domingo, 8 de novembro de 2015

PARADAS DE ORGULHO

Não sei se por transformação do vernáculo ou por falta de um termo mais próprio, tem se visto a proliferação de manifestações públicas de orgulho.  Não basta lutar por direitos e que se peça respeito, é preciso agora exibir orgulho, satisfação, fazer pose de superioridade. Na luta para vencer preconceitos e garantir direitos legítimos, vai-se da vergonha – que era inapropriada – para o sentimento de auto-enaltecimento, para o orgulho.  Por certo, ninguém deve se sentir constrangido por ter uma doença ou deficiência, por sua raça, orientação sexual ou seja lá pelo que for. Ninguém deve sofrer preconceito, ser discriminado em função do que o diferencie das demais pessoas, mas se enaltecer e sentir superior, como se sua diferença, por si mesma, se tornasse virtude – é para tanto?
Tenho uma afilhada com Síndrome de Down, Beatrice. Nos últimos 25 anos acompanho seus passos e ainda sinto os preconceitos que sofre. Lutei com todas as forças pela inclusão de pessoas com necessidades especiais, participei de ações coletivas, promovi eventos e ouvi – o que até hoje ouço: as escolas não estão preparadas, os professores não são preparados, o mundo não está preparado. Ainda vejo olhares enviesados, ainda percebo discriminação e falta de tolerância com as dificuldades de quem tenha alguma deficiência.
Não sinto orgulho da Síndrome de Down de Beatrice, embora tenha orgulho dela, de seu jeito meigo de ser, de sua sensibilidade musical e estética, de sua surpreendente memória e da compreensão sábia diante de situações de conflito cotidiano. Tenho orgulho dela pelo que ela é apesar da Síndrome de Down, que a tolhe de tantas coisas que poderia ter sido e de um importante quinhão da vida que jamais será seu.  Há algumas poucas pessoas com a mesma Síndrome que alcançam quase total independência e conseguem sucesso nos estudos – geralmente essas não têm todas as células trissômicas da síndrome. São os chamados mosaicos, sorteados com algumas células normais, o que – parece - lhes dá possibilidade de maior desenvolvimento intelectual. Não é o caso de Bia, que tem um cromossoma a mais em cada uma de suas células. Ter orgulho disto? Orgulho por esta célula a mais que lhe causou catarata congênita e visão monocular? Ter orgulho das dificuldades que sofre e sempre sofrerá? Não. Aceito e entendo seu destino através da perspectiva de visão mais ampla, motivo pelo qual nem chego a lamentá-lo. Dedico-me a fazê-la o mais feliz que possa ser, mas nunca, jamais, vou achar que aquele cromossoma a mais merece ser enaltecido. Ele é e sempre será a pedra no sapato de minha Beatrice, colocado ali por uma lógica que entendo transcendente, escrita pelas mesmas mãos que a colocaram em meu caminho. 

Orgulho é sinônimo de vaidade, ostentação, soberbia, presunção, altivez, desdém, honra, glória, imodéstia e outras palavras que conspiram contra o que há de melhor no ser humano. As manifestações das paradas de orgulho parecem afinadas por esse viés de alarde, que aprofunda diferenças, acirra discussões e provoca polêmicas. Será que este é o melhor caminho? Sincera e francamente, acho que o tal orgulho, tão em voga, merece ser substituído por um termo mais adequado, se a proposta for construir uma sociedade melhor, mais tolerante, justa e fraterna. Agora, se o objetivo é apenas escandalizar, então que sigam as paradas de desvairados orgulhos, semeando ventos e colhendo tempestades.
                                                     (publicada Jornal Agora- Caderno Mulher - 31/10/2015)