quinta-feira, 3 de abril de 2014

Virada do Ano, Virada da Vida

Por mais racionais que sejamos, ou pretendamos ser, o final de cada ano provoca emoções, remexe sentimentos. É uma época que mistura confusamente no balaio de nossa existência coisas boas e ruins, emoções e sentimentos profundos mesclados simultaneamente à miscelânea das múltiplas preocupações cotidianas. Fazendo a análise do discurso reinante, a mensagem predominante é recheada de cenas doces, envolta em luminosas esperanças, restando encoberto o conteúdo lodoso dos sentimentos mais sombrios, das saudades dolorosas, das ausências amargas, dos conflitos familiares não resolvidos, das dificuldades financeiras recorrentes.
A virada do ano é o encontro fugaz dos ponteiros no alto do relógio, porém a meia noite de cada dia 31 de dezembro parece autorizar que se instaure uma nova vida, inteiramente nova.  A solene abertura de novo capítulo na existência de cada um, algumas páginas de mais um ano, simbolizam um marco e isto é o suficiente para que nessa rápida passagem se amparem decisões importantes, mudanças significativas, talvez até definitivas.
Podemos nos aproveitar do momento para definir um novo modo de levar a vida: deixar de fumar, por exemplo. Decisão tão importante quanto custosa (para quem fuma) pode ser incentivada pelo entusiasmo do Novo Ano, assim como outras tantas decisões significativas como instituir um programa de exercícios físicos, uma dieta mais saudável, ou, quem sabe, o tão necessário controle financeiro e, acima de tudo, o equilíbrio emocional. Mas, para qualquer mudança acontecer, há que se pensar, refletir, algo cada vez mais difícil na ebulição explosiva do bombardeio de estímulos agudos generalizados. Há tanto o que se fazer, tantas necessidades imediatas a serem atendidas: a tresloucada maratona de compras, a quase insana preparação da mais do que abundante ceia natalina,  a tensão de equalizar contas à pagar presentes e imediatamente futuras. Para complicar o quadro, muitas vezes o encontro natalino impõe viagem, com malas, bagagens e despesas adicionais. Superar tantos obstáculos só é possível com uma vigilante dose de bom senso, do contrário, torna-se um período tão turbulento que, decisivamente, não sobram neurônios nem serenidade para refletir.
Pois para quem tenha cabeça e reserve espaço para pensar, esse é momento mais do que indicado, uma das poucas épocas do ano que, quebrando a rotina alucinante dos compromissos cotidianos, inspira reflexões. E o que não nos faltam são questões a serem pensadas.

Guinadas existenciais são possíveis a qualquer momento, basta que se leve uma puxada de tapete ou se acenda a lâmpada da coragem para a transformação desejada, mas são mais propícias neste pedacinho de cada ano. Porém a mudança pode ser de qualquer grau, desde o mínimo até o máximo de 360, retornando ao ponto de partida. Afinal, nem todas as decisões representam rompimento com o que estava antes estabelecido, podem ser exatamente o contrário: a definitiva chegada ao derradeiro acordo consigo mesmo, o apaziguamento dos próprios conflitos, maior de todos os avanços existenciais. O importante, a mim parece, é que não se desperdice a magia do final do ano, não se banalize esses momentos e se tire algum significativo proveito, se não para virar a vida pelo avesso – extremo quase sempre contra-indiciado, pelo menos para ajustar o prumo desapercebidamente perdido, restituindo a importância e o significado real de nossa tão efêmera existência. 
                                                                    publicado em 27/12/2013

Tudo Pela Hora da Morte

O serviço era simples e demandaria menos de um dia de trabalho, mas o orçamento ultrapassou dois meses de salário mínimo. Nada que o justificasse a não ser a vontade do prestador que, sem constrangimento, orçou sua mão de obra a um custo mensal superior ao salário de um magistrado ou um Ministro. O disparate me pegou de surpresa. Poderia imaginar qualquer preço, menos o que me foi apresentado com a naturalidade dos justos e certos. A cena não é rara. Muitos leitores já se devem ter deparado com coisa semelhante.
 Está tudo pela hora da morte, principalmente imóveis e serviços. Estamos por aqui vivendo um momento de abusos generalizados. Insuflados por um otimismo exacerbado, nossos conterrâneos mudaram o patamar de seus valores. De cidade esquecida no tempo, de fim do mundo, virou subitamente o eldorado, a terra prometida. A virada não tem feito bem a nossa alma coletiva. Os mais gananciosos, que parecem ser muitos, subiram o preço de tudo. Aproveitando-se da oportunidade, estão indo com muita sede ao pote: imóveis são oferecidos a preços que não valem; serviços são cobrados como se todos os riograndinos e os que aqui vieram morar tivessem se tornado donos de poços de petróleo, sócios de estaleiros ou donos das plataformas produzidas. Após tanto conviver com as durezas das vacas magras, essa gente perdeu o senso. Enlouquecidos, acham ou pensam ter achado a galinha dos ovos de ouro e querem que ela produza minas de ouro e não apenas ofereça cotas periódicas de sua riqueza.
Certamente, pouca gente viu um filme verídico chamado “El baño Del Papa”, que retrata fato acontecido na cidade de Melo (Uruguai), no ano de 1988, quando da visita do Papa. É filme que vale ser visto pela arte, pelo misto de drama e comédia, que nos faz rir e chorar. A população da pobre cidade sobrevivia de pequenos contrabandos e escambos, quando foi noticiada a visita do Papa e a impressa passou a propagar as grandes oportunidades de negócios que isto ofereceria. O povo ensandecido gastou tudo o que tinha e mais o que não possuía para montar algum comércio e ganhar muito dinheiro com a rápida passagem do Pontífice. O final? Foi uma terrível decepção. Mas todo o ocorrido só foi possível por uma combinação de fatores: a mídia instigando e a população entrando num estado de coletivo desvario. Salvadas as proporções, nossa noiva do Mar vive um processo semelhante.

Mas tudo passa, absolutamente tudo: o que é ruim, passa para nosso alivio, e - do mesmo jeito – passa o que é bom, para nossa tristeza ou nosso maior aprendizado. Agora entramos na fase de momentânea vasante, com desemprego maciço dos trabalhadores temporários e, em conseqüência, diminuição do fluxo dos negócios. Tudo absolutamente natural, de acordo com a vocação dos empreendimentos instalados. Esses períodos de entressafra talvez ajustem o senso de medida e façam com que os exploradores em geral tomem a necessária dose de tenência. É uma esperança que nos resta, acalentada por um otimismo sensato e por uma visão de longo prazo. 
                                                                       publicado em 02/11/2013

Semeador de Bons Exemplos

Dentre as tantas coisas esquecidas nos porões do passado estão os conselhos e os bons exemplos. Esta é uma época em que valores e comportamentos são balizados pelas atitudes escandalosas das celebridades do momento. Para nossa pouca sorte, sucesso nada tem a ver com inteligência e menos ainda com sabedoria. Daí, essas pessoas de sucesso meteórico, alçados a nobre condição de formadores de opinião, muitas vezes esboçam pensamentos miúdos e são protagonistas de comportamentos lamentáveis.
Por outro lado, no seio das famílias, os pais se ocupam de quase tudo, animados com a ilusão de oferecer aos filhos uma vida sorvida na plenitude de eternas diversões. Bem poucos se preocupam de forjar valores em sua prole, oferecendo-lhes bons exemplos de vida. Os avós deixaram de ser a referência em sabedoria e experiência. Alguns estão ainda comprometidos com a profissão, sem tempo para cuidar ou conviver com netos; outros vivem a juventude tardia da terceira idade festiva, sem disposição para suas crianças. Os que conseguem tempo para oferecer, muitas vezes se deparam com netos que não querem mais ouvir velhas histórias, muito menos saber de conselhos sábios ou bons exemplos, abduzidos que estão pelo mundo da imagem, pelos estímulos de videogames, pelo universo da tecnologia.
 Já os professores, tão mal pagos, quanto excessivamente ocupados, não conseguem remendar as falhas deixadas pelas famílias. Desvalorizados social e economicamente, deixaram de ser modelo para seus alunos. Para piorar o que já estaria ruim, somos todos, de todas as faixas etárias, envolvidos por noticias que dão conta de constantes e chocantes maus exemplos ensejados por aqueles que deveriam ser os melhores dentre os melhores de nós, representando nossas maiores virtudes. Mas, bem o contrário, todos o sabemos, nossos representantes são o retrato fiel de nossos piores defeitos.

Nesse desalentador cenário, eis que, de súbito, nos surge um Papa que se ocupa de semear bons exemplos, atento até a pequenos detalhes. Porque se preocuparia ele de não usar excessivos luxos e confortos? Que diferença lhe faria desfilar numa limusine suntuosa, dormir em suíte presidencial e gozar outros requintes? Pois é bom pensar – e esse é momento oportuno para refletir - que há vários motivos para tal atitude. O primeiro, possivelmente, é porque o Pontífice seja um homem de alma simples. Por sua genuína simplicidade, pode – sem esforço e com absoluta naturalidade – fazer escolhas que para gente bem menos importante seria um sacrifício, senão um sacrilégio. Se, antes de ser Papa, seus comportamentos eram da esfera privada, hoje são públicos e por isso de grande relevância. Como líder religioso máximo e como chefe de estado é uma referência. Diferente de praticamente todos os demais lideres políticos ou religiosos, Francisco tem honrado a importância de seu papel, sendo coerente com sua índole e com a importância do lugar que hoje ocupa. Com a alegria e a alma tranqüila dos justos está semeando bons exemplos com atitudes de simplicidade e desapego às riquezas materiais. Infelizmente – sejamos realistas – é árido o terreno de nosso país, tão mal acostumado a ser aviltado pelo abuso ostensivo daqueles que deveriam nos inspirar e honrar. Resta desejar – quem sabe orar reza forte – que o semeador de bons exemplos possa operar o milagre de fazer vingar novos valores e ensejar uma onda de melhores comportamentos.
                                                                                       Publicado em 28/07/2013

Pátria Amada

Num tempo muito distante, o dia sete de setembro era celebrado cheio de orgulho e amor pela Pátria amada Brasil. Eram tempos de inocência e pudor. Não se sabia de tantos mal feitos, que não eram nem tão públicos e nem tão notórios. Tínhamos o coração cheio de esperanças, nos sentíamos os filhos amados de uma mãe gentil chamada Brasil. Estufávamos o peito e a plenos pulmões cantávamos de memória o Hino Nacional, o Hino da Independência e fechávamos com chave de ouro, entoando o Hino Rio-grandense. Pouco entendíamos daqueles versos cheios de palavras desconhecidas, mas animávamos a alma com o sentimento de amor pela terra em que nascêramos.  O mês de setembro reforçava isto com as celebrações do dia 7 e do dia 20.  
A data pátria era vivida quase sempre num dia frio, muito frio. Precisávamos enfrentar ventos gelados em fila, treinando e aguardando nosso momento solene de entrar na Rua Marechal Floriano e marchar no passo certo, desfilando para uma grande platéia e caprichando na frente do palanque oficial das autoridades. Só chuva impedia que se enfrentasse a jornada cívica, vivida com uma mistura de sentimentos intensos, envoltos em alegre entusiasmo. Era um dia especial, solene, e todos, por pouca idade que ainda tivéssemos, sentíamos isso. Aquele momento festivo envolvia certo sofrimento iniciado na véspera: acertar o uniforme que precisava estar completo sob pena de sofrer punição disciplinar, coisa muito temida, naquela época em que tudo parecia ser tão sério. Era preciso não esquecer os sapatos pretos caprichosamente engraxados para não fazer feio. Essa era uma etapa dura para os que contavam os tostões e nem sempre tinham toda a farda. Aguardar o começo do desfile poderia durar mais de hora, em pé, suportando gelados ventos, mas fazia parte quase natural do evento, na pré-história dos direitos humanos. O frio nas canelas, a briga com saias levantando pelo vento da esquina dos bancos, a fome e a sede eram sofrimentos que só faziam valorizar o orgulho juvenil. Era a época da moral e cívica, da ferrenha disciplina militar, ainda não maculadas pelas sombras dos anos de chumbo. Os duros tratos a que éramos submetidos nos fortaleciam, tornando mais rijos nosso caráter, pelo menos era isso que se esperava que acontecesse. Se havia sofrimento no esforço, maior era o júbilo da superação.
Todo o árduo exercício de civilidade, infelizmente, não resultou numa geração exemplar, bem se pode ver. Nesse país cada vez mais imperam eminências pardas e excelências de caráter duvidoso, avessos do ideal de ética, honestidade e respeito. O sentido simbólico da Independência do Brasil parece remoto, ultrapassado. Tiramos os laços de uma monarquia, mas permitimos que outros tiranos reinados se eternizassem, saqueando nossas riquezas e zombando de nosso povo sofrido. Que sentimento pode habitar nossa juventude diante do colapso moral instalado nas esferas oficiais?

A resposta tem vindo das ruas. As últimas manifestações coletivas misturaram protestos ordeiros com atitudes destrutivas de toda ordem. A insatisfação social pulsa em todas as gerações e não combina com festivas homenagens. Apesar de tão negativas circunstâncias, raiou a luz da esperança iluminando os jovens filhos da Pátria, que hão de fazer contente a mãe gentil, Brasil.

                                                Publicado em 07/09/2013

Os Sem Carro

Estou próxima, bem próxima de entrar em um grupo cada vez mais seleto: os sem carro. Está se tornando uma questão de atitude de vida. Qualquer um, por mais alienado que seja ou pretenda ser, consegue perceber o caos urbano decorrente do excesso de automóveis. Já chegamos a um absurdo  tal que os carros não conseguem fluir, não há lugar para estacionar, mas segue a indústria a despejar novas frotas a cada ano.
De minha parte, tenho o privilegio de poder caminhar até a maioria de meus destinos diários. Desfruto ainda a vantagem adicional de sentir prazer em caminhar, principalmente agora, com tantas novidades para ver no caminho, a cada dia. É um prédio que se foi, é outro que vai surgindo, gente diferente, múltiplos sotaques e carros de todos os tipos, por todos os lados. Essa parte do cenário não é muito agradável, mas chega a ser curiosa, pois chego a pé mais rápido, do que se tirasse o carro da garagem, aonde ele ainda sobrevive, aguardando que dele me desfaça definitivamente.
 Todo mundo está – ou parece estar - muito endinheirado, comprando carro zero quilômetro, abastecendo, circulando e abarrotando as ruas. Nunca dantes na historia deste país se viu isso, para deleite da presidente da Petrobrás, que se alegra ao ver os congestionamentos, indiferente aos estresses agudos por eles provocados.
Sinto certa saudade do tempo em que carro era luxo, coisa que se comprava com sacrifício e se usava com muita parcimônia, devido aos altos custos do combustível. Tempos não tão distantes, mas agora longínquos como a palavra parcimônia. Pensando bem, a gasolina está bem cara, mas parece que o “povo” não se importa, pois está ganhando bem, nesse país das maravilhas em que vivemos.
Enquanto escrevo, ouço um barulho de carro à porta de casa e vou até a janela olhar. Pasmem! É um catador de lixo motorizado. Não há o que não haja! Até os catadores já estão de automóvel. Aliás, contaram-me que no bolsa família também tem muito povo motorizado. Nas ocupações dos sem teto também o que não faltam são carros e motos. Não tem teto, mas tem carro, celular, TV, moto... Está certo, está certo, o sol, o céu e o automóvel “nasceram” para todos.
 De cima a baixo, há carros para todos os bolsos e gostos. Os “mais-mais” compram modelos de luxo, cada vez mais sofisticados e caros, dignos de quem possa gastar fortunas; os que menos podem compram modelos baratos, de preferência zero quilômetro – como se encontra nas portas de precárias moradias de periferia. Carro e celular, todo mundo tem ou em breve vai ter o seu. Todo mundo iludido, achando que vai dar para manter a farra de um mundo assim. Gente que ainda se ilude com o status emprestado pelo automóvel; gente que sustenta sua auto-estima amparada no carro que dirige. Gente que precisa disto e de tudo o mais que possa ser comprado e vendido na inventada felicidade do universo do insaciável consumo.

Pois agora, diferente de outras épocas, o maior luxo existencial é precisar menos e por isto, ter menos. O pensamento de vanguarda está no glamour da vida simples, que diminui compromissos e problemas e torna tudo mais fácil e, de quebra, mais saudável. Em relação ao carro, o benefício para a saúde de prescindir dele e caminhar mais nem precisa ser mencionado. Outro beneficio menos pensado é que ao se gastar menos, também se paga menos impostos, atitude política que serve de protesto contra os desmandos do governo. Logicamente, deixar de ter carro exige certa dose de autoconfiança, capaz de enfrentar a desvalorização social decorrente de passar a pertencer ao grupo dos desprovidos. Mas, para quem tem a audácia de pensar pela própria cabeça, essa é a parte mais fácil. 

Os Jovens de 29 Anos

Os padrões mudam com o passar dos anos, faz parte da transposição das épocas. De uns tempos para cá, por exemplo, se percebe que juventude vem se tornando uma faixa etária cada vez mais elástica. Agora, por lei, se estabelece que até 29 anos a pessoa seja jovem. Chega-se à fase balzaquiana da vida com direitos e vantagens especiais dadas a colegiais, igualados todos na ampla faixa dos 15 aos 29 anos.
 Até tempos recentes, rituais de passagem demarcavam momentos de vida, estabelecendo fronteiras entre uma fase e a seguinte. Crianças eram crianças, usavam roupas de criança, viviam liberdade vigiada, tinham direitos restritos e não gozavam acesso ao mundo adulto – universo das responsabilidades, das consequências e dos interesses sérios. Entre a vida infantil e a plena vida adulta, se espremia um transitório período de curta adolescência que, como febre, vinha agudo, forte e passava rapidamente, oprimido por repreensões de todo tipo: “deixe de ser infantil, você já não é mais criança”, “você ainda não é adulto para isso...”. Adolescência era o tempo de não ser ninguém, não poder mais brincar, mas ainda não gozar dos benefícios da maioridade. Não era um bom momento, ninguém quereria permanecer adolescente. Crescer e virar adulto trazia muito maiores vantagens. Os demarcadores de fronteira eram biológicos e etários: pela puberdade se deixava de ser criança e aos 18 anos, pelo ingresso no mundo do trabalho ou numa universidade, se abandonava a adolescência e assumia a maturidade adulta. A maioridade estabelecia uma condição adulta plena. Não se ficava “meio-adulto”, era preciso encarar a vida de frente, assumir conseqüências de seus atos, sem atenuantes. Não tomar rumo sério aos 18 anos era coisa preocupante e situação socialmente censurável.
Lembrando como acontecia a evolução do desenvolvimento até bem recentemente, dá para perceber a dimensão da mudança. Foi uma verdadeira virada. O ouro da existência, antes colocado na etapa adulta, está cada vez mais centrado na juventude, a qual tudo se permite e pouco se cobra. No grande baú da juventude e da vida estudantil estão alunos de primeiro grau, misturados com mestrandos e doutorandos, todos na mesma, desfrutando passe livre. Todos juntos e misturados como se estivessem em situações iguais, confusão típica desta época de muitas ações e raras reflexões.
Até quando, afinal de contas, alguém merece – ou precisa – ter proteção pela condição especial de sua “juventude”? Nas qualificações apresentadas em noticias de jornal, por exemplo, se confirma que identidade profissional se sobrepõe à condição etária: quem trabalha deixa de ser chamado “o jovem de 25 anos” para ser qualificado por sua profissão, seja pedreiro ou engenheiro. Quem tem profissão e vive de seu trabalho já não é mais nomeado como “jovem”, indiferente da pouca idade que possua. Como uma insígnia, o trabalho institui maturidade, estabelece plena condição de autonomia – ingrediente básico à vida adulta. Vale lembrar que se tem muita gente chegando aos 30 anos sem saber que rumo dar a sua existência, há um seleto pelotão de mesma idade com profissão definida, como advogados, médicos, professores, engenheiros, promotores, delegados, juízes e trabalhadores de todos os ramos e etc. Gente moça que se comporta e vive de forma adulta, para o bem geral da nação.

Também a graduação no nível superior de ensino estabelece (ou deveria estabelecer) uma nova identidade pessoal, mesmo que prossigam estudos de pós-graduação. Alunos de mestrado e doutorado deveriam ser chamados de pesquisadores, pois se dedicam à pesquisa, mas estão habilitados a desempenhar profissões ditas de nível superior. Mas são todos acomodados no confortável baú da vida estudantil: são todos estudantes. Essa juventude estendida leva a atrasos no desenvolvimento vital: as pessoas crescem, mas não amadurecem, resistem teimosamente a deixar o conforto e a proteção quase divina do lar paterno e das isenções legais. Talvez por isso se comportem coletivamente tantas vezes como rebeldes colegiais. Essa juventude estendida é o retrato fiel de uma sociedade permissiva, de valores confusos e conceitos equivocados.

Modo de Fazer

Em meus distantes tempos acadêmicos, descobri o sabor que se pode tirar de um mísero café instantâneo. Minha melhor colega de estudos era mestre no café batido. Quando o cansaço invadia a madrugada de estudos ela pegava uma xícara, colocava uma colher de café instantâneo, açúcar e algumas pitadas de água: batia, batia, batia, enquanto prosseguíamos sem a recitar a matéria estudada. Quando surgia um creme cor de café com leite, a colega o distribuía nas xícaras, colocava água quente e sorvíamos o mais doce energético, espantando o sono e revigorando o cérebro. O café nosso de cada dia ou a receita do mais simples dos bolos podem resultar muito diferentes conforme o modo como sejam feitos.
Nas situações mais delicadas da vida acontece o mesmo, o modo de fazer as coisas faz toda a diferença. Gestos simples podem se revelar mágicos ou desastrosos; palavras banais podem amparar ou produzir tragédias, transformando cenas cotidianas em momentos difíceis de esquecer, para o bem ou para o mal. Na semana que passou, por exemplo, a tripulação de um avião levou ao pé da letra orientações de segurança e, desinformada, agiu desastradamente com uma família. Num misto de insensibilidade e falta de senso, a equipe exorbitou no trato a uma criança com problemas de pele. A situação resultará em processo judicial e só não causará mais danos à criança vitimada pelo apoio solidário que lhe foi oferecido. Tudo poderia ter sido diferente, bastava uma pequena dose de bom senso evitando constrangimentos desnecessários.
Para nossa boa sorte, há situações em que ocorre exatamente o contrário: bons modos capazes de reverter situações adversas. Em minhas lembranças guardo a recordação de uma oficial de justiça com quem trabalhei na Justiça do Trabalho. Na época eu era uma jovem estudante universitária e ela me parecia muito mais velha do que deveria ser. Quando essa oficial assumiu sua função foi uma revolução no cumprimento dos mandatos. Até ali tudo era feito como devido, com as formalidades e desumanidades de estilo. Quem devia era cobrado, executado e pronto. Nada de excessos ou irregularidades, apenas o restrito cumprimento formal da lei. Pois chegou a nova oficial e tudo mudou radicalmente. Aquela senhora, que usava e abusava de diminutivos, tratava carinhosamente a todos e conseguia angariar simpatia mesmo dos mais renitentes devedores. Além do trato afetivo com que lidava com as pessoas, dava-se ao trabalho de sentar e gastar seu tempo buscando soluções no complicado orçamento dos executados. Caso possivelmente único na história das execuções judiciais: com equações financeiras, longa conversa e muitos cálculos, o devedor se convencia de que poderia pagar e, para pasmo geral da repartição, na maioria dos casos as mais difíceis dívidas eram cumpridas. Mesmo nos casos de penhora de bens aquela gentil criatura era capaz de tornar o ato menos dramático, encontrando soluções mais dignas. Quando de sua transferência para sua cidade de origem, não foram poucos os devedores que lamentaram sua perda. Ela fazia falta a todos: aos que esperavam ver o dinheiro que lhes era devido e aos que, pelos revezes da vida, de negociantes e patrões haviam se transformado em reles devedores da Justiça.
Cito o caso para mostrar que mesmo a complicada profissão de Oficial de Justiça, de cobrador judicial, pode ser executada de tal modo que amenize a dureza da função, revestindo de humanidade situações constrangedoras. Infelizmente, muitas vezes o que se vê na vida atribulada de todos os dias é exatamente o contrário: gente que desenvolve profissões humanísticas de forma fria, formal, burocrática. Pessoas que agem com completa indiferença aos dramas humanos que lhes passam à frente. Na esfera pessoal também sobram exemplos de maus modos de agir. Há tanta gente que esqueceu a noção de gentileza, de tolerância, de generosidade; gente que não sabe fazer agrados, mas abusa da capacidade de desagradar.

Muitas vezes não há nada de errado com o ato praticado em si mesmo, mas foi perdida a oportunidade de se fazer melhor, de se fazer o bem feito. A diferença entre a crueldade, o azedume ou a doçura da vida está na sutil maneira de agir, capaz de amenizar as durezas da existência com pequenas colheradas de gentileza.
                                                                              publicado 24/08/2013

O Dia de 23 Horas

Este será um domingo diferente, um dia de 23 horas. Se para muitos passará despercebido, para outro tanto de gente parecerá ser um ultraje, uma ofensa, um roubo. Isso acontece porque há pessoas que vivenciam essa troca como se experimentassem a síndrome da mudança rápida do fuso horário (chamada de “Jet lag”). Só que na Jet lag é preciso cruzar pelo menos dois fusos, o que quer dizer, que haja no mínimo uma diferença de 2 horas. Uma hora não costuma dar sinal algum. Aliás, para vivenciar essa alteração de uma hora de fuso não é preciso carimbar passaporte nem cruzar oceano, basta fazer o banal vôo de São Paulo a Campo Grande, no MS: uma hora de vôo e uma hora de fuso. É até curioso, dependendo do sentido; se embarca num horário, voando durante uma hora e chegando exatamente no mesmo horário à cidade destino, o que representa um ganho para quem deseja melhor aproveitar a viagem. Quem já passou pela experiência, bem sabe que não há dificuldade alguma, mesmo que poucos dias depois se alterne o percurso – como costuma acontecer aos viajantes.
 Os sintomas da rápida mudança de fuso variam dependendo do sentido em que se esteja viajando, se é “acelerando o dia”, voando em sentido anti-horário, ou o contrário, voando no sentido horário e aumentando as horas de um dia. Ainda podem ser influenciados pelo horário da partida, número de fusos cruzados e pela suscetibilidade individual do passageiro.
A mudança do fuso oficial, feita sempre em noite de sábado para domingo, não precisaria gerar demorado sofrimento nem produzir indignação. Afinal de contas, os dias de domingo são normalmente vividos com rotinas diferentes dos demais dias, inclusive em relação ao sono e a vigília. Isso facilitaria a adaptação. Mas parece que argumento algum consegue impedir que uma grande leva de gente proteste. Os que mais reclamam fazem parte do heterogêneo batalhão dos descontentes crônicos, pessoas que tem na reclamação um hábito, uma forma de ser, praticamente um estilo de vida. Protestam contra a troca de horário e também reclamam das alterações do calor, do frio, do vento, dos dias abafados. Reclamam do excesso disto, da falta daquilo. Reclamam, reclamam, reclamam... Alguns passam todo o verão lastimando a mudança de horário, tecendo uma ladainha de saudade do horário antigo. Para piorar a situação, quanto mais reclamam, mais sentem o desconforto relatado, pois retroalimentam o cérebro com a permanente atenção a seu mal estar. Talvez fosse de bom proveito saberem que a percepção que temos de nosso corpo e das situações que o cercam são profundamente afetadas pelas idéias que levamos na cabeça. Se estiver quente e ficarmos lembrando nossa mente disto, a todo instante, mais calor sentiremos. Se a noite foi curta e passamos o dia a blasfemar contra a mudança de fuso, apenas sentimos maior cansaço e sonolência.
O tempo cronológico é uma cadência percebida de modo sempre relativo, sensível a nosso bom humor ou descontentamento. A hora “roubada” neste final de semana não nos fará falta e se dissipará no correr dos dias. Esse despertar uma hora mais cedo, além de promover economia energética, pode nos oferecer o benefício de melhor aproveitarmos os primeiros raios de sol das manhãs da primavera e do verão, sem para isto precisarmos madrugar.

A vida é uma passagem, somos todos viajantes e mudanças de fuso fazem parte de nossa existência. 
                                                                                             Publicado 19/10/2013

O Aeroporto Está Parecendo Rodoviária


Há alguns dias, uma professora postou a foto de um passageiro de bermudas e regata, aguardando embarque em um aeroporto. Comentou seu desagrado de ter que compartilhar espaço com esse “Sr. Rodoviária”, como ela o chamou. O comentário foi inicialmente “curtido” e reforçado por vários de seus amigos, mas logo gerou uma onda de críticas. O mal estar da professora e de muita gente já havia sido antecipado há alguns anos pelo escritor Antonio Prata, que escreveu uma crônica com o mesmo titulo desta, em janeiro de 2011. Antecipava ele que a frase se tornaria o “você sabe com quem está falando?” do século XXI, de tão repetida que seria. Como se vê agora, certíssimo estava o autor, que anteviu os efeitos sociais gestados pelos novos emergentes sociais.
 Tem havido uma grande transformação em alguns aspectos de nossa sociedade, elevando o poder aquisitivo dos que antes quase nada possuíam e agora conseguem desfrutar muitos tipos de bens de consumo e circular em novos espaços públicos. Embora os muito ricos estejam ainda mais ricos e com isso vão construindo ilhas de isolamento, há momentos em que o encontro de classes é inevitável. Esse encontro tem gerado grande desconforto naqueles que estavam acostumados a usufruir uma exclusividade que chancelava sua condição diferenciada.
Espaços Vips em aeroportos continuam existindo para quem é “diferenciado” em alguns quesitos, como o padrão de seu cartão de crédito ou a compra de passagem na classe executiva internacional. Mas mesmo esses reservados já começam a ser facultados ao uso com o simples e caro pagamento de um ingresso. Assim, a exclusividade que tanto almejam algumas pessoas vai se esvaindo e os ditos emergentes também podem usufruir as regalias de salas Vips , desde que se disponham a pagar
Os emergentes, que saíram lá de baixo da escala social, não incomodam enquanto se tornam apenas consumidores, mas passam a ser um estorvo no momento em que sentam nas cadeiras antes reservadas para uso exclusivo de gente mais abonada. Essas levas de gente, com seus trajes e modos, sobrelota espaços, tira o conforto dos folgados que estavam até então muito bem acomodados.  A alguns, como no caso recém acontecido, o que mais incomoda são os trajes, num preconceito cheio de desinformação. Afinal, em lugares de circulação internacional, a variedade de roupas e hábitos é absolutamente normal.  Muitos viajantes andam com roupas amarfanhadas, gastas e até sujas com o natural despojamento de quem está só de passagem, peregrinando.  Os estrangeiros, no entanto, são sempre bem vindos e bem tratados por aqui, ainda não estejam cheirando bem e que seus países não nos retribuam a boa acolhida. Quanto aos comportamentos, maus modos são por aqui bem democráticos e gente bem nascida muitas vezes se mostra muito mal educada.

A questão é simplesmente territorial, os emergentes são sentidos como invasores do território alheio, de algo que não lhes pertence. Só que agora, também a eles pertence e como crianças pequenas que não aceitam dividir seus brinquedos reagem as pessoas que não estão suportando a situação. Essa tensão revela que vivemos por aqui um apartheid social, com divisões concretas, ainda que por vezes invisíveis.  Algo que precisa ser vencido e superado no imaginário coletivo, para que possamos – no futuro – ser um país realmente evoluído, em que rodoviárias e aeroportos sejam mais que semelhantes, sejam iguais lugares de embarque e desembarque de passageiros, só isso.
                                                                           (publicado em 22/03/2014)