segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Tamagochi



     Alguém tem ainda um tamagochi? Ninguém? Nem em casa, nem em lugar algum, possivelmente, haja um tamagochi "vivo" daquela geração original, disputada a preço de ouro. Houve um extermínio silencioso dos tamagochis. Ao contrário do alvoroço que provocaram em sua chegada,sumiram sem gerar protestos,sem luto ou culpa.
     Para quem já esqueceu - ou descartou da memória - estou falando daquele chaveirinho tocante, que nos foiimpingido pela inteligência mercantilista japonesa com a proposta de servir  para cultivar o sentimento humano de cuidar de alguém. É bom lembrar que, na época em que chegaram, houve uma febre, uma verdadeira epidemia dos "bichinhos de estimação virtuais". Discussões acaloradas, inclusive em meios acadêmicos e cientificos, trataram da importância dos tamagochi. O assunto parecia muito pertinente: devia-se permitir ou proibir que as crianças levassem seus tamagochi para a escola? O tamagochi auxiliaria crianças a desenvolverem habilidades afetivas e sociais através daquela forma de "cuidado"? Alguns profissionais, espertos, chegaram a considerar que o chaveirinho pudesse representar o Outro, indispensável a constituição psíquica. Parecia até cômodo: tamagochis não faziam xixi, não roíam os móveis, não latiam, não comiam ração, nem precisavam de banho e tosa. Tudo era virtual: água que não molhava, passeios feitos a um simples toque de botão...  Aparentemente inofensivos, os bichinhos virtuais logo mostraram sua tirania: exigiam pronto atendimento a cada chamado e só quem teve um sabe o quanto eram exasperantes seus chamados.
     Houve os que argumentaram que o chaveirinho tocante, entre suas fantásticas utilidades, ajudaria na elaboração da perda, da morte, do luto. O tamagochi era muito "sensível", necessitava de atenção permanente, se não fosse cuidado convenientemente "morria". Morria, como morre tudo o que é movido à bateria e pode ressuscitar tantas vezes quantas a gente troque a bateria. Mas a coisa era tomada como real no seu significado simbólico e no apagar do chaveiro havia um colapso trágico no entorno familiar. Só faltou ser feito o enterro do tamagochi - será que faltou? Muita gente séria, adulta, culta e inteligente prestou seu plantão de babá de chaveiro e levou o serviço à sério.
      Para onde caminha a humanidade? Fomos capazes de aceitar viver uma relação de cuidado amoroso com um chaveiro!
     Mas a experiência valeu. Quase tudo nesta vida vale, quando se sabe tirar o valioso proveito da aprendizagem. Os tamagochis foram o mico da vez, a bobagem levada a sério, a moda absurda e ridícula - como quase todas as modas. Ainda há tamagochis a venda, mas agora custam o preço de um chaveiro, sem mais pretensões afeito-sociais.
     Aos pedagogos, psicólogos e especialistas em geral, restou uma constrangedora e penosa lição: é preciso ser crítico, manter o bom senso e não se deixar cair na tentação perniciosa dos modismos.
     Observação final:  a necessidade de cuidado é uma das nossas necessidades mais transcendentes, que só se realiza na presença de um outro ser vivo, seja ele pessoa, anial ou planta. Coisificar esse afeto perverte, exaure, esteriliza um dos mais nobres sentimentos humanos.
Publicada em 04/06/2005
Jornal Agora - Caderno Mulher

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