Muita gente confunde saborear com
devorar. Cena de muitos anos atrás mostra bem a diferença. A história é de um
casal hospedado em casa de amigos. Acolhedores, os anfitriões, que tudo faziam
para agradar, resolveram oferecer um lanche com a especialidade da anfitriã: torta
fria, para maior infelicidade do marido hospedado, que detestava esse tipo de
torta. Com verdadeira ojeriza pelo prato, mas não desejando fazer desfeita, o
rapaz usou a estratégia de devorar logo e se livrar do problema. Em grandes
garfadas, comeu o mais rápido que pode, tentando nem sentir o gosto, como se
fora um remédio amargo. Num piscar de olhos pensou ter se visto livre do
sofrimento. Lego engano! Não houve nem sequer tempo para respirar seu alívio. A dona da casa, solícita e gentil, estava atenta
a tudo e a todos – como deve estar uma boa anfitriã. Ao perceber o prato tão
rapidamente esvaziado imaginou estar agradando: “como gostas de torta fria”! E foi
logo repondo mais uma porção, ainda mais generosa que a anterior, para total
desespero da educada criatura, que teve que penar com a reprise. Restou ao
comensal fazer render a torta, para não sofrer novas repetições. A anfitriã, ao
confundir devorar com saborear, acabou nem percebendo o desconforto que causara.
Confusão semelhante parecem fazer
as pessoas que, detestando determinada tarefa, a deixam sempre para depois;
procrastinam, acumulando ainda maior quantidade do serviço detestado. Um
exemplo cotidiano são os que não gostam de lavar louças: deixam para depois um
copo, dois copos, um prato, dez pratos... E vão acumulando a mistura de louças
sujas; talheres e pratos engordurados se juntam a copos, num empilhamento digno
de obra de arte abstrata. Sempre deixando da manhã para a tarde, da tarde para
a noite, para o dia seguinte, para depois do dia seguinte, talvez imaginando o
dia do nunca. Quem, sendo diferente, tenha o desprazer de conviver, pode pensar
que seja mera estratégia para transferir a função. Por vezes até vira uma
guerra doméstica. Mas esse tipo de atitude acontece até com quem mora só. A
pessoa vai usando todas as louças e talheres. Quando não mais restam copos,
passa a beber água em xícaras ou qualquer recipiente no qual se possa colocar
água. Faz isto até o dia em que nada mais reste senão louça suja. Aí, como num
ataque, coloca mãos à obra e, com profundo desgosto, encara a grande faxina.
Mas se não gosta, não seria mais fácil fazer em doses homeopáticas? Não seria
mais inteligente resolver o problema logo, cortando o mal pela raiz? Os
acumuladores de louça suja parecem discordar ou talvez sejam apenas masoquistas
e estejam curtindo saborosamente o sofrimento do martírio auto-induzido.
Divergências à parte, o fato é
que o prazer de sentir sabor não combina e até é o oposto da voracidade do
devorar, do engolir rápido e inteiro – seja lá o que for: uma comida ou uma
situação. Para o que se acha bom e gostoso, o melhor é saborear devagar,
desfrutando todas as nuances, prolongando a sensação de prazer. Agora quando a
coisa é amarga, tem gosto ruim ou é desagradável, o melhor mesmo é se despachar
do problema ou devorar logo, se for o caso. Pode parecer simples, mas muita
gente faz exatamente o contrário: devora sem sentir o gosto do que aprecia e
gasta a existência saboreando lentamente o que mais detesta. Vá entender a humanidade!
(publicada no Jornal Agora - em 14/11/2015)
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