quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

O Cuidador Impar

Cuidar é tarefa normalmente atribuída ao gênero feminino. São as mulheres as primeiras, se não as únicas, convocadas a cuidar das crianças, dos doentes e dos velhos da família. Debrucei minha pesquisa de mestrado sobre o sofrimento humano dos cuidadores, das pessoas que se devotavam a cuidar de outro, no caso era de pacientes com diabetes insulino- dependentes.
A questão de gênero ficou logo evidente. Na primeira reunião com os cuidadores de pacientes com diabetes surgiram meia dúzia de três ou quatro homens: eram maridos que cuidavam de suas esposas diabéticas. Logo eles deixaram de participar, pois o foco da pesquisa estava no sofrimento envolvido neste cuidado e eles talvez não se identificassem com o tema. Davam conta das tarefas de cuidar, administravam insulina, faziam a lida da casa, mas não deixavam suspensas suas vidas: continuavam a dar suas saídas para a rua, encontrar amigos ou a trabalhar. Enfim, não sacrificavam a existência em função da tarefa de cuidar.
As histórias das cuidadoras eram bem diferentes. Convocadas todas em função do gênero, independente do tipo de vínculo com o paciente diabético: esposas, mães, irmãs, cunhadas, noras, filhas. Em todos os casos analisados as mulheres da família foram as primeiras a serem chamadas e só na falta de elemento feminino é que passou a responsabilidade do cuidado a ser atribuída a um homem. As cuidadoras deixavam sua existência para trás e se entregavam à tarefa com exclusividade, tornando-se muitas vezes reféns da função ou das exigências abusivas de pacientes tirânicos. Com as reuniões de grupos essas pessoas puderam não somente relatar suas vivências, debulhar suas dores e contribuir com a pesquisa, mas também receberam apoio e orientação, diminuindo seu sofrimento.
Lembrei dessas vivências ao ler o livro “Quem,eu?”, de Fernando Aguzzoli, um cuidador tão improvável quanto ímpar. Explico. Improvável, pois, como acima relatei, os homens costumam se escapar do cuidado humano e estaria ainda blindado da função por ser tão jovem. Seria poupado de responsabilidades para poder estudar ou curtir suas festas. Jovens não têm tempo a perder, precisam aproveitar, tirar da vida todos seus proveitos. Pois Fernando não precisou de convocação e não se aproveitou desses álibis sócio-familiares. Chamou a si mesmo para a responsabilidade, escolheu livre e espontaneamente cuidar de sua avó Nilza e do alemão Alzheimer. O cuidador improvável que ai surgia tornar-se-ia ímpar, pela forma como daria conta da difícil missão.

Cuidar de alguém doente é um sobrepeso na vida de qualquer pessoa, quando essa doença é crônica, degenerativa e incurável a situação se torna mais penosamente crítica. A condição crônica tira esperanças, sendo degenerativa envolve o desafio de enfrentar dificuldades cada vez maiores com o avançar da desesperançada caminhada. Pois o jovem Fernando foi à luta, não aceitou as prescrições dos livros, não permitiu que sua avó fosse considerada morta, quando ainda estava viva. Fez de cada dia uma aventura e transformou dificuldades em motivos para rir e para valorizar a vida. Desvendou por conta própria o caminho para que sua amada avó Nilza pudesse viver doses homeopáticas de valiosas alegrias e de profundo amor no epílogo de sua existência. Esse cuidador ímpar chamado Fernando Aguzzoli com sua gratidão e abnegação pela avó tornada filha dá uma lição de vida.
                               (publicada Jornal Agora 15/11/2014)

Nenhum comentário:

Postar um comentário