quarta-feira, 23 de setembro de 2009

DR. BENZETACIL E A TOLERÂNCIA ZERO

Publicada no Jornal Agora
Caderno Mulher Interativa
05/07/2008

      Havia um médico que passou a ser chamado de dr. Benzetacil, por prescrever sempre o mesmo remédio a todos os seus pacientes. Indiferente à queixa apresentada: de unha encravada a problemas intestinais, passando pelas dores no peito e na alma, a receita era sempre o santo Benzetacil. Pois a lei da tolerância zero é a lei do dr. Benzetacil: incapaz de separar o uso do álcool, do seu abuso e da doença crônica - alcoolismo, negligenciou o diagnóstico e prescreveu a todos o mesmo amargo e errado remédio.


     Há uma evidente distorção no sistema que se atém a punir severamente quem a nível sutil atravessa a margem entre o uso e o abuso, criminalizando-o de modo idêntico ao que se entorpeceu com grande quantidade de álcool. O Estado se apresenta incapaz de estabelecer diferenças necessárias, de ter senso de medida para separar o joio do trigo. Imaginar que o senso que faltou ao legislador seja corrigido pela autoridade policial de plantão é desconhecer os efeitos que o poder dá à personalidade – e que facilmente inebriam o arbítrio.

     Alcoolismo é doença tipificada e pesquisas internacionais já constataram o óbvio: nos acidentes com vítimas fatais no qual o álcool está envolvido, um dos motoristas está em estado de embriaguez evidente, muitos destes – possivelmente a maioria - podem ser diagnosticados como alcoolistas. Esse é o motivo pelo qual outras nações, mais cuidadosas, diferenciaram o grau de embriaguez e punem mais severamente os reincidentes e aqueles que ingerem maior quantidade de álcool.

     Pode ser que se pense que ao instituir uma lei de tolerância zero o efeito imediato será a inibição de todos os bebedores, mas aí reside outro engano. Constrangem-se com o rigor das penalidades aqueles que têm com o álcool uma relação de autocontrole; aos bebedores contumazes isso nem dará cócegas. Enquanto os que bebem, mas jamais abusam do álcool, cuidarão até do antiséptico bucal, continuaremos a ver jovens morrerem em saídas de festas na qual a cerveja é grátis; ou postos de gasolina lotados de gente bebendo e dando risada da vida, da lei e de seus agentes. E para essa gurizada festiva ser detida, viver o entre e sai de cadeia será apenas mais uma aventura a ser registrada no Orkut. Como antibiótico tomado com freqüência, a ação da lei perderá completamente o efeito inibidor. Mesmo para o dependente crônico do álcool a cadeia não é remédio e poderá, sem resolver o problema, ainda causar graves conseqüências sociais, familiares, profissionais e econômicas.

     Somos um País criativo e se utilizássemos nossas características culturais poderíamos inovar em um sistema que efetivamente punisse os condutores alcoolizados. Brasileiro ama automóvel - ao qual dedica mais dinheiro e atenção do que à saúde ou mesmo ao amor . Pois por que não punir por aí? Alguém só é motorista quando está na condução do volante, tirando-lhe o veículo deixamos de ter o motorista. Recolher o automóvel por um tempo determinado seria uma pena socialmente eficaz por múltiplos motivos: carro recolhido não come e não dá gastos aos demais contribuintes. Enquanto o encarceramento de uma pessoa em nossas superlotadas cadeias custa mais do que a hospedagem num apart hotel, a guarda de um veículo é de total conta do proprietário. Além disso, por ser um objeto de desejo e de grande valor no imaginário coletivo, sua perda por um período representará para muitos maior privação e constrangimento do que passar algumas horas na cadeia.

     Do jeito que está, a "turma do Zeca Pagodinho" vai continuar deixando a vida lhes levar, enquanto os demais temerão até os bombons de licor e o vinho da eucaristia.

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