente para fazer do Natal uma data significante.
Apesar de minha descrença e dos conceitos que continuo tendo, resolvi registrar meu pedido. Na verdade, nada pedirei especificamente para mim. Com o avanço dos anos e do branco de meus cabelos, necessito de cada vez menos coisas. As materialidades da vida perderam o poder de me encantar. Hoje o que preciso e mais desejo não se empacota, não se precisa carregar e nem pode ser pago em moeda de qualquer espécie. Por não se poder comprar e nem pagar, bem sei, é um pedido complicado de ser atendido. É que estou cansada de tantos desmandos, dos desatinos generalizados; farta dos bilhões desviados por todos os lados, dos escândalos diários, das maldades escabrosas. Por isso venho lhe pedir um presente coletivo.
Sei que não posso pedir para que faça acabar a fome ou a miséria no mundo. Se desse, eu até pediria, mas não me convém exagerar. Também não valeria pedir o derradeiro final das guerras, outro presente que eu gostaria muito de ganhar, mas seria abusar demais de sua boa vontade. Porém, quem sabe, o senhor poderia fazer um esforço, convocar o aniversariante Jesus e, numa grande força tarefa, realizar algum de meus preciosos sonhos de Natal. Algo do tipo: aproveitar o brilho natalino e lançar um tantinho de luz sobre as tantas mentes entorpecidas pela vaidade, pela ganância, pelo egoísmo. Ou iluminasse a consciências desses muitos que nos estão a roubar, para que voltassem a sentir vergonha, arrependimento e desejassem devolver o que não lhes pertence. Isso seria um presentão.
Quem sabe fosse possível, nem que só por um dia, promover o verdadeiro sentimento de solidariedade entre todas as pessoas, acima de toda e qualquer diferença. Ou então, como numa epidemia de febre súbita, todos se sentissem impelidos a praticarem o bem, a serem mais generosos, compreensivos, tolerantes. Só por um dia, um diazinho apenas, um surto de bondade inundaria todos os quadrantes do planeta. Por escassas 24 horas surgiria uma onda de fraterno amor e genuíno entendimento entre as pessoas. Haveria uma trégua nas maldades, nas miudezas cotidianas. Ou, num pedido mais modesto, que apenas se desse uma pausa nos afazeres, nos compromissos e nos passatempos e se priorizasse o que realmente é importante. Que as pessoas se olhassem e se ouvissem mutuamente.

Por fim, Papai Noel, se não der para trazer nenhum desses presentes, pelo menos lhe peço que nos poupe das amarguras da vida, ao menos por um dia. Já será um doce presente, que com esperança desde já lhe agradeço. 
                        (publicada Jornal Agora - 13/12/2014)

Desmaterialização do Mundo

O mundo no qual vivemos está sendo desmaterializado, pulverizado em espaços virtuais e trilhas invisíveis. As coisas estão deixando de serem concretas, palpáveis, e essa avalanche de mudanças radicais vai sendo absorvida com indiferente naturalidade.
Enquanto escrevo, meus olhos dão de encontro com alguns metros de cabo de internet, enrolados no canto da sala por estarem em desuso já há algum tempo. Rastros de uma época recente em que fios ainda estavam ligados a tomadas para permitirem a conexão à internet. Agora jazem prescritos pelo avanço das tecnologias wireless e em breve se juntarão a mais um lote de lixo limpo. Nas prateleiras à minha frente também sobreviveram uns poucos CDs, remanescentes dos tempos anteriores aos pendrives. Estes, os pendrives, não vieram para ficar, serão banidos ainda mais rapidamente, substituídos por arquivos volatilizados nas nuvens, em lugar incerto e não sabido.
Pois nesse universo aonde tudo vai ficando virtual uma criatura pré-histórica, quase um fóssil vivo (se isso fosse possível), luta bravamente para manter a vida sustentada apenas em coisas palpáveis. Essa criatura, que sou eu, resiste a rasgar seus guardados e mandar seus registros e todas suas recordações para o espaço, literalmente. Após voltar a escrever cartas, com o serviço extra de enfrentar longa espera nos Correios, voltei a imprimir as melhores fotos que tiro. No futuro, não muito distante, talvez isso se torne impossível. Sabe-se lá onde vão parar as transformações. Além do mais, para quem aprecia a arte da fotografia nada melhor que a imagem impressa.
Outra dificuldade que me está afetando é a desmaterialização dos mapas. Agora só recorrendo a Google maps ou ceder ao GPS. O apetrecho eletrônico guia o sujeito até seu destino e a criatura nem precisa saber o caminho. Resultado: já não se encontram mapas de ruas das cidades, por falta de demanda. Alias, muita gente já nem sabe mais “ler” um mapa. E como fico eu, que preciso de mapa para saber onde estou e planejar a rota para chegar onde desejo quando estou em viagem por lugares desconhecidos? Sou obrigada a recorrer à internet, fazer um esboço do trajeto e levar comigo, ao estilo das rotas de navegação em trilhas.
O dinheiro também está sendo desmaterializado, conspirando para que se perca a noção de seu valor e ajudando criminosos engravatados a roubarem bilhões. Se precisassem carregar tudo o que saquearam ficaria mais difícil sua ação e dificilmente passaria despercebida.

Pode parecer um saudosismo absurdo de uma mulher retrograda e ultrapassada, mas não sou só eu a pensar deste jeito. Faço parte de uma vanguarda que percebe os efeitos perigosos e negativos da dependência as tecnologias que estão desmaterializando o mundo a nosso redor, tornando-o líquido, volátil e invisível. É o caso da Alemanha, onde voltaram a ser muito vendidas maquinas de escrever, em função da perda de confiança na comunicação virtual. Esse mundo que se liquefaz, pulveriza, desmaterializa as coisas pode oferecer mil facilidades, mas elas privam a liberdade de escolha de quem não queira nadar a favor das novidades correntes. E esses, no qual me incluo, precisam resistir teimosa e bravamente para com as mãos salvarem o que lhes for possível, pois todo o resto será banido.
               (publicada no Jornal Agora - 29/11/2014)

O Cuidador Impar

Cuidar é tarefa normalmente atribuída ao gênero feminino. São as mulheres as primeiras, se não as únicas, convocadas a cuidar das crianças, dos doentes e dos velhos da família. Debrucei minha pesquisa de mestrado sobre o sofrimento humano dos cuidadores, das pessoas que se devotavam a cuidar de outro, no caso era de pacientes com diabetes insulino- dependentes.
A questão de gênero ficou logo evidente. Na primeira reunião com os cuidadores de pacientes com diabetes surgiram meia dúzia de três ou quatro homens: eram maridos que cuidavam de suas esposas diabéticas. Logo eles deixaram de participar, pois o foco da pesquisa estava no sofrimento envolvido neste cuidado e eles talvez não se identificassem com o tema. Davam conta das tarefas de cuidar, administravam insulina, faziam a lida da casa, mas não deixavam suspensas suas vidas: continuavam a dar suas saídas para a rua, encontrar amigos ou a trabalhar. Enfim, não sacrificavam a existência em função da tarefa de cuidar.
As histórias das cuidadoras eram bem diferentes. Convocadas todas em função do gênero, independente do tipo de vínculo com o paciente diabético: esposas, mães, irmãs, cunhadas, noras, filhas. Em todos os casos analisados as mulheres da família foram as primeiras a serem chamadas e só na falta de elemento feminino é que passou a responsabilidade do cuidado a ser atribuída a um homem. As cuidadoras deixavam sua existência para trás e se entregavam à tarefa com exclusividade, tornando-se muitas vezes reféns da função ou das exigências abusivas de pacientes tirânicos. Com as reuniões de grupos essas pessoas puderam não somente relatar suas vivências, debulhar suas dores e contribuir com a pesquisa, mas também receberam apoio e orientação, diminuindo seu sofrimento.
Lembrei dessas vivências ao ler o livro “Quem,eu?”, de Fernando Aguzzoli, um cuidador tão improvável quanto ímpar. Explico. Improvável, pois, como acima relatei, os homens costumam se escapar do cuidado humano e estaria ainda blindado da função por ser tão jovem. Seria poupado de responsabilidades para poder estudar ou curtir suas festas. Jovens não têm tempo a perder, precisam aproveitar, tirar da vida todos seus proveitos. Pois Fernando não precisou de convocação e não se aproveitou desses álibis sócio-familiares. Chamou a si mesmo para a responsabilidade, escolheu livre e espontaneamente cuidar de sua avó Nilza e do alemão Alzheimer. O cuidador improvável que ai surgia tornar-se-ia ímpar, pela forma como daria conta da difícil missão.

Cuidar de alguém doente é um sobrepeso na vida de qualquer pessoa, quando essa doença é crônica, degenerativa e incurável a situação se torna mais penosamente crítica. A condição crônica tira esperanças, sendo degenerativa envolve o desafio de enfrentar dificuldades cada vez maiores com o avançar da desesperançada caminhada. Pois o jovem Fernando foi à luta, não aceitou as prescrições dos livros, não permitiu que sua avó fosse considerada morta, quando ainda estava viva. Fez de cada dia uma aventura e transformou dificuldades em motivos para rir e para valorizar a vida. Desvendou por conta própria o caminho para que sua amada avó Nilza pudesse viver doses homeopáticas de valiosas alegrias e de profundo amor no epílogo de sua existência. Esse cuidador ímpar chamado Fernando Aguzzoli com sua gratidão e abnegação pela avó tornada filha dá uma lição de vida.
                               (publicada Jornal Agora 15/11/2014)