quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A TRIBO DO SOM

Caderno Mulher Interativa
 19/01/2008
    Uma das dificuldades para escrever – e tenho algumas – é escolher o tema mais adequado à semana. Aconteceu de novo: após duas crônicas quase concluídas, me deparei com a polêmica da tribo do som, que “dita” com tirania seu ritmo no verão do Cassino. A polêmica nem deveria ser tão grande já que os dispositivos legais vigentes seriam mais do que suficientes para enquadramento dos mais abusados. Mas já que a lei não tem sido aplicada com o rigor necessário, vou fazer minha parte para tentar explicar qual o problema dos excessos sonoros.


   Vou começar pelo óbvio. Em primeiro lugar: o som se propaga pelo ar – logo , ele invade territórios. O som é invasivo – como a fumaça. Os fumantes levaram décadas para aceitar que seu direito de fumar acabava exatamente no limite dos narizes alheios. Antes da derrota final, surgiram acordos que parecem até cômicos, como aquele que separava acentos em ônibus e aviões para os não fumantes. Parecia que a fumaça seria treinada para ficar apenas sobre a cabeça dos aditos. A lei com sua força conseguiu construir um senso comum fazendo vencer o direito à saúde – de todos.

   Explicar a lei física básica de que as ondas sonoras viajam pelo espaço parece servir para nada. Dizer a esse pessoal que o seu direito acaba onde começa o do outro – noção que deveriam ter aprendido na pré-escola ou antes mesmo de terem saído de casa, também não tem muito efeito: eles não estão nem aí para os bons modos. Aliás, sentem orgulho de exibir seus piores comportamentos.

    Não vou invadir a área da fonoaudiologia – a quem cabe explicar os danos auditivos irreversíveis desse lazer. Vou falar de minha especialidade e trazer um elemento novo ou pelo menos pouco divulgado. O padrão musical “bate-estaca” com ritmos monotonamente repetitivos tem um poder sobre o funcionamento cerebral, uma capacidade de induzir transe, quer dizer: alterar o estado de consciência. Este efeito tem sido pesquisado e comprovado cientificamente e é conhecido há muito tempo. Participei em 1984 do Congresso Internacional sobre Psicoterapia Folclórica, Transes Rituais e Terpsicoretranseterapia – no qual especialistas do Brasil e de vários países europeus se reuniram no Rio de Janeiro para estudar os transes rituais, com experiências práticas. Ali podemos vivenciar o efeito que determinados sons provocam na mente. No caso dos transes rituais eles são direcionados a produzir efeitos terapêuticos, o que não acontece com os transes livres induzidos pelo ritmo. É visível o estado alterado de consciência dos jovens entregues a ritmos alucinantes, potencializados pelo altíssimo volume. Para agravar a cena há sempre alguma droga presente, no mínimo a cerveja – que bebem como água e exibem como troféu. A turma do bate-estaca não consegue entender porque, além de não conseguir ouvir, está em transe.

   Como não adianta nem discutir com quem está com a mente alterada, o antítodo seria realmente contrapor uma música harmoniosa, à qual são normalmente refratários. Uma experiência realizada no metro de Nova York há alguns anos varreu literalmente os jovens infratores do local ao ambientar com música clássica nas estações. Na praia é mais difícil, por isto acho que resta só a esperança de que a lei faça sua parte.

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