Não sei se por transformação do
vernáculo ou por falta de um termo mais próprio, tem se visto a proliferação de
manifestações públicas de orgulho. Não
basta lutar por direitos e que se peça respeito, é preciso agora exibir
orgulho, satisfação, fazer pose de superioridade. Na luta para vencer
preconceitos e garantir direitos legítimos, vai-se da vergonha – que era
inapropriada – para o sentimento de auto-enaltecimento, para o orgulho. Por certo, ninguém deve se sentir constrangido
por ter uma doença ou deficiência, por sua raça, orientação sexual ou seja lá
pelo que for. Ninguém deve sofrer preconceito, ser discriminado em função do
que o diferencie das demais pessoas, mas se enaltecer e sentir superior, como
se sua diferença, por si mesma, se tornasse virtude – é para tanto?
Tenho uma afilhada com Síndrome
de Down, Beatrice. Nos últimos 25 anos acompanho seus passos e ainda sinto os
preconceitos que sofre. Lutei com todas as forças pela inclusão de pessoas com
necessidades especiais, participei de ações coletivas, promovi eventos e ouvi –
o que até hoje ouço: as escolas não estão preparadas, os professores não são
preparados, o mundo não está preparado. Ainda vejo olhares enviesados, ainda
percebo discriminação e falta de tolerância com as dificuldades de quem tenha
alguma deficiência.
Não sinto orgulho da Síndrome de
Down de Beatrice, embora tenha orgulho dela, de seu jeito meigo de ser, de sua
sensibilidade musical e estética, de sua surpreendente memória e da compreensão
sábia diante de situações de conflito cotidiano. Tenho orgulho dela pelo que
ela é apesar da Síndrome de Down, que a tolhe de tantas coisas que poderia ter
sido e de um importante quinhão da vida que jamais será seu. Há algumas poucas pessoas com a mesma
Síndrome que alcançam quase total independência e conseguem sucesso nos estudos
– geralmente essas não têm todas as células trissômicas da síndrome. São os
chamados mosaicos, sorteados com algumas células normais, o que – parece - lhes
dá possibilidade de maior desenvolvimento intelectual. Não é o caso de Bia, que
tem um cromossoma a mais em cada uma de suas células. Ter orgulho disto?
Orgulho por esta célula a mais que lhe causou catarata congênita e visão
monocular? Ter orgulho das dificuldades que sofre e sempre sofrerá? Não. Aceito
e entendo seu destino através da perspectiva de visão mais ampla, motivo pelo
qual nem chego a lamentá-lo. Dedico-me a fazê-la o mais feliz que possa ser,
mas nunca, jamais, vou achar que aquele cromossoma a mais merece ser
enaltecido. Ele é e sempre será a pedra no sapato de minha Beatrice, colocado
ali por uma lógica que entendo transcendente, escrita pelas mesmas mãos que a
colocaram em meu caminho.
Orgulho é sinônimo de vaidade,
ostentação, soberbia, presunção, altivez, desdém, honra, glória, imodéstia e
outras palavras que conspiram contra o que há de melhor no ser humano. As
manifestações das paradas de orgulho parecem afinadas por esse viés de alarde,
que aprofunda diferenças, acirra discussões e provoca polêmicas. Será que este
é o melhor caminho? Sincera e francamente, acho que o tal orgulho, tão em voga,
merece ser substituído por um termo mais adequado, se a proposta for construir
uma sociedade melhor, mais tolerante, justa e fraterna. Agora, se o objetivo é
apenas escandalizar, então que sigam as paradas de desvairados orgulhos,
semeando ventos e colhendo tempestades.
(publicada Jornal Agora- Caderno Mulher - 31/10/2015)