sábado, 12 de dezembro de 2009

USURARIOS MODERNOS

     Em função dos estímulos ao crédito e do conseqüente aumento da inadimplência, frequentemente se fala do comportamento perdulário das pessoas que gastam compulsivamente. Na via contrária, os muito econômicos têm sido elogiados, quando isto remete a um projeto de gasto maior, uma organização de orçamento que seria a receita para um futuro de sucesso financeiro. A usura, economia obsessivamente neurótica, é pouco falada, talvez por parecer em extinção num mundo de febril consumismo. Entretanto, há uma formatação pós-moderna de usurários que está em franco crescimento.


    No estilo antigo, usurário era um tipo esdrúxulo: dono de sabida riqueza, vivia em condição miserável. Passava a vida ostentando trajes puídos, sapatos furados, comendo pão dormido a várias noites, tudo para amealhar ainda maiores economias. Seu estilo rústico, nos casos mais extremos, trazia odor característico da economia de água do banho e da falta de lavagem de suas desgastadas roupas. Usura era coisa notória, feia, indisfarçável. Alguns, por ironia ou por uma lição vinda da justiça divina, acabavam no final da vida descobrindo que sua fortuna se transformara em papel ou virara pó, pois alimentara as traças de seu colchão. Tão preocupados em segurar seus tostões, esqueciam de fazer o dinheiro circular, renovar as cédulas e atualizar seu valor. Passavam a vida como pobre e acabavam morrendo em cruel miséria.

    Nesta tecnológica pós-modernidade essa usura clássica foi sendo substituída por um comportamento de tipo misto. A combinação acontece em pessoas que, dotadas de sabida fortuna ou razoável acumulação financeira, se comportam de modo extremamente econômico em alguns momentos e noutros agem como pródigos gastadores. Economizam moedas, se regozijam de pedir desconto em valores ínfimos, sem perceber os efeitos e a deselegância de tal ato. Sua atitude faz parte de seu estilo de vida, amparada na ilusória justificativa de que é assim que se tornaram e se sustentam ricos. No instante seguinte, gastam valores absurdos em compras supérfluas. São perfumados usuários de grifes sofisticadas, hotéis de luxo, restaurantes muito caros. Comem e consomem de tudo o que é caríssimo, mas se sentem assaltados com o custo de uma consulta médica, de um tratamento dentário, da mensalidade da escola dos filhos.

     O usurário-perdulário faz seu dinheiro circular, redistribuindo seus recursos através de seus gastos, nisto é socialmente melhor do que o modelo antigo. Às vezes, se diz seguidor do que considera ser uma visão budista da existência, acha que o Universo está ocupado unicamente de conspirar a seu favor, reza o mantra do “venha a mim o Vosso Reino, mas seja feita a minha vontade”. Tudo gira ao redor do umbigo de seus desejos. Para ele há uma lógica dupla que rege a sua vida e a alheia: para si, tudo de bom, do melhor, do mais caro; para o outro – o que sobrar. Como acha que nada está sobrando, pois tudo o que possui pode vir eventualmente a lhe fazer falta, nega com genuína naturalidade os pedidos de ajuda ou colaboração, independente do mérito da causa ou do grau de dificuldade alheia.

     Seu raciocínio econômico não tem pé na lógica matemática e nem cabeça em conceitos financeiros, pois é guiado pelo nexo de uma visão egocêntrica. Essa característica costuma se tornar aparente nesta época natalina, quando muitos pedidos de apoio lhe são dirigidos. Evidentemente, coisa que um usurário-pródigo não suporta é ter que doar qualquer coisa. Doe-lhe corpo e alma ter que dar sem receber. É bem característico que seja avesso a atos de generosidade, pensa que é pobre quem quer e rico quem merece. Quando é abordado com algum pedido, parece estar tendo um chilique, transborda em queixas de suas grandes dificuldades financeiras. Sem pudor fala de suas despesas, para no momento seguinte, com igual falta de constrangimento comentar como pagou caro para tomar água mineral em Dubai. Chora tanto o custo do IPVA de seu novo carro novo ou o valor do imposto de renda a pagar, que desperta até pena. Quem vai lhe pedir ajuda corre o risco de acabar se sentindo tão tocado que acabe por lhe oferecer algum empréstimo.

     Essa atitude contraditória em relação ao valor do dinheiro era retratada de modo cômico num antigo quadro humorístico, que encenava o encontro do primo rico com o primo pobre. O que na época soava absurdo e por isto nos fazia rir, hoje está se tornando freqüente o bastante para ser considerado “normal”, não fazer graça e nem ser observado. Pois fica a reflexão para que não prolifere ainda mais esta forma anti-social e anti-solidária de se relacionar com o dinheiro.

publicada Jornal Agora
Caderno Mulher
12/12/2009

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

TRAIÇÕES DA MEMÓRIA

     Esquecer o nome de alguém, ou nem conseguir se lembrar de quem se trata a pessoa, pode ser bem constrangedor, nos fazendo ficar à deriva numa conversa que soa interminável. Enquanto nos digladiamos escrutinado a memória sem conseguir localizar afinal de onde vem a criatura, ela continua a nos falar animadamente de nossa vida, demonstrando ser alguém íntimo e familiar. Coisa bem terrível e, no entanto, não tão rara.


     Mais complicado é quando se esquece o aniversário de uma pessoa amada. Isso costuma gerar amargas cobranças e prolongados ressentimentos, sendo interpretado como fruto de desconsideração ou prova de falta de amor.

     Nos ingênuos tempos da brilhantina, o máximo de trauma familiar era se esquecer de buscar os filhos na escola. Fato acontecido com muita gente de boa índole e coração amoroso. A criança acabrunhada, beiçuda, cabisbaixa ou em choro inconsolável, acompanhada por uma professora de braços cruzados, sobrancelhas em riste e semblante de reprovação, esperava quem, esbaforido, descabelado e coberto de vergonha, chegava atrasado para buscar o aluno após o horário estabelecido. Inútil era buscar qualquer explicação que justificasse a constrangedora falha, colocada na condição de indesculpável. Dependendo da fragilidade subjetiva, a situação poderia fazer marca e se tornar uma catástrofe psicológica na vida da criança ou apenas fazer parte do anedotário das situações familiares, coisa a ser recontada com ares de graça em fases bem posteriores da existência.

     Nesses tempos mais recentes, entre tantas coisas inconcebíveis, surgiu um tipo de esquecimento até então impensável. Crianças bem pequenas, na maioria das vezes bebês, morrem por serem esquecidos dentro do carro. O espanto indignado dos primeiros casos levou a que fossem tratados como suspeitos de filicídio. A repetição fez deixar claro que este tipo de tragédia não era gerado por um desejo inconsciente de matar, mas por uma falha, um cruel lapso de memória. O roteiro dos casos relatados traz um dado unânime: a mudança de rotina fez com que fosse esquecida a passagem e o desembarque da criança na escolinha.

     O ato de levar os filhos para a escola ou para a creche é algo tão automático quanto o escovar os dentes, feito sem cerimônias ou mesmo qualquer forma comunicação. É quase uma entrega, feita às pressas, com o carro mal estacionado, às vezes até no meio da rua. Enquanto a criança vai sendo despejada, o pensamento continua conectado com os quefazeres do cotidiano. Na memória esse tipo de tarefa repetida diariamente fica arquivado entre atos automáticos, aos quais não se precisa dedicar atenção por ser feito “naturalmente”. Aí reside o perigo – agora mais uma vez dramaticamente confirmado. As crianças que já caminham ou falam tem recursos de autodefesa para se desvencilharem, mas os pequenos são completamente reféns da atenção alheia.

     As falhas da memória encontram na psicanálise explicações quase canônicas, associadas a motivações do imperativo inconsciente, senhor de todas as causas. Por esta leitura sempre sobrarão suspeitas para nossos lapsos ou motivos submersos trazidos à tona pelas falhas de nossos atos.

     O arquivo de nossas vivências é poderoso e complexo, mas por mecanismos neurofisiológicos ou por motivos inconscientes está sujeito a entrar em colapso diante das sobrecargas, das chuvas e tempestades que nos castigam. A valiosa memória é capaz de nos trapacear, de bloquear conteúdos importantes, embaralhar lembranças, acrescentar elementos inexistentes (falsas memórias) ou sofrer breves panes. Pequenas falhas, mínimos esquecimentos, podem acabar tendo grande efeito e até resultar em tragédias. Precisamos assumir que a memória não é 100% confiável, como gostaríamos que fosse.

     Saber disto talvez ajude a ter maior tolerância com os esquecimentos cotidianos mais banais – que não precisão ser tão dramatizados - e ter um redobrado zelo diante de situações que insistentemente tem se revelado gravemente perigosas, tragicamente fatais.

Publicada no Caderno Mulher
Jornal Agora 28/11/2009 

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A BARBARIE DA SAIA CURTA

      Pouca gente poderia imaginar que saia curta fosse capaz de provocar alvoroço. Afinal de contas, por estas bandas do equador, corpo nu está disponível sem censura em qualquer lugar. Desnudas e provocantes circulam na tela de TV e fora dela. Atitudes de sensualidade levemente vulgar ou explicitamente grosseira fazem parte da performance de mulheres famosas em propagandas de todo tipo de produto. Qualquer motivo é pretexto para liberar geral, corpo e libido, antes, durante e depois do carnaval. Sem falar nas letras de músicas ou das danças de conteúdos explicitamente sexuais, como aquela “na boquinha da garrafa” que por algum tempo podia ser tocada e dançada por toda gente até em festas infantis.


    Pois num contexto destes, como não se espantar com o escândalo provocado por uma moça de pernas de fora no ambiente jovem de uma universidade? Reflito sobre o fato, imaginando os atos a partir dos fragmentos divulgados mundo afora:

ATO 1:

    A cena não foi de improviso. Dá para imaginar que a preparação possa ter começado bem antes. A moça, moradora em pobre periferia, demoradamente escolheu seu melhor traje. Cheia de faceirice, mirou-se de cima a baixo sorrindo para o espelho, virou-se de um lado e de outro, até se olhou de costas. Achou que estava linda e maravilhosa em seu vestido vermelho, justinho e curtinho como lhe parecia ser adequado à ocasião. Fazendo caras e bocas, mandou beijinhos para si mesma e saiu confiante de que iria abalar a torcida. Rebolando e fazendo pose sentia-se a última bolachinha do pacote, a coca-cola do deserto. Afinal, estava vestida para festa, do jeito e da maneira com poderia ir aos populares bailes funkes, tão comuns na zona em que mora. Entre o ambiente da universidade e a pista de dança não havia muita diferença para sua cabeça alourada pela química comprada a pouco preço na farmácia do bairro.

ATO 2:

    Seria um dia como outro qualquer na universidade que se segura no modesto 159º lugar entre as 175 universidades do país. Tudo estava normal até que a turminha solta dos corredores reparou na figura destoante e logo foi deflagrando comentários, cutucões , risadas e reações que foram se fortalecendo em eco.

    No burburinho, ninguém pareceu ter outra coisa a fazer ou pensar a não ser se envolver na baderna formada. No inicio, o movimento deve ter aguçado ainda mais a exibição da garota de periferia, que interpretou o nervosismo geral como sinal evidente de seu sucesso: estava abalando as estruturas – as grosserias verbais lhe eram formas de elogio familiar, fazem parte do refrão de músicas bastante tocadas. Mas o grupo foi tomando corpo e adquiriu outro senso e ânimo. Em efeito de maré, a onda ganhou força e da marolinha maldosa de alguns se tornou uma tsunami violenta de gente irada e enlouquecida. A multidão feita em corpo e coro encontrou ali sua Geni e passou a cuspir-lhe ofensas mais agressivas e lhe jogar todas as pedras. Assim como um dia jovens incendiaram um índio porque o confundiram com um mendigo, desta vez apedrejaram a estudante porque acharam que, pela roupa e pelos gestos, seria uma prostituta e isto autorizaria que contra ela qualquer coisa pudesse ser dita ou feita. A coisa virou um playground de adolescentes que queriam simplesmente se divertir com o fato novo do momento. Como não surgiu o grupo do deixa disto, os poucos anjos da guarda de plantão tiveram que recorrer à intervenção do agente de autoridade policial para impedir que a coisa chegasse ao nível de selvageria.

   O primeiro ato retrata a dificuldade da jovem de discriminar diferenças necessárias, algo muito freqüente nas pessoas em geral, mas muito especialmente em quem ainda tem pouca experiência na vida. Houve uma ingenuidade maliciosa em suas atitudes provocativas, o que enseja uma mistura de um punhado de culpa e uma porção de inocência. Infelizmente a notoriedade do caso poderá reforçar ainda mais o lado exibicionista da moça e dificultar sua busca por formação universitária.

    Já o ato seguinte, o movimento coletivo não me parece fruto de uma intenção moralizadora, mas simplesmente ensejado pelo espírito de brincadeira sádica. Do grande grupo, apenas uns eram os protagonistas, tinham a intolerância e a maldade conscientes, os demais foram meros figurantes, agindo sem se darem conta da gravidade de suas atitudes e confirmando o quanto podem ser potencialmente perigosos ânimos exaltados em ajuntamentos humanos.

    Entre inocências e culpas, a situação enseja uma autocrítica coletiva necessária, que nos provoque interrogações a serem respondidas: que jovens estamos criando? Aonde temos coletivamente errado para fragilizar tanto a formação subjetiva, emocional, afetiva, moral de nossa juventude? Quando o ambiente universitário é palco de uma situação de tamanho excesso de intolerância, que poderemos esperar de nosso futuro?
publicado caderno mulher
Jornal Agora
14/11/2009

sábado, 31 de outubro de 2009

LIVRE ARBÍTRIO

                                  O livre arbítrio está em franca extinção, pelo menos no sentido moral terreno.


     A liberdade de decidir agoniza, ceifada a golpes de foice diários. No universo coletivo, importantes Comissões de Inquérito funcionam como conclaves daquele trio de macaquinhos cegos, surdos e mudos: ninguém viu, ouviu ou falou coisa alguma. A turma do faz de conta, fiéis escudeiros de seus superiores são apenas marionetes reféns de verdades previamente estabelecidas. Sustentam discursos caóticos para justificarem decisões amparadas em disparates. Saindo dos maus exemplos apresentados pelo festivo andar de cima, percorremos um caminho de obstáculos para garantir o exercício da liberdade de nosso arbítrio.

    Vivemos a maior parte de nossas horas ligados num tipo de piloto automático, sem sequer nos darmos conta de milhares de pequenas escolhas que vamos fazendo. Essa economia mental faz com que ao final de um dia recheado de afazeres tenhamos a impressão de absoluto vazio. Não fizemos nada a que pudéssemos atribuir algum sentido. Andamos para lá e para cá, percorremos caminhos rotineiros, dobrando à esquerda, à direita, cumprindo rotinas e compromissos, sem nada pensar. Almoçamos e jantamos indiferentes diante do bombardeio de noticias catastróficas apresentadas pelos telejornais. Se não pensamos, é como se nem existíssemos. Nesse modo de viver nosso livre arbítrio permanece em estado de espera, com aquela lusinha piscante apenas alertando sua existência. Assim se passam a maioria das horas de nossos valiosos dias e os dias de nossa transitória existência.

     Mas vez ou outra ligamos nossos sensores para fazer deliberar alguma coisa, para tomar alguma atitude. É aí que se apresentam outras dificuldades. Quando nos escapamos dos automatismos, caímos no universo das escolhas cegas.

     Não é fácil decidir neste tempo em que a liberdade está apenas na aparência de coisas apresentadas em linguagem estrangeira, letras microscópicas de rodapé de página ou enigmáticos códigos alfanuméricos. Para complicar um pouco mais, somos estimulados a pensar que podemos ser salvos por alguém que nos conhece melhor do que nós próprios: são os especialistas, consultores e analistas de todas as espécies, que com suas batutas mágicas orquestram escolhas e decisões. E se seguirmos seus sábios conselhos, estaremos a salvo de nós mesmos, embora completamente perdidos naquilo que, em princípio, era a essência da vida: a nossa preciosa liberdade de pensamento.

     Estamos ficando demasiada e perigosamente acostumados a lavar as mãos, fechar os olhos, tapar os ouvidos, cruzar os braços e transferir responsabilidades. Será que não é o momento de tentarmos preservar nosso sagrado direito de existir, de fazer nossas escolhas, ainda que disto resulte dar mancadas, cometer equívocos, fazer o papel de Mariazinha ou Joãozinho do passo certo?

     A vida é valiosa e precioso é o direito de escolher, desde as menores e mais prosaicas trivialidades do dia a dia, até – principalmente - as questões mais fundamentais, aquelas que podem vir a justificar nossa existência ou comprometer moralmente nossa história. Enquanto tivermos ar para respirar e nos for concedido o dom da lucidez, ainda teremos chances de saber diferenciar a estrada do bem do caminho oposto, obscuro, mas com claros sinais de levar para um rumo nebuloso. Seremos capazes de escolher entre nos associarmos a pessoas iluminadas, transparentes, honestas ou nos juntarmos ao grupo cada vez mais numeroso dos Judas modernos, dos fariseus de gravata, optando neste caso por ancorar a vida numa filosofia de resultados, na qual os fins justifiquem os meios – por piores que sejam estes.

Publicado: Caderno Mulher
Jornal Agora 31/10/2009                           

sábado, 17 de outubro de 2009

SIM, NÓS ACREDITAMOS!

     Deus é brasileiro, nós dizemos, repetimos e acreditamos. Deus nasceu aqui, Ele é nosso. Pronto!

     Por isso, inventamos coisas que ninguém no mundo pensou e que só aqui funcionam. E se não funcionam plenamente nossas criações geniais, que nos importa? O que vale é que nós acreditamos e nos basta isto. Somos movidos por uma fé inquebrantável.
    Um bom exemplo disto é que criamos o mais fantástico sistema de votação eleitoral. Não precisamos ter a trabalheira demorada de contar, recontar, conferir. Nossas eleições são sem cédulas, pós-modernas, totalmente digitais e nós acreditamos cem por cento na idoneidade de quem fez o programa e em todos que o controlam, pois sabemos que, seja lá quem for, são criaturas de ilibada conduta. Acreditamos, temos total fé em Deus e em nosso infalível, inviolável sistema eleitoral e em todas as gentes que dele se ocupam e que dele dependem.
    Os outros, aqueles alienígenas estrangeiros, vêm aqui, olham, bisbilhotam, mas nada entendem. Eles, criadores de céus e terras, inventores de hardwares e softwares, não conseguem decifrar nossa genialidade. Retornam a seus países, enrolados em sua racionalidade obtusa, incapazes de copiar, de reproduzir nossa agilidade. Continuam votando em grandes cédulas de papel e, pasmem, até lambendo os dedos para contar os votos manualmente. Como podem? Falta-lhes o que temos para dar e vender: falta-lhes fé. São dignos de pena. Eles não acreditam em votos que não sejam palpáveis, contáveis e recontáveis por várias mãos. Pobres povos ricos!
    Na área da Educação, inventamos o originalíssimo vestibular, pois não copiaríamos modelos estrangeiros. Temos mais fé em nosso taco, em nossa bola, em nossa ginga. Por aqui, cada universidade faz de seu jeito e a seu tempo, dando oportunidade para que os estudantes possam viajar pela extensa república dos estados desunidos, tentando exame aqui e acolá, próximo e alhures. Além desse aspecto turístico, o modelo criado possibilitou novos filões no mercado de cursinhos e apostilas. Temos fé de que este é um sistema muito melhor do que o de outras terras e de suas velhacas universidades; o jeito deles não nos serve.
    Sabe-se lá porque, mas ainda com toda a certeza e fé na boa vontade das ordens superiores, surgiu a brilhante idéia de criar mais uma prova, para tornar nosso excelente sistema ainda melhor.
    Na capital desta grande república, um dedicado grupo de especialistas de notório saber pedagógico elaborou um novo sistema de avaliação. A novidade logo foi absorvida, com a total confiança que sempre nos anima. Tudo ia maravilhosamente bem, como já é de nosso costume, até que uns amadores – só mesmo eles – tiveram a imprudente idéia de furtar um exemplar da nova prova. Ora vejamos! Só podiam ser amadores. Profissionais não seriam capazes de tamanha ousadia. Mas eles, meia dúzia de três ou quatro, fizeram a estripulia de tentar puxar nosso tapete, burlando a segurança das câmeras e fazendo escárnio da fé que temos em nossas instituições públicas e nas empresas que, por nos servirem, gozam de idêntico prestígio.
     E como ficaremos agora? Respondo eu sem titubear: ficaremos na mesma.
    Nós continuaremos a acreditar e essa boa fé nos protegerá.
    Nada e ninguém, nenhum escândalo, nenhuma falcatrua, vai nos fazer deixar de acreditar nas idôneas autoridades que nos governam, sempre imbuídas de boas intenções, elevado espírito público e eficientes projetos. Nossa fé canônica os reveste de uma plena e eterna confiança.
    Sim! Nós acreditamos.* Tudo segue absolutamente como antes estava, pois Deus é brasileiro e nossa fé eternamente inabalável.
    Amém!
(*também acreditamos em coelhinho da páscoa, papai Noel, etc,etc)
Publicado Jornal Agora
Caderno Mulher 17/10/2009

sábado, 3 de outubro de 2009

REENCONTRO

     Publicada Caderno Mulher
Jornal Agora 03/10/2009
     Após uma retirada necessária, retorno de uma ausência que eu pensava seria definitiva.


     Há momentos em que a vida nos é apresentada na amplitude de céu de brigadeiro, com amplas latitudes e longitudes existenciais; noutros se fecha o horizonte, restando-nos escassas possibilidades. Como numa prova de colégio, é optar por isto ou aquilo ou ainda aquilo outro. Se nenhuma das três ou quatro alternativas nos servir plenamente podemos fechar os olhos e contar: uni duni tê salame minguê a escolhida foi você. E seja lá o que Deus quiser – e que Ele permaneça conosco em nosso rumo forçado.

    Esses momentos uni duni tê são orquestrados pelo senhor destino, escapam do alcance de nossas mãos e da força de nossa mente. Este senhor instável e poderoso é capaz de traçar inesperadas rotas, estabelecendo novos contornos e fronteiras ao nosso arbítrio, deixando nítida apenas a certeza da fragilidade da existência. É ele quem marca ritmos ao curso dos ventos, brisas e de alguns fortes tornados que vão tocando nossa vida – às vezes de forma saborosamente amena e serena, noutras absurdamente turbulenta. Pois foi o regente dos humores do tempo e da vida quem arbitrou algumas condições muito adversas que me impediram de continuar a prazerosa atividade de escrever.

     Levo a sério minhas decisões, assumo minhas atitudes como se fossem definitivas e irreversíveis, mesmo aquelas que fui constrangida a tomar e que seriam de minha vontade poder modificar.

     Irreversível soa radical, mas, pensando bem, quão poucas são as oportunidades de reverter escolhas importantes? Claro que melhor seria poder ir e vir, quando e como se desejasse, encontrando tudo e todos exatamente como estavam em nossa partida. Não é assim que funciona a vida, tão rápida e transitória. Sob efeito do tempo passado, não fica pedra sobre pedra. Prédios são arruinados, móveis trocados e as pessoas tornam-se outras. Quando nos dispomos a uma ausência, quando nos retiramos, a vida segue seu curso, fluindo por entre as mudanças das cores das estações e nada, absolutamente nada, fica exatamente onde antes estava. Por isto, reverter decisões ou situações pode não ser impossível, mas é, no mais das vezes, algo que precise ser pensado como muito improvável.

     Este pensamento, entretanto, não me impede de manter um quinhão valioso de liberdade, ou de esperança, que me permita a possibilidade de adiante mudar de idéia. Não sou refém de minhas escolhas, aliás, esta é uma das preciosas oportunidades que temos na vida. Incoerente? Não. Tomo decisões com a firmeza de quem tem certeza do que faz e não vai se arrepender do que está feito. Mas se por um capricho da vida ou por algum aprendizado posterior, perceba que posso corrigir ou mudar alguma coisa, porque não o fazer?

     Não confundir este comportamento com aquela atitude de estar “dando um tempo”. Não faço parte da numerosa turma que “dá um tempo”, dos que querem ir sem ir ou ficar sem ficar. Esses pretendem driblar a responsabilidade de escolhas, imaginando assim se esquivarem de suas consequências. Diferente disto é assumir os custos e benefícios do compromisso de decidir e ter a coragem de manter a liberdade de, diante de outra situação ou momento, poder mudar de idéia.

     Dei por encerrado um trabalho, mas passados longos e rápidos dez meses, abriu-se a vida em novas possibilidades e estou retornando. Nesse período muitas coisas mudaram, até a Língua Portuguesa foi alterada e terei que me ajustar a estas e outras transformações.

     Retorno refeita, animada com o incentivo que recebi dos leitores durante minha ausência e muito grata pela oportunidade de voltar.

     É precioso poder reencontrar este espaço e muito bom estar de volta!

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

AFILHADOS NATALINOS

Caderno Mulher Interativa
22/12/2007
    Ações solidárias se intensificam nesta época de Natal. Muitos são os apelos que podem ser atendidos na generosidade de apenas um quilo de alimento. Nós – os aquinhoados com boas camas e boas mesas – podemos aplacar um pouco do nossa culpa social ajudando em cotas mínimas aos que de tudo necessitam. Essa desagradável culpa não é decorrente de sermos responsáveis pela pobreza alheia, mas por sermos responsáveis pela situação confortável que desfrutamos. Nos é fácil fazer alguma coisa; é muito fácil fazer qualquer coisa – pois oportunidades não nos faltam e são oferecidas a todo momento. Há um clamor para que, ao menos por esses dias, não haja fome ou se diminua a miséria dessa gente que costuma passar a vida invisível, sobrevivendo em periferias física ou socialmente distantes. Carrinhos de compras ficam lotados nas portas de supermercados, arrecadando donativos, num movimento feito no coletivo, plural amplo que de quilo em quilo acaba contado às toneladas.


    Entretanto, há algumas formas de solidariedade personificadas, que tornam presente a figura dos destinatários. É o caso das ações de apadrinhamento natalino. Nelas as instituições cadastram os beneficiários-afilhados e um pequeno papel é entregue aos padrinhos/madrinhas, com dados básicos do afilhado natalino: idade, tamanho de roupas e calçados. Essa aproximação visual ou imaginária transforma a ação de doar em ato de presentear, de agradar, de mimosear alguém.

    Doar é coisa mais despachada, que se conclui em só um gesto – coisa rápida – o que não diminui seu valor e sua generosidade. Mas presentear é um tipo diferente de oferta, mais envolvente e comprometedor. Se precisa ter senso e medida para fazer a coisa. No apadrinhamento solidário se estabelece essa aliança de compromisso – em qualquer coisa deixa de servir; o genérico e o indeterminado não se encaixam. Há um carinho, um cuidado que demanda que se gaste um tempo de nossa existência com este outro ser, que passa a ter nome e corpo. Essa personalização faz com que a doação deixe de ser um totalmente anônimo e com que as mãos envolvidas de alguma forma se toquem, rompendo a separação invisível, mas muito concreta entre o mundo dos que têm e o dos que tão pouco possuem.

    Independente da forma que nos seja permitido agir, o importante é que se faça alguma coisa – o melhor que nos seja possível. O fundamental é que o Natal seja cada vez mais solidário e que esse espírito semeie frutos duradouros, capazes de vingar e florescer em outros momentos do ano. Esses são os meus votos de um Feliz Natal: recheado de generosidade e solidariedade.

FELIZES ERROS NOVOS

Caderno Mulher Interativa
05/01/2008
   A celebração festiva da virada do ano se ajusta muito bem a mudanças de rumo na vida. Em meio ao show pirotécnico do dia 31, parece de especial valor olhar para o céu e dizer para si mesmo: de hoje em diante passarei a fazer isto ou deixarei de fazer aquilo. Lançar um compromisso derradeiro ao infinito e todas as suas estrelas. Lógico que se pode fechar e abrir ciclos a qualquer momento do ano. Essa é das poucas liberdades concedidas por nosso arbítrio – que pensamos ser totalmente livre. Podemos fazer radical virada no Carnaval – muitos o fazem, mas o resultado nem sempre é sustentado a sério quando o momo acaba. Podemos resolver dar uma guinada existencial no dia 1º de abril, porque não? Ah! Vai parecer que é brincadeira, puro chiste.


    Mas o que poderia ser tão importante que merecesse uma jura ao firmamento? Que mudança ensejaria um ganho existencial realmente significativo? Talvez dar definitivo adeus aos velhos erros do passado e encarar o futuro com a determinação de apenas cometer novos erros. Não se diz que é errando que se aprende? Se diz e o ditado parece bastante sábio, mas repetir os erros é como ficar repetindo lições por não terem sido aprendidas. E nisso a vida se parece com uma exigente escola que só passa o aluno quando ele realmente dominou o conteúdo.

   A fase do ensaio e erro é natural na infância, na qual tombos saram com sopros e beijinhos. Passa pelos perigosos tropeços da adolescência e juventude, capazes de erros fatais com seus arroubos. Evolui para a fase adulta, em que a maturidade tira melhor proveito das falhas, reparadas no que for necessário. Quando adentramos na curva descendente da existência a coisa muda novamente e nossas faltas vão ficando irretocáveis e até mesmo irreparáveis. Temos menos cartuchos para queimar e é preciso acertar nossas escolhas. É quando se precisa estar atento, pois as quedas deixam de fazer graça, fraturam ossos, dilaceram o coração, marcam a alma. Aprender com os erros se torna vital quando já não se tem tempo para perder.

   O tempo voa, não temos asas e há muito a ser aprendido, por isto vale tirar proveito dos erros alheios. Não haverá oportunidade de errarmos todo o necessário para nos tornarmos sábios numa só passagem terrena. Certo, certo, pode ser que a gente volte várias vezes para complementar o percurso. Mas, por via das dúvidas e até para abreviar o trabalho, melhor ir aprendendo todo o possível com os erros nossos e dos outros. Só não vale errar de propósito – imaginando acumular créditos de aprendizagem. Gente, trapaça não! Só os erros involuntários contam e são valiosos em nosso percurso.

   Em 2008, desejo que consigamos dar definitivo adeus aos erros velhos e que sejamos mais felizes com nossos erros novos.

A TRIBO DO SOM

Caderno Mulher Interativa
 19/01/2008
    Uma das dificuldades para escrever – e tenho algumas – é escolher o tema mais adequado à semana. Aconteceu de novo: após duas crônicas quase concluídas, me deparei com a polêmica da tribo do som, que “dita” com tirania seu ritmo no verão do Cassino. A polêmica nem deveria ser tão grande já que os dispositivos legais vigentes seriam mais do que suficientes para enquadramento dos mais abusados. Mas já que a lei não tem sido aplicada com o rigor necessário, vou fazer minha parte para tentar explicar qual o problema dos excessos sonoros.


   Vou começar pelo óbvio. Em primeiro lugar: o som se propaga pelo ar – logo , ele invade territórios. O som é invasivo – como a fumaça. Os fumantes levaram décadas para aceitar que seu direito de fumar acabava exatamente no limite dos narizes alheios. Antes da derrota final, surgiram acordos que parecem até cômicos, como aquele que separava acentos em ônibus e aviões para os não fumantes. Parecia que a fumaça seria treinada para ficar apenas sobre a cabeça dos aditos. A lei com sua força conseguiu construir um senso comum fazendo vencer o direito à saúde – de todos.

   Explicar a lei física básica de que as ondas sonoras viajam pelo espaço parece servir para nada. Dizer a esse pessoal que o seu direito acaba onde começa o do outro – noção que deveriam ter aprendido na pré-escola ou antes mesmo de terem saído de casa, também não tem muito efeito: eles não estão nem aí para os bons modos. Aliás, sentem orgulho de exibir seus piores comportamentos.

    Não vou invadir a área da fonoaudiologia – a quem cabe explicar os danos auditivos irreversíveis desse lazer. Vou falar de minha especialidade e trazer um elemento novo ou pelo menos pouco divulgado. O padrão musical “bate-estaca” com ritmos monotonamente repetitivos tem um poder sobre o funcionamento cerebral, uma capacidade de induzir transe, quer dizer: alterar o estado de consciência. Este efeito tem sido pesquisado e comprovado cientificamente e é conhecido há muito tempo. Participei em 1984 do Congresso Internacional sobre Psicoterapia Folclórica, Transes Rituais e Terpsicoretranseterapia – no qual especialistas do Brasil e de vários países europeus se reuniram no Rio de Janeiro para estudar os transes rituais, com experiências práticas. Ali podemos vivenciar o efeito que determinados sons provocam na mente. No caso dos transes rituais eles são direcionados a produzir efeitos terapêuticos, o que não acontece com os transes livres induzidos pelo ritmo. É visível o estado alterado de consciência dos jovens entregues a ritmos alucinantes, potencializados pelo altíssimo volume. Para agravar a cena há sempre alguma droga presente, no mínimo a cerveja – que bebem como água e exibem como troféu. A turma do bate-estaca não consegue entender porque, além de não conseguir ouvir, está em transe.

   Como não adianta nem discutir com quem está com a mente alterada, o antítodo seria realmente contrapor uma música harmoniosa, à qual são normalmente refratários. Uma experiência realizada no metro de Nova York há alguns anos varreu literalmente os jovens infratores do local ao ambientar com música clássica nas estações. Na praia é mais difícil, por isto acho que resta só a esperança de que a lei faça sua parte.

VIDA BIPOLAR

Caderno Mulher Interativa
02/02/2008
    Do jeito como a coisa anda, quase ninguém escapará de ser taxado, diagnosticado e tratado como bipolar. Não se pode mais acordar amarfanhado, chegar de cara fechada para assunto ou mudar de disposição ao redor do dia. Foi-se o tempo em que isso era apenas algo que merecia o comentário de “dormiu de pé destapado” ou coisa do gênero. O abuso leigo e especializado do diagnóstico bipolar merece reflexão, pois tem gente que passou a usá-lo como identidade, como nome de batismo: “eu sou bipolar”.


   Pensando-se bem pensado, olhando para os lados, praticamente tudo o que se move e nos envolve tem dois pólos, circula entre o positivo e o negativo, entre o mais e o menos. Somos todos bipolares, é inerente a nossa natureza.

    São bipolares a bomba de sódio e potássio que mantém a atividade do músculo cardíaco e a energia elétrica que circula no cérebro. O corpo todo é movido a trocas de polaridade de suas células; regulado por permanentes flutuações biorrítmicas de temperatura e de pressão. Antagonistas oscilam constantemente a química interna dos hormônios, alterando a glicemia e o ânimo. A vida não flui na monotonia das retas, mas em ondas, em picos de altos e baixos. Entre a luz dos dias e a sombra das noites acordamos e dormimos, demarcando ciclos diários de um sistema cicardiano.

    Além desse sacolejante biorritmo, existe o constante bombardeio de estimulações externas. Estamos sempre sendo sacudidos por coisas que agradam e outras que perturbam, alternadas por intervalos sem dor e nem graça. Entre sortes e azares, avançamos, tropeçamos, retrocedemos e voltamos a avançar. Altos e baixos nos amores, nas finanças, na família, no trabalho. Tudo flutua dentro e fora de nós – esse é o pulsar da vida, natural e fisiológico.







Na vida que se leva, essas oscilações são ainda mais agudas, estabilidade é rara e quase não existem garantias que nos amparem. Em alguns momentos, parece que entramos contra a vontade numa montanha russa existencial, com direito a picos inesperados e loopings aterrorizantes. Novidades de todo tipo mais azucrinam do que facilitam, criando novas exigências. Tem que se saber de tudo mais um pouco e ainda pagar caro por cada uma das necessidades que nos são impingidas. Nas horas de lazer, o sucesso oferecido é Tropa de Elite ou os fuxicos do BBB. Se escaparmos dos diálogos fúteis ou da carnificina do filme, dificilmente deixaremos de ver e ouvir os massacres dos informativos diários da TV e do jornal. E temos que nos manter firmes e fortes, pois ainda nos são dados constantes avisos do aquecimento global e do perigo da extinção da humanidade. A Terra, que também é bipolar, está perdendo a energia de seus pólos, indispensáveis para manterem o equilíbrio flutuante.







Se tudo e todos somos bipolares, como fica então o tão em voga diagnóstico bipolar, que tanta gente anda vestindo como pele? Deve ficar como os demais rótulos psicopatológicos: no lugar clínico dos diagnósticos, servindo para prescrição de fármacos e condução psicoterapêutica. Ninguém é “o bipolar”. O ser humano é superior a qualquer diagnóstico médico ou psicológico e sempre poderá escapar dos prognósticos que lhe forem prescritos.



COMPROMISSO INDISSOLÚVEL

Caderno Mulher Interativa
16/02/2008
    Foi-se para bem longe o tempo em que indissolúvel era o matrimônio. Casamento se tornou um vínculo desfeito numa passagem rápida em cartório. Namoros então nem se fala – podem ser rompidos a distância, por e-mail ou um rápido torpedo de celular. Esta é a realidade líquida, de que fala Zigmund Bauman; uma realidade que se desfaz em sua forma e escorrega entre nossos dedos antes mesmo que se pisquem os olhos ou se possa fechar a mão. Tudo, não, quase tudo.


    Este também é o tempo do paradoxo, do absurdo, do contraditório. E o que acontece com a tal Fidelidade, algo difícil de exigir ou esperar dos amores como coisa definitiva, que vingue pela eternidade.

    Entretanto – os vínculos de fidelidade continuam existindo, só que migraram para a esfera dos contratos comerciais. Uma fidelidade irrompível, amarrada a prazo fixo. Sem juras, mas algumas promessas, firmamos alianças com empresas que depois não cumprem nada do oferecido e nos fazem descobrir que assumimos casamento a prazo fixo.

    A gente briga, xinga, bate pé, gasta horas ao telefone, mas o contrato está ali ou até está nem se sabe onde, pois foi feito virtualmente – este é o pior dos formatos. Não temos nada escrito, nem assinado, mas em algum momento nos telefonaram, prometendo o mundo e seus fundos e nós, naquele momento de impensada ingenuidade, acreditamos. Acreditamos e dissemos um sonoro sim, que dizem estar gravado em algum lugar e que agora nos compromete até uma data marcada. Mas, como piorar é sempre possível, ao final do tal prazo precisamos informar que desejamos romper o casamento, pois do contrário ele se tornará por prazo indeterminado e aí, talvez vigore até que a morte nos separe, ou até que nossa morte deles nos separe. A porca, seus porquinhos e descendentes torcem todos seus rabos... Estamos fritos! Os telefones para descontratar são diferentes daqueles utilizados quando da troca de alianças e por mais que se ligue, em todo e qualquer horário, não se consegue atendimento. Quando é possível é um tal de: “um momento, por favor, estaremos transferindo sua ligação”... “obrigada, senhora, pode nos confirmar seus dados”. E entre gentis gerúndios vamos sendo enrolados para ao final desistirmos da dissolução de nosso vínculo conjugal...

    É muito mais fácil se desfazer de um namorado ou marido do que romper esse tipo de casamento, por mais infiel que seja esse parceiro.

ETIQUETA DE AMIZADE

Caderno Mulher Interativa
01/03/2008
    Tem coisas que espantam pelo que são ditas e, ainda mais, pela naturalidade com que são ouvidas e até aceitas como idéias válidas.


    Numa noite dessas assistindo um programa de TV me deparei com o consultor Fábio Arruda, sendo entrevistado longamente sobre “normas de etiqueta em amizade”.

    Dizia o palestrante: “para amigo não se pede dinheiro emprestado. Amigo não é banco!” Amigo endinheirado não tem dever de emprestar, nem deve ser incomodado pela posição conquistada, pois, se lá está é por ter merecido, explicou ele. “Afinal, se alguém teve sucesso o mérito é todo seu e dele devem ser os frutos e usufrutos”. Por analogia, quem passa por dificuldades, deve merecer as adversidades e a elas resignar-se. Tem que aceitar e nada pedir ou mesmo esperar de ajuda alheia, principalmente de seus mais sagrados amigos. Amigos não são para essas coisas...

    O entrevistado, tomado de empolgação pelos aplausos do público e pelo olhar de admiração positiva do entrevistador, passou a debulhar todos os pecados capitais que um amigo jamais deve cometer. É determinadamente proibido pedir livros, CDs, DVDs emprestados, afinal é preciso respeitar ao máximo as coisas alheias. “Como se pode pedir uma coisa dessas a alguém? Amigo não é biblioteca e nem locadora.” Desfiou proibitivos categóricos. Não conte com apoio dos amigos, eles não foram feitos para isto, nem para aquilo, nem para coisa alguma. Amizade elegante, para cumprir suas regras canônicas de etiqueta, é uma relação individualista, de convivência não solidária: cada um que fique com o que é seu! Nada de trocas, favores e etc. Mesmo os problemas afetivos, emocionais ou familiares não devem ser divididos com ombros e ouvidos amigos. Amigo não é terapeuta...

    A cada cláusula de regimento de amizade, mais aplausos e sorrisos coniventes, encantados com tanta sabedoria. “Amigo não é para isto e nem para aquilo...” E toda a nobreza e generosidade das melhores amizades foi sendo torcida e enxugada de sentido, murchando seu valor. Se não se pode contar nem com minúsculas ajudas de um amigo, a quem se pode pedir? Ao vizinho – que mal se conhece? Ou ao dono da mercearia da esquina?

    Além daqueles antigos zoomórficos “amigo-da-onça”, “amigo urso”, “amiga cobra”, temos agora o amigo de etiqueta, o que não presta para nada e por tal mérito pode ser justamente chamado de “amigo imprestável”. Ainda bem que sempre poderemos contar com amigos que não se encaixem em nenhuma das categorias anteriores.

PERCURSOS IMPROVÁVES

Caderno Mulher Interativa
15/03/2008   
    Nada melhor do que o correr da vida para mostrar que nem sempre o provável se confirma ou que Deus ajuda a quem cedo madruga. É só passar os olhos para encontrar exemplos mil de percursos de vida improváveis.


    Por destino ou pela mágica assustadora dos acasos, muitas histórias contrariam as expectativas. Há histórias de todos os tipos. Gente que deu certo logo de cara, brilhando precocemente, sem mínimo esforço para tão excelente resultado. Algumas pessoas flainam a vida toda com ventos sempre lhes prestando favores. Já há outras existências que emperraram, custam a alçar vôo, até que, súbita e inesperadamente encontram a rota certa e alcançam sucesso inimaginado. Há, infelizmente, os que jamais encontram prumo, eternamente errantes e os que cumprem percursos de vida absolutamente improváveis.

    É só escrutinar a memória para encontrar exemplos de vidas que não cumpriram prognósticos. Lembra aquela turma da primeira classe de sala de aula? A aluna que tinha o caderno todo certinho, cheio de cores e bela caligrafia? Pois é. Ela não era para ter tirado o primeiro lugar no vestibular mais difícil e feito a melhor das carreiras universitárias? Não prometia ser o maior sucesso na vida ou pelo menos nos estudos? Pois não foi – deu em pouca coisa, a pobre menina. Sabe-se lá por que deixou os estudos antes de concluí-los, apaixonou-se, casou-se e nem se sabe se foi feliz para sempre. E o outro, aquele lá do fundo da aula, especialista em aviõezinhos de papel e az em jogar explosivos nos banheiros? É, aquele mesmo que toda a escola pensava que só poderia acabar como terrorista ou no mínimo perder-se no mundo da bandidagem. Sabem no que deu? Concluiu seus estudos e hoje é um homem sério, virou chefe de família correto e pacato, que respeita as normas de trânsito e se tornou síndico de condomínio.

    Percursos improváveis acontecem em histórias de trabalho e mais ainda no roteiro dos amores. Provavelmente seja no campo do amor que a vida apronte as maiores surpresas. Há os amores “certinhos”, daqueles que cumprem todos os rituais de passagem, do namoro ao casamento e que depois descambam. Outras alianças são trocadas aos trancos e barrancos e vingam casamento longo.

    A vida dificilmente é previsível, pois tudo – absolutamente tudo o que temos e o que somos é provisório e temporário. Os sucessos e os fracassos; a beleza e a juventude; até mesmo a inteligência e a cultura podem ser desgastados na demora de longos anos ou cassados subitamente, pelo mais impensável dos azares... Mas também pode ser que sobrevivam teimosamente aos desafios do tempo, pois o destino se afigura como um ilusionista, sempre capaz de inesperadas cartadas, de nos provocar espanto. Ele, que escreve os caminhos improváveis, nos provoca medo, mas talvez seja sempre nossa maior esperança.

O LEITO DE PROCUSTO

Caderno Mulher Interativ
29/03/2008   
    Há várias versões para a lenda grega de Procusto. As histórias, sejam colóquios de vizinhos ou lendas de tempos remotos, se prestam para isto mesmo, para serem versadas e conversadas. Alguns dizem que o tal Procusto era um gigante, outros que era um soberano e outros ainda dão trato apenas de que se tratasse de um reles bandido. O nome original do sujeito era Damastes ou Polipemon, mas passou a ser conhecido como Procusto – “o estirador” – pela prática de um terrível método de tortura que aplicava aos viajantes perdidos. Ele lhes oferecia hospedagem e depois, à noite, os colocava numa cama de ferro e, se fossem maiores do que o leito, amputava-lhes com machado as partes que sobravam; se fossem menores, esticava seus membros com cordas e roldanas até que atingissem às bordas do móvel. Era um normatizador que a todos ajustava ao padrão por ele determinado.


    A lenda grega serve de metáfora para diversas situações em que a vida humana é encaixada a ferro e a fogo a padrões preestabelecidos. Procustos de todos os gêneros perambulam por nossas vidas, personificados em professores, magistrados, psiquiatras, psicanalistas, psicólogos, etc. Nos processos seletivos, por exemplo, o leito de ferro é o molde do cargo, ao qual se exige que os candidatos tenham exato ajustamento. Muitas vezes requisitos arbitrários excluem injustamente do certame pessoas plenamente competentes.

    São especialmente preocupantes os Procustos que se ocupam de diagnósticos. Fala-se de “enquadramento diagnóstico” ou “quadro clínico” em função do formato conceitual: os diagnósticos são modelos esquemáticos, com critérios o mais rígidos e objetivos possíveis. É necessário que assim sejam, pois esta é uma área que em essência lida com normatização – dela não pode mesmo prescindir. Mas a vida humana, com suas histórias, comédias e dramas sempre transcende à rigidez do enquadramento, sobram pedaços aqui e espaços acolá. Esta dificuldade acontece mesmo nos diagnósticos psicodinâmicos – como os feitos pelos instrumentos chamados projetivos, como o Rorschach (teste conhecido como dos borrões de tinta) ou o PMK (psicodiagnóstico miocinético), os quais me especializei por utilizá-los ao longo dos anos na clínica. Consegue-se alí visualizar a estrutura da personalidade, seus recursos, características positivas e traços patológicos, mas tudo isto só tem fidedignidade quando comparado com a análise da história de vida do paciente. Nada supera a atenta e demorada escuta, como ainda hoje nem o mais sofisticado recurso tecnológico consegue substituir o acurado exame clínico feito por um bom médico.

    Diagnosticar continua sendo uma arte, que exige além do talento, sensibilidade humana – só assim se consegue compreender a pessoa em sua plenitude e oferecer ajuda adequada. Do contrário, o destino humano poderá ser atado a cordas ou ceifado a machado.

A SILVIA E A LUCIA

Caderno Mulher Interativa   
26/04/2008
    Estava com o cada vez mais sábio meu irmão Paulo Sérgio quando ele me saiu com seu mais recente insight. Disse-me: descobri que meu problema é o Sérgio. O Paulo quer fazer tudo direitinho, sabe como deve se alimentar e cada decisão a tomar na sua existência, mas o Sérgio... Ah, o Sérgio! Ele é a criatura que vive dentro do Paulo e parece dedicar-se exclusivamente a azucriná-lo: é a sua antítese – está ali só para contrariar. Se o Paulo se determina a praticar corrida, lá vem o Sérgio inventando pretextos para desistir do intento. Para tudo de bom, produtivo, sério e responsável que o Paulo pretende fazer, surgem os pitacos do Sérgio, colocando entraves e criando desvios de rota.


    Só pude concordar em gênero e número. Sou Sílvia para a maioria das pessoas que me conhecem e nomeiam: amigos, conhecidos, clientes, etc. Algumas exceções raríssimas me chamam de Lúcia e é essa – a Lúcia que, como o Sérgio de meu irmão, por vezes me atrapalha. Quero fazer isto ou aquilo, acerto tudo e por que não consigo cumprir? Culpa da Lúcia. Ainda noutro dia resolvi retornar à academia de ginástica. Lá foi a Sílvia, cheia de decisão, fazer sua avaliação física, preparar agenda, etc, etc. Aprontou roupa e vontade e aí? Aí surgiu a Lúcia com seus mil estratagemas arrumando problemas para impedir que Sílvia aderisse com determinação ao programa de exercícios prescritos e necessários a sua idade. Sílvia, posso dizer, é pessoa de bom senso, criatura determinada, até bem disciplinada. Já Lúcia, sabe-se lá por onde andou enquanto Sílvia estudava: parece que se dedica ao ócio permeado por momentos em que seu deleite é atrapalhar a vida já bem atribulada da Sílvia. Deve ser por isso que raramente apresento a Lúcia – embora esteja condenada a carregá-la junto.

    Ter dois nomes próprios tem vantagens mas também dissabores. É como dispor de três identidades: a do primeiro nome, a do segundo e a dos dois nomes juntos. O nome mais forte é o nosso nome oficial, aquele pelo qual nomeamos a nós próprios, nos apresentamos, somos chamados e reconhecidos. Representa nosso eu consciente e voluntário. O outro nome é o de nosso inconsciente, sempre pronto a trapacear nossas propostas. É a nossa sombra, mas não aquela que nos acompanha passivamente: é a sombra do fantoche, que movimenta nossos braços e faz os gestos cuja autoria, ingenuamente, pensamos ter.

    Quando se juntam os dois nomes surge nossa terceira identidade, formal, registrada em cartório: é chamamento oficial, convocação para explicações ou para cumprimento de castigo. Pelo menos comigo sempre foi assim. Quando era chamada em minha infância a Sílvia Lúcia, já sabia que o assunto não era bom. Havia algum problema, pois ou a Sílvia Lúcia deveria ter feito o que não fizera, ou fizera algo que não deveria ter feito.

    Em que pese estes percalços, agradeço à minha avó materna, Flora, ter escolhido esse nome composto que, salvo esses dilemas existenciais, é de meu pleno agrado.



NOCAUTE TÉCNICO

Caderno Mulher Interativa
10/05/2008
     Um dos atributos pessoais mais poderosos é a beleza física, tenho poucas dúvidas disto. Há critérios diferentes para o conceito de beleza, mas alguns modelos estéticos são hegemônicos, se impõem acima de todas as diferenças. A visão do belo entorpece os demais canais sensoriais e por vezes o próprio cérebro: diante dela, algumas pessoas (principalmente os homens) perdem momentaneamente até a capacidade de raciocínio. Poucos são os imunes ao impacto visual, por isso, costumo chamar de nocaute técnico a este poder da imagem. Para as mulheres o atributo da beleza física é moeda de ouro: abre portas e conquista empregos – independente das demais aptidões (muitas vezes). Quem é bonito, desse tipo de beleza que ninguém discute, causa alvoroço onde chega. Pode andar de chinelos de dedos, roupas amarfanhadas, cabelos desfeitos, nada disto importa: a criatura chega e causa efeito, deixando atrás de si um rastro de olhares.


     Se aliada à beleza estiver uma inteligência brilhante ou uma personalidade marcante, continuará o poder do encanto quando abrir a boca. Mas se não houver outros atributos, bastará saber manter a quietude, pois a falta dificilmente será notada.

     As pessoas belas – sejam homens, mulheres ou crianças – provocam admiração, inveja e até certa reverência, pois pela perfeição de suas formas parecem menos humanas do que os demais seres. Algumas teorias científicas muito antigas chegaram a ratificar a superioridade dos rostos perfeitos: haveria uma correlação entre linhas desarmoniosas da face e algumas patologias mentais, o que supostamente daria à harmonia da fisionomia um certo fator de proteção à doença mental. A relação entre cara feia e conduta criminosa foi muito estudada, depois caiu em total descrédito, mas recentemente voltou à baila. A ciência tem disto: de vez em quando desenterra hipóteses estudadas nos antanhos, com esperança de encontrar novas conclusões.

     O destino de uma pessoa pode ter sido determinado desde cedo por sua beleza física. Bebês muito bonitos, crianças lindas que despertam elogios por onde passam têm sua auto-estima regada abundantemente. O acréscimo de estima por si mesmo é capaz de inundar o ego com autoconfiança, promovendo uma autovalorização que funciona como poderoso e muito eficiente marketing pessoal.

     Há belezas que se esvaem pelos anos, algumas bem precocemente: crianças lindas podem se tornar “normais” na juventude ou até radicalizarem no sentido oposto. Belezura tem dessas coisas: às vezes amadurece, tornando-se ainda mais marcante, noutras desaparece sem deixar vestígio do belo antes existente. De qualquer modo, a sorte já fez sua marca e o bem está feito. Mesmo que as transformações do tempo alterem os efeitos do semblante, a auto-estima poderá ficar enraizada, gerando muitos bons frutos ao longo da vida. Os belos (e belas) continuam em vantagem em relação não apenas aos feios, mas ao grande grupo dos “normais”, aos quais restará recorrer às avançadas tecnologias estéticas, corrigir suas formas e conseguir, com esforço e caro custo, conquistar também alguns nocautes técnicos.

CERVEJA, BILHAR E LIVROS

Publicado no Jornal Agora
Caderno Mulher Interativa  24/05/2008
     Li atentamente a matéria sobre a Mercearia Nossa Senhora da Rosa Mística, olhei as imagens e fiquei negativamente surpresa: estudantes universitários aproveitando ou forjando momentos de folga durante a semana para irem desestressar fumando, bebendo cerveja e jogando bilhar. Tudo muito natural para a geração lúdica, que veio ao mundo para se divertir embalada pelo mantra da Xuxa: “a vida é uma festa”.


     A vida universitária é etapa final do processo de amadurecer. Depois ou se amadureceu ou caiu do galho. Esses moços, pobres moços, que jogam e bebem, quando deveriam estar devorando livros e discutindo teses, não sabem o que estão efetivamente fazendo. Insistem em pensar que cerveja é água e bilhar é jogo pedagógico.

     O “bate ponto” diário ou freqüente no bilhar regado a álcool tem efeitos danosos. Bebidas alcoólicas são substâncias entorpecentes: enebriam, entorpecem o cérebro, dificultam e até impedem a consolidação da memória das informações recebidas em aula. Está cientificamente provado que o álcool limita a capacidade de resolver problemas, o pensamento abstrato, o desempenho motor, a memória e a capacidade de lidar com novas informações. Em suas várias formas, desde a cerveja (vendida com aparência de inocente refrigerante) à malvista cachaça, a substância afeta a química dos diversos neurotransmissores e tem ação depressora sobre o sistema nervoso central, comprometendo o papel integrador do córtex, desorganizando e tornando confuso o pensamento. Com o uso continuado, o risco é desenvolver tolerância – confundida como uma “resistência”: a pessoa bebe mais para ter os mesmos efeitos. Quando esta reação é notada, a pessoa não se tornou forte para o álcool, ela está se tornando perigosamente dependente da substância.

     O jogar bilhar para espairecer em turnos que seriam de estudos colabora com mais alguns estragos. A memória, para consolidar o conhecimento, tornando-o disponível por longo prazo ou de forma definitiva, precisa passar por várias etapas. É necessária a ação eficiente de mecanismos químicos capazes de fixar as lembranças e torná-las acessíveis à evocação futura. Quando os jovens “espairecem” logo após terem aprendido novos conteúdos e passam horas preciosas jogando tempo e dinheiro fora, estão também desperdiçando o conteúdo que lhes foi apresentado em aula. É como se, após freqüentar algumas aulas, eles fossem fazer uma faxina cerebral, varrendo todo o material estudado, deixando o cérebro limpo, vazio de lembranças. Deliberadamente esquecem os conteúdos, desfazendo todos os rastros das informações recentes. É um procedimento oposto ao recomendado para quem pretenda ter aprendizagem eficiente. Para aprender é preciso retomar o material novo e revê-lo, algumas horas após ser estudado. Assim a memória fixa trilhas mentais que facilitam a evocação posterior.

     Preocupa que estudantes universitários exponham seus cérebros aos perigosos efeitos do jogo, da nicotina e do álcool. Embora sejam hoje minoria no campus acadêmico, me parece que algo precisa ser feito para salvá-los e para que situações como essas não se tornem comuns.

MULHER SOLTEIRA, LIVRE E DISPONÍVEL

   Publicado Jornal Agora
Caderno Mulher Interativa
07/06/2008
    Se o título acima estivesse num anúncio de classificados seria lido como oferta de uma mulher sexualmente desfrutável. Entretanto, se trocarmos o gênero, a idéia ficará completamente diferente, pois um homem solteiro, livre e disponível aparece no senso comum como uma figura de homem livre e disponível para um relacionamento sério, duradouro. No imaginário coletivo, a figura de mulher solteira é completamente diferente daquela do homem solteiro. Ele é disputado no “mercado matrimonial”, valorizado socialmente como alguém que tem liberdade e pode dela tirar proveito. Já ela não escapa dos olhares enviesados e dos comentários desairosos à sua moral ou à sua conduta. Essa diferença de valor é reforçada pelos dados demográficos e não se refere tanto à falta numérica de elementos masculinos, mas à chamada “pirâmide da solidão”: a partir dos 30 anos de idade, há uma dificuldade cada vez maior das mulheres encontrarem um companheiro, o que não acontece com os homens. A diferença se acentua a tal modo que, aos 54 anos de idade, um homem tem trinta vezes mais chance de encontrar uma parceira do que uma mulher na mesma idade. Esse fato se deve a que, ao se emparelharem as idades, se verifica que mesmo havendo um equilíbrio no número de mulheres e homens na faixa etária, estes buscam parceiras muito mais jovens.


    Por uma série de fatores é cada vez maior o número de mulheres solteiras que moram sozinhas. As mulheres bem-sucedidas, que viajam, freqüentam bons restaurantes, compram roupas caras e se divertem com turma de amigas já formam uma nova casta feminina na Europa. Lá são conhecidas como Sarahs, sigla de “single and rich and happy” (solteira, rica e feliz). Pelas bandas de nosso jovem continente, apesar de haver muitas Sarahs e de sua visibilidade social, ainda perduram sobre elas conceitos estereotipados.

    Viver a vida no singular, sem formar par, não é tarefa fácil como pode parecer para alguns. A vida não é só festa e viagens. Há vantagens e desvantagens na situação. Para manter a independência é preciso dar conta de tudo, com autonomia em todos os sentidos. Há preços a pagar e vantagens a desfrutar. Quem está só escolhe roteiros, hotéis, faz tudo o que deseja, quando deseja, mas paga por isso. O preço, financeiramente falando, custa alto: a diária de hotel, por exemplo, é praticamente igual a de casal. Não se pode ter meio carro, pagar meia mensalidade no clube e nem no condomínio do prédio. Mas o preço maior não está no financeiro. É preciso ter maturidade emocional para dar conta, para segurar tudo não tendo com quem dividir a peteca e não a deixando cair. É preciso, acima de tudo, aprender a desfrutar a independência e a autonomia conquistadas, fazendo do viver uma aventura digna de ser vivida, rica, feliz.

    Permanecer solteira, não ter filhos, morar só não representam mais sintomas, traço neurótico ou dificuldade de assumir a condição feminina. Não é preciso casar ou se tornar mãe para sentir-se uma pessoa completa e realizada. E pelo andar da carruagem, cada vez mais mulheres preferem dizer: “não tenho marido, mas sou feliz” do que acompanhar a autora do livro “Não sou feliz, mas tenho marido”.

PAC VERSÃO F

Publicado Jornal Agora
Caderno Mulher Interativa
21/06/2008 
    Para quem tem filhos que cresceram, estão adultos, mas pensam ainda serem adolescentes está sendo lançado o PAC – v.F: Programa de Aceleração do Crescimento, versão Familiar. Trata-se de uma ferramenta de gestão para mudança de hábitos e rotinas domésticas e familiares com vistas à correção tardia de erros educativos e aceleração do amadurecimento de filhos adultos – que deveriam ser chamados de adultocentes.


    O primeiro item do PAC – v.F, talvez o mais importante, trata da definição dos atores sociais, que são divididos apenas em dois grupos: os gestores – também conhecidos como mantenedores ou provedores – que são aqueles que financiam as despesas, e os usuários – que são todos os que não compõem o grupo anterior, por não participarem com recursos de custeio. Desta forma: os pais são os gestores e os filhos são usuários. Ficou claro?

     O segundo item trata do sistema de gerenciamento que passa a ser autocrático, antidemocrático e antipopular: manda quem pode pagar e obedece quem quer usar. O direito de voz é mantido, mas o de voto ficará facultado a situações excepcionais, sempre respeitando as autoridades constituídas.

     O novo sistema reproduz todas as forças e pressões que a realidade extrafamiliar imporá aos filhos, quando saírem do ninho. O PAC- v.F é um verdadeiro treinamento de ponta, de alto nível, modelado para total eficiência de resultados, com mínimos custos.

     Implantados os itens 1 e 2 , o passo seguinte é estabelecer a jurisdição e um novo zoneamento nos direitos e deveres de ocupação. O território do PAC- v.F é a casa, dividida por zonas identificadas facilmente por cores. A Ala Vermelha é a de entrada, antigamente conhecida como sala de visitas – na época em que o espaço era sagrado apenas para esses seres de comparecimento esporádico e trato formal. Nos espaços exíguos residenciais de agora o cômodo passou a ser nomeado de sala e costuma ter ocupação multiuso. Entretanto, devido a continuar sendo o lugar de entrada dos menos íntimos, a Ala Vermelha deverá ser mantida permanentemente em ordem de limpeza e higiene. Não serão ali permitidas: roupas, utensílios de cozinha, comidas, etc. A zona seguinte é a Ala Verde: composta por todas a áreas de uso coletivo, principalmente cozinha e banheiro. Esses espaços de circulação serão mantidos em permanentes condições de pleno uso e conforto de todos. Para preservação ambiental, as Alas Vermelha e Verde serão fiscalizadas diariamente pelos gestores, sendo passíveis de sanções caso encontradas falhas de manutenção. A última é a Ala Amarela, de uso privativo de apenas um ou alguns ocupantes: quartos ou banheiros privativos, que terão fiscalização opcional. Esses espaços são de uso exclusivo dos atores sociais acima descritos, sendo que pernoite de outros figurantes só poderá ocorrer com expressa permissão dos provedores. Aos ocupantes será concedida a opção de fiscalização dos aposentos, o que poderá resultar em bônus extras por bom ajustamento de conduta, mas também em multa, caso sejam encontradas falhas. Mesmo a fiscalização sendo opcional, a Ala Amarela não poderá exalar qualquer forma de poluição para as demais zonas.

     O PAC- v.F contém uma série de outros desdobramentos, mas apenas na forma básica acima descrita já surtirá uma revolução suficiente para que a ordem volte ou os incomodados cresçam e se estabeleçam com vida própria e orçamento independente.

DR. BENZETACIL E A TOLERÂNCIA ZERO

Publicada no Jornal Agora
Caderno Mulher Interativa
05/07/2008

      Havia um médico que passou a ser chamado de dr. Benzetacil, por prescrever sempre o mesmo remédio a todos os seus pacientes. Indiferente à queixa apresentada: de unha encravada a problemas intestinais, passando pelas dores no peito e na alma, a receita era sempre o santo Benzetacil. Pois a lei da tolerância zero é a lei do dr. Benzetacil: incapaz de separar o uso do álcool, do seu abuso e da doença crônica - alcoolismo, negligenciou o diagnóstico e prescreveu a todos o mesmo amargo e errado remédio.


     Há uma evidente distorção no sistema que se atém a punir severamente quem a nível sutil atravessa a margem entre o uso e o abuso, criminalizando-o de modo idêntico ao que se entorpeceu com grande quantidade de álcool. O Estado se apresenta incapaz de estabelecer diferenças necessárias, de ter senso de medida para separar o joio do trigo. Imaginar que o senso que faltou ao legislador seja corrigido pela autoridade policial de plantão é desconhecer os efeitos que o poder dá à personalidade – e que facilmente inebriam o arbítrio.

     Alcoolismo é doença tipificada e pesquisas internacionais já constataram o óbvio: nos acidentes com vítimas fatais no qual o álcool está envolvido, um dos motoristas está em estado de embriaguez evidente, muitos destes – possivelmente a maioria - podem ser diagnosticados como alcoolistas. Esse é o motivo pelo qual outras nações, mais cuidadosas, diferenciaram o grau de embriaguez e punem mais severamente os reincidentes e aqueles que ingerem maior quantidade de álcool.

     Pode ser que se pense que ao instituir uma lei de tolerância zero o efeito imediato será a inibição de todos os bebedores, mas aí reside outro engano. Constrangem-se com o rigor das penalidades aqueles que têm com o álcool uma relação de autocontrole; aos bebedores contumazes isso nem dará cócegas. Enquanto os que bebem, mas jamais abusam do álcool, cuidarão até do antiséptico bucal, continuaremos a ver jovens morrerem em saídas de festas na qual a cerveja é grátis; ou postos de gasolina lotados de gente bebendo e dando risada da vida, da lei e de seus agentes. E para essa gurizada festiva ser detida, viver o entre e sai de cadeia será apenas mais uma aventura a ser registrada no Orkut. Como antibiótico tomado com freqüência, a ação da lei perderá completamente o efeito inibidor. Mesmo para o dependente crônico do álcool a cadeia não é remédio e poderá, sem resolver o problema, ainda causar graves conseqüências sociais, familiares, profissionais e econômicas.

     Somos um País criativo e se utilizássemos nossas características culturais poderíamos inovar em um sistema que efetivamente punisse os condutores alcoolizados. Brasileiro ama automóvel - ao qual dedica mais dinheiro e atenção do que à saúde ou mesmo ao amor . Pois por que não punir por aí? Alguém só é motorista quando está na condução do volante, tirando-lhe o veículo deixamos de ter o motorista. Recolher o automóvel por um tempo determinado seria uma pena socialmente eficaz por múltiplos motivos: carro recolhido não come e não dá gastos aos demais contribuintes. Enquanto o encarceramento de uma pessoa em nossas superlotadas cadeias custa mais do que a hospedagem num apart hotel, a guarda de um veículo é de total conta do proprietário. Além disso, por ser um objeto de desejo e de grande valor no imaginário coletivo, sua perda por um período representará para muitos maior privação e constrangimento do que passar algumas horas na cadeia.

     Do jeito que está, a "turma do Zeca Pagodinho" vai continuar deixando a vida lhes levar, enquanto os demais temerão até os bombons de licor e o vinho da eucaristia.

RESSONÂNCIAS DO TEMPO

   Publicada no Jornal Agora
Caderno Mulher Interativa
19/07/2008 
     A gente percebe que envelheceu quando começa a fazer coisas que antes pensava que era coisa de velho.


     Coisas de gente velha? Tirar o pó, por exemplo. Quem é jovem nem nota essa coisa de pó. Eles têm ótima visão para perto – aquela que perdemos ao atravessar para a quarta década da existência, entretanto, a acuidade visual é de dedicação exclusiva para conferir espinhas e estrias ou detalhes mínimos do corpo, do traje e coisas do gênero.

     Tirar o pó... Eu, que também já fui jovem, lembro bem como achava estranho aquela rotina matinal de minha avó, tirando o pó das coisas. Ela fez isto enquanto teve saúde. Como ritual religioso, afagava com o pano coisinha por coisinha. Eu nem via o pó que ela tanto limpava – e no entanto enxergava muito melhor do que hoje. O paradoxal é que a visão diminui seu poder de foco, mas amplia a capacidade de ver o que antes não percebíamos.

     Eu me dei conta disto noutro dia, enquanto limpava o jardim e cuidava das plantas. Coisa de velho! Quem é jovem não tem tempo para essas trivialidades, vive correndo de um lado para outro. Quando a gente começa a tirar o pó, cuidar de plantas, fazer coisas do jeito como faziam os velhos que eram nossos tios, avós... não tem jeito: a velhice chegou. E não adianta ficar fazendo isto e mais aquilo para driblar a passagem dos anos: envelhecemos.

    Com o tempo vão chegando modos de ser e de pensar diferentes. A ordem de nossas prioridades se altera progressiva, mas inexoravelmente. Isso é natural e necessário para que possamos atualizar nossa existência à transitoriedade. Somos seres transitórios, com prazo de validade limitado e para lembrar disso a sábia natureza estabeleceu demarcadores no corpo e na alma, são as ressonâncias do tempo.

    A gente não envelhece de repente, de uma hora para a outra, de um minuto para outro. Mas é na rapidez de um instante que cai a ficha do insigth e percebemos, de súbito, o tempo passado e os efeitos marcados. Tornamo-nos outros. Dá para tentar com mil artifícios resistir e reparar as marcas estéticas, mas a briga é inglória. É apenas uma questão de tempo e ele, o tempo, vencerá.

    O tempo a todos vence: aos impacientes, aos vaidosos, aos poderosos, aos belos, aos feios, aos ricos, aos pobres, aos inteligentes, aos cultos, aos torpes. Ninguém, absolutamente ninguém, a ele supera ou sobrevive. É o senhor da vida. Um senhor de várias faces, que se apresenta pródigo, generoso e tolerante ao início, mas vai, aos poucos, lentamente, mudando de cara e de ânimo. Torna-se sisudo e exigente, depois rabugento e intransigente. Deixa de perdoar nossos menores enganos e cobra caro por qualquer pequena mancada. É quando não há mais tempo para ser perdido, desperdiçado, devorado com pressa. Não. Não há mais pressa. A vida passa a ser sorvida em pequenas doses, saboreada lentamente e isto, quando vivido de modo sadio e equilibrado, se revela supreendentemente bom e gratificante.

O DESEJO DOS OUTROS

     Publicada no Jornal Agora
Caderno Mulher Interativa
02/08/2008
     O que faz com que tantas pessoas esperem semanas para ter um determinado modelo de carro, mesmo havendo muitos outros disponíveis?


      São tantas as opções, algumas bastante semelhantes. Por que um determinado veículo consegue se tornar o objeto de desejo, diferente de todos os demais, um "sonho" a ser consumido? Questão análoga surge quando nos deparamos com outras escolhas e percebemos que alguma coisa atravessa determinada decisão, retirando-nos de sua autoria. Por exemplo: por que é mais fácil aceitar esperar por uma vaga em restaurante lotado do que entrar em outro que esteja vazio e ofereça a possibilidade de escolher confortavelmente um lugar dentre todos os disponíveis? Por que temos que comprar tudo o que os outros estão comprando e ir aos lugares onde todos estão indo?

     As respostas remetem a uma cena infantil que atravessa os tempos e resiste a todas as transformações de costumes. Crianças estão brincando e de repente "fecha o tempo" porque uma resolveu retirar o brinquedo com o qual outra se divertia. O que a criança está querendo não é o brinquedo em si; é a brincadeira, é o prazer que percebe no outro... É o desejo do outro. Tira o objeto querendo pegar o desejo do outro, que brinca, diverte, faz graça... A Psicanálise lacaniana muito bem trata do desejo do outro, mas não vou enveredar por este caminho, pois quero voltar para o cotidiano dos desejos coletivos.

     Quero falar dos desejos dos outros, pluralizados no coletivo amplo exageradamente chamado de "todo o mundo", que nos envolve e nos conduz ao senso comum, a termos todos as mesmas idéias ou agir como se as tivéssemos.

     É isto o que acontece nessa demanda de coisas que nos acenam com a promessa de felicidade completa, os sonhos de consumo que "todo o mundo" tem e que nos autorizam a deixar de usar nossas próprias cabeças para escolher. Há guias para nos conduzir a modos de ser, de vestir; guias para nos levar a lugares que nem sabíamos existirem, mas que não podemos morrer sem conhecer.

     Modas de todos os tipos que - com suas pretensões de vanguarda - nos colocam conformados e são por isso bastante tiranas. Ficamos todos sendo "Marias que vão com as outras", pasteurizados em modos coletivos de viver. Ser e agir como todo mundo nos coloca em trilhos e bem pode nos levar para o inferno existencial de não viver a própria vida e ainda pagar caro preço por isto. Podemos engrossar a fila dos que esperam por algum objeto da moda, mas que isso não nos tire o sono e nem o senso de medida. Podemos brincar com o que todo mundo brinca, usar o que está na moda, mas que essas coisas não se tornem imperativas em nossa vida, senhoras de nosso destino, e que se preserve em cada um de nós a originalidade, a autonomia e a liberdade de ser e de viver.

A LIÇÃO DAS BICICLETAS CHINESAS

     Publicado no Jornal Agora
Caderno Mulher Interativa
16/08/2008
Certas coisas passam a nos envolver com tal freqüência que se tornam naturais. Uma dessas novidades relativamente recentes é a oferta de seguros atrelados a qualquer coisa que se compre ou qualquer serviço que se contrate. Num mundo assustado com uma avalanche de perigos reais e imaginários, sentir-se seguro vale o preço cobrado ou parece valer.


     Noutro dia, ao fazer uma compra banal de algumas peças de vestuário, a atendente me ofereceu incluir na nota um seguro. Seguro? Como não aceitei o serviço, foi-me então informada a grande vantagem de concorrer a um pequeno prêmio em dinheiro. Duas coisas bem nossas: o medo de perder e a fantasia de ganhar. Vivemos entre o tormento de ter segurança máxima e o sonho coletivo de um enriquecimento súbito. Por isso, as seguradoras nos bombardeiam com os dois desejos num só golpe: ou somos capturados pela ilusão de estarmos seguros ou então pela fantasia de que ficaremos ricos ou no mínimo ganharemos alguma coisa.

     Somos um povo sonhador, que adora a idéia de ganhar qualquer coisa: da Mega-Sena acumulada ao sorteio da rifa do colégio. Continuamos um pouco índios, encantados com a magia dos espelhos.

     O seguro vem embutido em tudo: seguro-desemprego, seguro-quebra, perda; garantia estendida. E o que dizer da garantia estendida? A pessoa já paga antecipadamente pela possibilidade de estrago, o produto nem precisa estragar, pois já pagamos o conserto hipotético. A gente leva para casa a coisa novinha, mas com a idéia de que vai quebrar - ah vai, é tão certo que já até pagamos por isso.

     Pois olhando pela TV a cena dos milhões de bicicletas chinesas, velhas, estropiadas, não pude pensar na diferença de mentalidade. Os orientais têm outra visão e reagem de modo diferente. Quando passaram a sofrer freqüentes furtos e roubos, porque não inventaram apetrechos de segurança para suas bicicletas? Logo eles, que nos vendem de tudo e têm uma inteligência tecnológica privilegiada. Por que não fizeram seguros contra roubos? A mentalidade chinesa é mais prática, objetiva e sábia: simplificou o problema, cortou o mal pela raiz, literalmente. Desapegou-se das necessidades estéticas e passou a tornar o veículo apenas um transporte; algo tão barato que, em caso de roubo, pudesse ser substituído prontamente, sem prejudicar sua função de locomoção. Por certo, os longínquos chineses têm outro modo de viver, radicalmente diferente do pensar ocidental. Mas não precisamos fazer meia volta ao mundo para encontrar outro exemplo de como viver e reagir diferente. Basta irmos comprar alfajores no vizinho Uruguai. Os uruguaios usam veículos que são verdadeiros espetáculos circenses, mas andam, e certamente não despertam mínimo desejo de furto, pois só o dono deve conseguir que funcionem. Enquanto isso, nós, financeiramente muito fartos, nos damos ao luxo de pagar valores extras por tudo, para levarmos para casa a garantia de que não seremos roubados, de que o produto não vai estragar, de que não vão usar nosso cartão de crédito, de que não vai dar curto-circuito na ligação elétrica, de que se perdermos a chave de casa um chaveiro nos socorrerá no final de semana... Entre seguros e sorteios, estão surrupiando nossos tostões, e de quinhão em quinhão, alguém está juntando bilhão.



CHOVE CHUVA...

Publicada no Jornal Agora
Caderno Mulher Interativa
30/08/08

     "Chove chuva, chove sem parar", Jorge - o Bem Jor, pode até cantarolar, mas para essas bandas distantes do Equador esse chover sem cessar é bem pouco inspirador. Difícil cantar ou dançar na chuva, como Fred Astaire. É chuva demais, geralmente tocada a ventos uivantes. Não bastassem as águas e os ventos, volta e meia nos aterrorizam os presságios de chuva de pedras, o destruidor granizo. Sem termos a esperança de que o inverno nos brinde com a graça da neve, ainda somos apedrejados pelos céus. As paredes vertem água, como se chorassem. A vida se torna úmida, cinzenta, insalubre e vamos ficando também cinzentos, abatidos, mofados, amarfanhados, arroxeados... A umidade das ruas e o cinza do céu matizam nosso corpo. Não há como deixar de franzir a fronte, recolher-se, encolhendo o pescoço para dentro de golas e mantas. Como o cérebro só sabe o que está fora dele a partir dos sinais corpóreos e o que o corpo informa nesses dias é que a coisa está brava e o mar não está para peixe, nossa mente - ou nossa alma - se entristece.


     Resultado: no meio de tanta água e tanto frio, ficamos mais para desacorçoados cachorros molhados do que para saltitantes sapos faceiros.

     Após os intermináveis períodos chuvosos, não nos chega a bonança.

     Precisamos enfrentar semanas e mais semanas sombrias que de tão longas nos fazem esquecer a cor do céu e o brilho do sol. Convenhamos que na latitude-32° estamos muito mais próximos do preto-e-branco antártico do que da vida tecnicolor do país tropical. O corpo sofre realmente com a falta de luz dos dias chuvosos de inverno. Nosso relógio biológico perde a sincronia, produz menos serotonina, um hormônio ligado ao bem-estar e capaz de regular as oscilações de humor. Os dias curtos alongam a escuridão das noites estimulando a produção de melatonina, que é um indutor do sono e do relaxamento. A orquestra orgânica afunda o ânimo da maioria das pessoas. Naturalmente algumas sofrem mais do que outras, havendo aquelas que se abatem duramente, mergulhando na chamada depressão sazonal, que compromete de modo severo o dia-a-dia e merece receber tratamento específico. Mas para a maioria, o desconforto é superado no raiar do primeiro dia de sol, arejando o ânimo e trazendo de volta a disposição de vida. Intuitivamente buscamos a fototerapia natural: "lagarteamos" nos dias de sol, percebendo que a luz do dia nos traz de volta a energia perdida. Precisamos de luz para viver.

     Que bom que se foi o agosto! Que o setembro nos restitua as cores, a luz e a alegria de mais uma primavera.

VAGA PARA TRABALHO TEMPORÁRIO

  Publicada no Jornal Agora
Caderno Mulher Interativa
13/09/2008 

     Procura-se candidato para trabalho temporário em função de alta relevância pública.


     A remuneração é excelente, valor muito acima dos níveis de mercado, sendo composta de parte fixa e parcela para suplementação de despesas variáveis (como diárias, etc.). Apesar de generoso, o provento não fará de ninguém um milionário - quem desejar tal objetivo deve continuar perseguindo a Mega Sena e outros recursos do gênero.

    A jornada de serviço será reduzida - bem reduzida, possibilitando tempo livre suficiente para estudos, contatos com a comunidade e diversões em geral. Por ser bastante restrito o turno de trabalho, se exigirá que o candidato seja assíduo e compareça pontualmente nas atividades estabelecidas - como audiências e reuniões. Faltas e atrasos serão registrados e descontados dos proventos.

    O contrato será pelo prazo fixo de quatro anos. Para merecer o cargo, o candidato apresentará uma proposta de trabalho factível, que possa ser cumprida no tempo previsto. Ao término, poderá voltar a se candidatar para novos trabalhos, devendo passar por idêntico processo de seleção.

    Os sucessivos contratos não gerarão vínculo empregatício ou ilusão de estabilidade funcional. Enfatiza-se: o trabalho é temporário e quem desejar estabilidade, deve buscar a longa fila do concurso público, na porta ao lado.

     Não será exigido nível de formação escolar, mas é indispensável que o candidato demonstre ter mínimas condições intelectuais e conhecimento funcional da Língua Portuguesa para que possa desenvolver tarefas que exigirão leitura, interpretação e redação de textos. Essas características serão avaliadas na apresentação que o candidato fizer de si mesmo, tanto oral quanto escrita. Nesta apresentação, deverá expor uma breve história de sua vida, suas expectativas em relação à função e a seu futuro pessoal e profissional, incluindo neste último uma referência de como pretenda prover sua existência ao final do contrato de trabalho, aspecto importante para demonstrar sua prudência e preparação para se ajustar ao previsível término de sua missão. Como característica de personalidade é indispensável que seja pessoa de caráter íntegro e personalidade madura, capaz de resistir a assédios de todo gênero, pois o contexto de seu serviço envolverá conflitos de interesses e variadas tentações. Além de ser honesto, terá que demonstrar ser honesto, de uma honestidade límpida e absolutamente transparente. Deverá ser pessoa altruísta, capaz de cuidar de interesses coletivos e sociais com o mesmo ou ainda maior zelo do que o que cuida daquilo que é seu, sem que com isto confunda uma com outra coisa.

     A função é pessoal e intransferível, não estando previsto plano de emprego familiar. Os candidatos devem estar cientes de que a função será pública e exigirá abrir mão de parcela significativa de sua privacidade.

     O trabalho é sério e o ambiente sóbrio, motivo pelo qual serão prontamente eliminados os pretendentes que fizerem gracinhas ou demonstrarem comportamentos inadequados e propostas esdrúxulas em sua apresentação.