Dona Bárbara, em toda sua
conformada humildade, coberta de paciência, aguardava que a chamassem para
atendimento. Mandaram que esperasse e ela se postou a esperar e esperar, por um
dia e uma noite, inteiros. Quarou sua espera sem comer, sem beber e sem saber o
motivo de suas dores. Só no dia seguinte foi descoberta por uma enfermeira mais
atenta. Atendida, ainda permaneceu em observação no corredor do hospital até o
início da noite. Quando foi liberada, precisei conter a vontade de pedir aos
demais presentes uma salva de palmas pela libertação de Dona Bárbara, que
finalmente iria para o conforto de sua casa.
Aqui, num hospital público que se
destina a ensinar, estou no corredor dos desvalidos, ouvindo conversas de
pacientes e outros acompanhantes enfileirados em macas e cadeiras. É o
corredor-enfermaria, habitado por leitos de enfermos de todos os gêneros e com
variados diagnósticos ou desprovidos até disto. Apesar de ocupado dia e noite, o local não
perdeu sua função circulatória. Passa gente agoniada em busca de alguma solução
para seu sofrimento, inclusive assustadas crianças, de olhos arregalados diante
de tantos doentes acamados. Enfermeiras e auxiliares circulam apressadas, sempre
atribuladas, cruzando com alegres jovens de aventais brancos e estetoscópios no
pescoço. Estes têm olhar de paisagem, parecem indiferentes ao cenário e aos
sofridos personagens do caminho.
Vez ou outra, surge pequeno grupo
de aspirantes a doutor, que se detém num leito ou noutro e faz a anamnese do
paciente. O grupo de pé e o paciente acamado junto ao chão, espichando o
pescoço e os ouvidos para ver e ouvir o que lhe é dito. Como a conversa é
pública e a todos notória, fica-se a saber o que não se deve, nem se deseja.
Desse jeito, foi desnudada a história da depauperada paciente da maca ao lado:
ela é soropositiva e fugiu em sua última internação. Mais umas tantas perguntas
íntimas, sem toques ou exames, e o grupo se dispersa. Do rodízio de estudantes,
restam apenas duas moças que agora resolvem partir para examinar a paciente,
ali mesmo no corredor, sem pudor ou privacidade. Ao final, o alento da promessa
de ser mais bem cuidada com a acomodação digna num quarto, no andar de cima.
Fora promovida ao final da consulta.
Passa outra senhora acompanha
pela filha e de um leito se ouve a pergunta: “ela fez?”. Por aqui, mesmo os
mais prosaicos atos da intimidade passam a ser compartilhados nas conversas de
corredor. Sem constrangimento, alguns circulam de pijama, outros falam alto
como se estivessem na sala de casa, tal a naturalidade que vai se tornando a
promíscua convivência hospitalar. É
excesso de informação a todo o momento, por todos os lados.
Nos primeiros dias, o desconforto
de acompanhar alguém nesse ambiente é grande. Nada parece justificar tanto
descaso com a saúde das pessoas e com a sanidade do local. Só com o decorrer do
tempo, das semanas, vão se acumulando observações e brotando novas reflexões.
O corredor dos desvalidos vai
revelando o lado solidário do ser humano, quando desprovido de seus pertences e
de seus apegos. Acompanhantes circulam e se ajudam mutuamente; pacientes fazem
o mesmo, independente de estarem em situação de risco de contágio para si ou
para os demais. Num modelo meio indiano, parece que todos estão protegidos dos
vírus e bactérias circulantes por algo diferente ou até oposto às boas condutas
de enfermagem. A promiscuidade hospitalar do corredor dos desvalidos, ao final,
surge como uma experiência budista de aprendizado e transcendência.
(publicada Jornal Agora- em 18/04/2015)
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