quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A LIÇÃO DAS BICICLETAS CHINESAS

     Publicado no Jornal Agora
Caderno Mulher Interativa
16/08/2008
Certas coisas passam a nos envolver com tal freqüência que se tornam naturais. Uma dessas novidades relativamente recentes é a oferta de seguros atrelados a qualquer coisa que se compre ou qualquer serviço que se contrate. Num mundo assustado com uma avalanche de perigos reais e imaginários, sentir-se seguro vale o preço cobrado ou parece valer.


     Noutro dia, ao fazer uma compra banal de algumas peças de vestuário, a atendente me ofereceu incluir na nota um seguro. Seguro? Como não aceitei o serviço, foi-me então informada a grande vantagem de concorrer a um pequeno prêmio em dinheiro. Duas coisas bem nossas: o medo de perder e a fantasia de ganhar. Vivemos entre o tormento de ter segurança máxima e o sonho coletivo de um enriquecimento súbito. Por isso, as seguradoras nos bombardeiam com os dois desejos num só golpe: ou somos capturados pela ilusão de estarmos seguros ou então pela fantasia de que ficaremos ricos ou no mínimo ganharemos alguma coisa.

     Somos um povo sonhador, que adora a idéia de ganhar qualquer coisa: da Mega-Sena acumulada ao sorteio da rifa do colégio. Continuamos um pouco índios, encantados com a magia dos espelhos.

     O seguro vem embutido em tudo: seguro-desemprego, seguro-quebra, perda; garantia estendida. E o que dizer da garantia estendida? A pessoa já paga antecipadamente pela possibilidade de estrago, o produto nem precisa estragar, pois já pagamos o conserto hipotético. A gente leva para casa a coisa novinha, mas com a idéia de que vai quebrar - ah vai, é tão certo que já até pagamos por isso.

     Pois olhando pela TV a cena dos milhões de bicicletas chinesas, velhas, estropiadas, não pude pensar na diferença de mentalidade. Os orientais têm outra visão e reagem de modo diferente. Quando passaram a sofrer freqüentes furtos e roubos, porque não inventaram apetrechos de segurança para suas bicicletas? Logo eles, que nos vendem de tudo e têm uma inteligência tecnológica privilegiada. Por que não fizeram seguros contra roubos? A mentalidade chinesa é mais prática, objetiva e sábia: simplificou o problema, cortou o mal pela raiz, literalmente. Desapegou-se das necessidades estéticas e passou a tornar o veículo apenas um transporte; algo tão barato que, em caso de roubo, pudesse ser substituído prontamente, sem prejudicar sua função de locomoção. Por certo, os longínquos chineses têm outro modo de viver, radicalmente diferente do pensar ocidental. Mas não precisamos fazer meia volta ao mundo para encontrar outro exemplo de como viver e reagir diferente. Basta irmos comprar alfajores no vizinho Uruguai. Os uruguaios usam veículos que são verdadeiros espetáculos circenses, mas andam, e certamente não despertam mínimo desejo de furto, pois só o dono deve conseguir que funcionem. Enquanto isso, nós, financeiramente muito fartos, nos damos ao luxo de pagar valores extras por tudo, para levarmos para casa a garantia de que não seremos roubados, de que o produto não vai estragar, de que não vão usar nosso cartão de crédito, de que não vai dar curto-circuito na ligação elétrica, de que se perdermos a chave de casa um chaveiro nos socorrerá no final de semana... Entre seguros e sorteios, estão surrupiando nossos tostões, e de quinhão em quinhão, alguém está juntando bilhão.



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