sábado, 22 de janeiro de 2011

A Corda da Salvação



A cena roda o mundo espantando pelo improvável. Na correnteza feroz, uma mulher de 53 anos grita desesperada dentro do que restava da casa que ia sendo devorada pelas águas. Isolada, não parecia haver para ela salvação. Mas, no instante final se descortina o desfecho quase impossível. Surge a corda certa, na medida necessária, lançada no momento e no lugar exato. Surgida dos céus do terceiro andar do prédio vizinho, a salvação se apresentava, mas passa a depender do esforço e determinação da mulher. Era de sua conta atar-se e confiar nas forças dos que, como anjos, estavam prontos a ajudá-la. Em segundos, ela aprende a fazer bem feito o primeiro nó de sua vida, com decisão se segura e se entrega aos seus salvadores, que vencem a derradeira tarefa de içá-la prédio acima.

Se fosse cena de filme teriam sido exigidos muitos ensaios e complexos cálculos: decidir as características e o tamanho da corda, o tipo de nó a ser utilizado... Mas foi tudo executado com o improviso da urgência, numa única tentativa. Dificilmente algum dos protagonistas alcançaria sucesso em repetir a proeza. Porém, dirigidos pelo perigo iminente, a necessidade deu a força, a coragem e foi alcançado êxito. A câmera que filmou tudo fecha a cena, abrindo a cortina para reflexões.

A corda esteve no centro da cena de salvamento. Naturalmente, só foi útil porque houve alguém que se lembrou de buscá-la, surgiu talento para lançá-la e vários “alguéns” tiveram força necessária para o resgate final. Uma mistura de casualidades e grande presença de espírito: combinação que foi definitiva para a solução acontecida. A corda representou a tábua de salvação. Algo que é lançado no momento de mais agudo desespero; que se apresenta como a saída, mas que sempre, inexoravelmente, depende da decisão de quem está em desamparo: agarrar-se à ajuda e fazer sua parte, ou não.

As tragédias acontecem pela mesma combinação de situações e pessoas: por um triz, vão-se preciosas vidas. E pela mesma mínima medida de um triz, salvam-se existências. O que separa a boa sorte da desgraça é um mínimo segundo ou uma caprichosa combinação de pouco prováveis coincidências. Desafiando as probabilidades estatísticas, acontece o inusitado. Como se tivessem encontro marcado: estão todos na hora certa, no lugar exato e tudo dá certo, na medida justa de todas as coisas. Ou o contrário de tudo isto: a hora errada, o lugar errado e o desfecho fatal.

Vivemos o dia a dia na corda bamba dos afazeres, dos passatempos, dos prazeres e desprazeres. A vida vai sendo levada ao sabor da eternidade, colocando o tempo a perder. As freqüentes tragédias nos alertam e tentam nos levar a reflexão. Muito possivelmente, teremos todos que lidar com as conseqüências graves das mudanças climáticas. Só os insensatos podem se sentir a salvo do futuro que se anuncia. Providenciar kits de salvamento pode ajudar: cordas, bóias, lanternas, velas e outras coisas mais. O principal, porém, há de ser ficar atento, sereno e lúcido para ser capaz de lançar a corda de salvação ou se agarrar a ela, dependendo do lado para o qual os maus tempos nos joguem.
publicada em 22.01.2011

sábado, 8 de janeiro de 2011

Entre Retrospectivas e Contagens Regressivas

     Os desatinos de final de ano bombardearam os céus com toneladas fogos e entonteceram as pessoas com shows de imagens e sons, tudo elevado ao expoente do exagero. O ano que terminou foi reduzido numa veloz retrospectiva, em ritmo pisca-pisca de notícias do acontecido: improvável ou impossível refletir sobre o que é apresentado. Para que pensar? O mundo está perdendo o senso de sentido das coisas.

    Passado o dezembro com seus coloridos embrulhos e ferventes agitos, a vida vai surfando meio preguiçosamente no verão de janeiro. Certa ressaca atrasa o avanço dos dias.

    O verão abrasador espanta ainda mais o ano que passou. Para muita gente, é a época de ouro: tem gosto doce de férias e sabor melado de diversões. Tempo de espairecer, de não pensar em nada, esvaziar a mente das ocupações e preocupações. Depois a gente pensa, depois...

    A vida vai fluindo cada vez mais rápida e desatenta. Não por coincidência, mas por uma conjugação de casualidades, nem pisamos o novo ano e somos saudados pela temporada das enxurradas. Claros sinais das alterações climáticas, evidências dos equívocos e irresponsabilidades humanas. Mas por aqui o sol está escaldante, a praia borbulha de gente e o mar está bom para banhista, surfista e todas as demais tribos. Depois a gente pensa, depois.

     Já a turma festiva do grupo dos seguidores de maus exemplos pensa rápido, não perde tempo e comemora fartamente. Devorando as maiores fatias do bolo e embolsando mais uns pedaços, entre gargalhadas, conversa de boca cheia sobre o tamanho das migalhas que deixará para o povo do salário-mínimo. No andar de cima a festa nunca acaba e é sempre animada com sofisticadas comidas, variadas bebidas, caros trajes, importados perfumes e uma exibição de despudor, maus modos e falta de sensibilidade coletiva.

     É. Nós, da câmara dos comuns, dos abobados da enchente, saltamos festivos e cada vez mais barulhentos para o Novo Ano, iludidos com as contagens regressivas: faltam tantos dias para o Natal, para o Réveillon, para o Carnaval, para o final do verão ou para o final do mês. Que amanheça, anoiteça e que chegue o salário, que acabe o carnê do carro; que chegue isto ou que acabe aquilo. E se passam noites e dias sem que se atribua valor, importância e significado à existência.

     Deixamos-nos embalar por ilusões que nos parecem coisas sólidas! Amparamos-nos nelas como se fossem concretas, para depois vê-las ruírem, se dissiparem nos ventos do tempo, como acontece com todas as miragens.

     Entre lembranças e sonhos, vamos navegando, distraídos do caminho que cruzamos, desprezando o precioso presente. Saltando sobre os dias, brincando de viver. Um dia a gente para e reflete, medita, pensa. Um dia a gente aprende a levar a vida mais a sério, assume as responsabilidades, toma atitudes. Entre retrospectivas e contagens regressivas vamos fazendo uma vida em flashes. Um dia a gente pensa e nesse dia a gente aprende.
                                                                                          publicada em 08.01.2011