Era para ser uma tarde sem compromisso e nem conseqüências, mas na entrada de uma loja saltou do quiosque a sorridente vendedora de cartão de crédito. De modo muito educado, iniciou sua primeira abordagem fazendo a oferta. Ao ser informada de que não havia interesse, a vendedora não se deu por vencida e começou a peleia, acompanhando meus passos que já não avançavam mais pela loja, envolvidos pela multiplicação dos apelos da funcionária. De nada adiantava driblar com negativas, pois a moça estava firmemente decidida a não entregar seus pontos. E, o pior, os repetidos argumentos surtiram efeitos alguns metros adiante, mesmo que nenhum deles me convencesse ou alterasse meu ponto de vista. Eu não precisava e nem desejava o tal cartão de crédito, mas a moça precisava desesperadamente me vender o produto. Comecei a sentir que por trás do oferecimento havia certo desespero, isso me fez perceber que estava perdida e teria que ceder. Ela tinha metas a vencer para não perder seu emprego, veio em minha cabeça como uma legenda da cena, enquanto a moça repetia pela décima vez que eu não pagaria nada, entre vírgulas de novos motivos para aceitar a proposta que enfatizava ser irrecusável.
Meu lado anjo me cutucou: “que te custa? Ajuda a criatura. Ela precisa trabalhar, disto depende seu salário”. E o outro lado, o racional, frio e calculista: “não tens nada a ver com isto, não queres o cartão. Diz para ela não, tantas vezes quanto seja necessário, te despacha da situação e estará tudo resolvido”. Ah! Se fosse assim fácil, mas eu não consigo me desvencilhar. Estou vencida. Baixo a guarda, me resigno. Lá vou eu aceitar mais um cartão que não desejo e nem pretendo usar. Fui possuída pelo sentimento que se traduz como compaixão. Ao compreender o estado emocional da pessoa, senti seu sentimento, seu sofrimento no trabalho, sua necessidade de alcançar a meta exigida para manter seu emprego. Isso me trouxe a necessidade de aliviar seu sofrimento da única forma possível: ajudando-a, aceitando a proposta que não é de meu interesse. Aceitei para ajudar, aceitei porque era a única forma de minorar seu sofrimento.
Essa compaixão estranha eu sinto por alguns tipos de trabalho, principalmente pelos serviços que me parecem penosos ou degradantes, que expõem a situações humilhantes ou profundamente desagradáveis. Tenho o mesmo sentimento por todas as pessoas que precisam ganhar o pão de cada dia oferecendo coisas a quem não está interessado. Esse é o motivo pelo qual aceito todos os papéis de propaganda distribuídos pelas ruas: dos anúncios de venda de imóveis, aos de empréstimos e de serviços de cartomantes. Pego toda a papelada e depois descarto em local adequado. Compadeço-me também dos serviços que expõe a pessoa ao ridículo, como o das pessoas que ficam estaqueadas na porta de lojas, bradando ofertas aos passantes desinteressados. Despertam-me o mesmo sentimento os que precisam viver trabalhando em serviços de telemarketing, dando centenas de telefonemas, dizendo as mesmas coisas, ouvindo negativas e desaforos. Esses trabalhos são dignos, honestos, porém mais penosos do que muitos trabalhos fisicamente pesados, pois envolvem tarefas desagradáveis, enfadonhas.
Trato com especial consideração e respeito esses trabalhadores, mas coloco rédeas nessa estranha compaixão, para salvação de minhas finanças.
Muito boa crônica.
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