terça-feira, 14 de junho de 2011

Do Avesso E De Cabeça Para Baixo


     Sou de um tempo muito distante. Lembro dos bondes, do surgimento dos fogões a gás, das geladeiras abastecidas com enormes barras de gelo, trazidas em carroça; da primeira tv com seus chuviscos em preto e branco, coloridos por celofane degradee... A vida era assim: a gente ouvia no rádio o vai e vem da voz chiada do repórter Esso.

     Naquele tempo, em minha longínqua infância, os adultos, os mais velhos e os bem mais velhos eram considerados gente grande, pessoas responsáveis, só pelo fato de serem mais velhos - ninguém discutia isso. O lugar na mesa e nas conversas era algo sagrado - naquele mundo repleto de  coisas sagradas e indiscutíveis. Os mais antigos representavam a tradição e a sabedoria. A primazia era do mundo dessas pessoas mais velhas que, pensando agora, me pareciam muito mais velhas do que eram. Os adultos tinham que almoçar primeiro, pois iam trabalhar - coisa também sagrada. E porque trabalhavam, precisavam vestir roupas adequadas. A elegância tinha a seriedade adulta dos chapéus e do brilho dos sapatos lustrados. Crianças tinham apenas que ter bons modos. Essas usavam as mesmas roupas de sempre, enquanto lhes servissem e, se houvessem irmãos mais velhos, o que era o mais comum, seus trajes acabavam sendo herdados, surrados pelo uso.

     Criança era criança, jovem era jovem e adulto era adulto. Não se falava muito em adolescência. O tempo de crescer era marcado por rituais e insígnias, mas era um processo natural, biologicamente automático. A menina se tornava mocinha quando passava pela menarca e o menino quando mudava de voz e surgiam os primeiros fios de barba. Através dos marcadores biológicos, ingressavam como aprendizes no mundo adulto, dirigido ao casamento ou ao trabalho, sem conflitos. Não era aceitável ficar agarrado à saia da mãe ou à casa dos pais.

     Agora tudo parece estar exatamente ao contrário. Crianças a adolescentes são os donos da bola, do campo, do apito e do jogo, no qual ditam e mudam as regras, segundo a própria conveniência. Os jovens vivem num constante e imperativo precisar. Precisam do celular de última geração, da internet, das roupas de griffe; precisam de carro, dinheiro; precisam fazer festa e sexo todos os finais de semana. Precisam, se não morrem - de vergonha, de raiva ou de tédio. A adolescência é uma etapa tão lúdica que as crianças são cada vez mais precoces, se apressam para adolescerem e dessa etapa ninguém parece querer sair. Como os rituais de passagem foram prescritos, adultos de trinta anos continuam, às vezes, psicológica, social e financeiramente dependurados na mais dourada adolescência.

     Analisando tudo isto, me parece que a minha geração, que agora está dobrando o cabo das boas esperanças, acabou meio trapaceada. Vivemos a infância e a juventude beijando as mãos dos mais velhos, acatando ordens, pedindo licenças, nos curvando em desculpas e muito obrigados. Quando amadurecemos e pensamos que chegara nossa vez de ter lugar para sentar, inverteram as regras do jogo e a mesma minha turma continua em serviço. Continuamos firmes nas funções subalternas de apoio, de abastecimento e limpeza, sem revezamento.

     Podem me dizer que sou do tempo do avião a lenha ou do guaraná com rolha, mas eu acho que o mundo agora foi colocado do avesso e, não contente, virado de cabeça para baixo.

Publicada em 10/12/2005
Caderno Mulher - Jornal Agora

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