Cuidar é tarefa normalmente
atribuída ao gênero feminino. São as mulheres as primeiras, se não as únicas,
convocadas a cuidar das crianças, dos doentes e dos velhos da família. Debrucei
minha pesquisa de mestrado sobre o sofrimento humano dos cuidadores, das
pessoas que se devotavam a cuidar de outro, no caso era de pacientes com
diabetes insulino- dependentes.
A questão de gênero ficou logo
evidente. Na primeira reunião com os cuidadores de pacientes com diabetes
surgiram meia dúzia de três ou quatro homens: eram maridos que cuidavam de suas
esposas diabéticas. Logo eles deixaram de participar, pois o foco da pesquisa
estava no sofrimento envolvido neste cuidado e eles talvez não se
identificassem com o tema. Davam conta das tarefas de cuidar, administravam
insulina, faziam a lida da casa, mas não deixavam suspensas suas vidas:
continuavam a dar suas saídas para a rua, encontrar amigos ou a trabalhar.
Enfim, não sacrificavam a existência em função da tarefa de cuidar.
As histórias das cuidadoras eram
bem diferentes. Convocadas todas em função do gênero, independente do tipo de
vínculo com o paciente diabético: esposas, mães, irmãs, cunhadas, noras,
filhas. Em todos os casos analisados as mulheres da família foram as primeiras
a serem chamadas e só na falta de elemento feminino é que passou a
responsabilidade do cuidado a ser atribuída a um homem. As cuidadoras deixavam
sua existência para trás e se entregavam à tarefa com exclusividade,
tornando-se muitas vezes reféns da função ou das exigências abusivas de
pacientes tirânicos. Com as reuniões de grupos essas pessoas puderam não
somente relatar suas vivências, debulhar suas dores e contribuir com a pesquisa,
mas também receberam apoio e orientação, diminuindo seu sofrimento.
Lembrei dessas vivências ao ler o
livro “Quem,eu?”, de Fernando Aguzzoli, um cuidador tão improvável quanto
ímpar. Explico. Improvável, pois, como acima relatei, os homens costumam se
escapar do cuidado humano e estaria ainda blindado da função por ser tão jovem.
Seria poupado de responsabilidades para poder estudar ou curtir suas festas.
Jovens não têm tempo a perder, precisam aproveitar, tirar da vida todos seus
proveitos. Pois Fernando não precisou de convocação e não se aproveitou desses
álibis sócio-familiares. Chamou a si mesmo para a responsabilidade, escolheu
livre e espontaneamente cuidar de sua avó Nilza e do alemão Alzheimer. O
cuidador improvável que ai surgia tornar-se-ia ímpar, pela forma como daria
conta da difícil missão.
Cuidar de alguém doente é um
sobrepeso na vida de qualquer pessoa, quando essa doença é crônica,
degenerativa e incurável a situação se torna mais penosamente crítica. A condição
crônica tira esperanças, sendo degenerativa envolve o desafio de enfrentar
dificuldades cada vez maiores com o avançar da desesperançada caminhada. Pois o
jovem Fernando foi à luta, não aceitou as prescrições dos livros, não permitiu
que sua avó fosse considerada morta, quando ainda estava viva. Fez de cada dia
uma aventura e transformou dificuldades em motivos para rir e para valorizar a
vida. Desvendou por conta própria o caminho para que sua amada avó Nilza pudesse
viver doses homeopáticas de valiosas alegrias e de profundo amor no epílogo de
sua existência. Esse cuidador ímpar chamado Fernando Aguzzoli com sua gratidão
e abnegação pela avó tornada filha dá uma lição de vida.
(publicada Jornal Agora 15/11/2014)
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