sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A BARBARIE DA SAIA CURTA

      Pouca gente poderia imaginar que saia curta fosse capaz de provocar alvoroço. Afinal de contas, por estas bandas do equador, corpo nu está disponível sem censura em qualquer lugar. Desnudas e provocantes circulam na tela de TV e fora dela. Atitudes de sensualidade levemente vulgar ou explicitamente grosseira fazem parte da performance de mulheres famosas em propagandas de todo tipo de produto. Qualquer motivo é pretexto para liberar geral, corpo e libido, antes, durante e depois do carnaval. Sem falar nas letras de músicas ou das danças de conteúdos explicitamente sexuais, como aquela “na boquinha da garrafa” que por algum tempo podia ser tocada e dançada por toda gente até em festas infantis.


    Pois num contexto destes, como não se espantar com o escândalo provocado por uma moça de pernas de fora no ambiente jovem de uma universidade? Reflito sobre o fato, imaginando os atos a partir dos fragmentos divulgados mundo afora:

ATO 1:

    A cena não foi de improviso. Dá para imaginar que a preparação possa ter começado bem antes. A moça, moradora em pobre periferia, demoradamente escolheu seu melhor traje. Cheia de faceirice, mirou-se de cima a baixo sorrindo para o espelho, virou-se de um lado e de outro, até se olhou de costas. Achou que estava linda e maravilhosa em seu vestido vermelho, justinho e curtinho como lhe parecia ser adequado à ocasião. Fazendo caras e bocas, mandou beijinhos para si mesma e saiu confiante de que iria abalar a torcida. Rebolando e fazendo pose sentia-se a última bolachinha do pacote, a coca-cola do deserto. Afinal, estava vestida para festa, do jeito e da maneira com poderia ir aos populares bailes funkes, tão comuns na zona em que mora. Entre o ambiente da universidade e a pista de dança não havia muita diferença para sua cabeça alourada pela química comprada a pouco preço na farmácia do bairro.

ATO 2:

    Seria um dia como outro qualquer na universidade que se segura no modesto 159º lugar entre as 175 universidades do país. Tudo estava normal até que a turminha solta dos corredores reparou na figura destoante e logo foi deflagrando comentários, cutucões , risadas e reações que foram se fortalecendo em eco.

    No burburinho, ninguém pareceu ter outra coisa a fazer ou pensar a não ser se envolver na baderna formada. No inicio, o movimento deve ter aguçado ainda mais a exibição da garota de periferia, que interpretou o nervosismo geral como sinal evidente de seu sucesso: estava abalando as estruturas – as grosserias verbais lhe eram formas de elogio familiar, fazem parte do refrão de músicas bastante tocadas. Mas o grupo foi tomando corpo e adquiriu outro senso e ânimo. Em efeito de maré, a onda ganhou força e da marolinha maldosa de alguns se tornou uma tsunami violenta de gente irada e enlouquecida. A multidão feita em corpo e coro encontrou ali sua Geni e passou a cuspir-lhe ofensas mais agressivas e lhe jogar todas as pedras. Assim como um dia jovens incendiaram um índio porque o confundiram com um mendigo, desta vez apedrejaram a estudante porque acharam que, pela roupa e pelos gestos, seria uma prostituta e isto autorizaria que contra ela qualquer coisa pudesse ser dita ou feita. A coisa virou um playground de adolescentes que queriam simplesmente se divertir com o fato novo do momento. Como não surgiu o grupo do deixa disto, os poucos anjos da guarda de plantão tiveram que recorrer à intervenção do agente de autoridade policial para impedir que a coisa chegasse ao nível de selvageria.

   O primeiro ato retrata a dificuldade da jovem de discriminar diferenças necessárias, algo muito freqüente nas pessoas em geral, mas muito especialmente em quem ainda tem pouca experiência na vida. Houve uma ingenuidade maliciosa em suas atitudes provocativas, o que enseja uma mistura de um punhado de culpa e uma porção de inocência. Infelizmente a notoriedade do caso poderá reforçar ainda mais o lado exibicionista da moça e dificultar sua busca por formação universitária.

    Já o ato seguinte, o movimento coletivo não me parece fruto de uma intenção moralizadora, mas simplesmente ensejado pelo espírito de brincadeira sádica. Do grande grupo, apenas uns eram os protagonistas, tinham a intolerância e a maldade conscientes, os demais foram meros figurantes, agindo sem se darem conta da gravidade de suas atitudes e confirmando o quanto podem ser potencialmente perigosos ânimos exaltados em ajuntamentos humanos.

    Entre inocências e culpas, a situação enseja uma autocrítica coletiva necessária, que nos provoque interrogações a serem respondidas: que jovens estamos criando? Aonde temos coletivamente errado para fragilizar tanto a formação subjetiva, emocional, afetiva, moral de nossa juventude? Quando o ambiente universitário é palco de uma situação de tamanho excesso de intolerância, que poderemos esperar de nosso futuro?
publicado caderno mulher
Jornal Agora
14/11/2009