quarta-feira, 15 de junho de 2011

Roubar Com Moderação

São tantos os escândalos políticos financeiros que a gente até se confunde com dados e nomes. Pululam Ali-babás por todos os lados.


Tenho pensado que nosso problema não é que roubem, mas sim as grandezas envolvidas. O país é grande, rico, mas não dá conta de tantos Ali-babás e de seus milhares de ladrões dilapidando fortunas. Se muita gente, cada um roubando um seu quinhão, seria só exercício de distribuição de riqueza, ainda que ilegal, imoral, desonesto, não afetaria muito nossas finanças. Se fosse um ou outro corrupto, que surrupiassem vultosas somas, por serem casos isolados, não daria conta de carregar o tanto que temos e nem denegririam a moral nacional. Mas é muita, muita gente roubando muito, aí não há quem agüente. Roubar para o sustento, para o básico, para matar a fone, até a lei perdoa; roubar dentro dos limites físicos do transporte (dentro de bolsos e bolsas) pode passar despercebido; roubar para utilizar o dinheiro em gastos supérfluos – ainda serve para redistribuir o dinheiro surrupiado... Agora, roubar para mandar os frutos para aquelas ilhas que nunca fizeram parte das aulas de Geografia; roubar o que, de tanto, nem numa vida inteira se conseguirá gastar; aí ultrapassa todos os limites. São milhares de pessoas, roubando bilhões de milhões de pessoas. Roubalheira acima de qualquer cálculo estimativo.

Os pequenos furtos são comuns na vida cotidiana. Todo empreendimento comercial conhece a prática, mas, que eu saiba, nunca houve um único caso de falência de empresa provocada unicamente pela incidência desse delito. É um problema físico: os que assim agem – mesmo que sejam muitos – só podem levar o que conseguem carregar no próprio corpo.

Retornando para nossas finanças públicas, recorro à ironia como forma de protesto, meu jeito de registrar minha indignação. Já que no tramar da política, em todas suas entrânsias, está enxertado o desvio de recursos, poderíamos propor, coletivamente, um acordo para que prática de surrupiar passasse a ser exercida com alguma moderação. Poderíamos ser generosos com o teto máximo do roubo consentido, por tratar-se de um acordo, colocando-o na casa de um milho grande – um milhão, daqueles que a gente que vive do trabalho nunca viu e, possivelmente, jamais verá na vida. Estaríamos no lucro, pois sempre os roubos envolvem dezenas ou centenas de milhões. Com o tempo, a cota seria reduzida até chegar ao nível de tolerância zero.

Poderíamos propor uma alternativa mais radical para, ao menos manter o dinheiro no país. Uma campanha terrorista informaria com alarde que as contas secretas nos paraísos fiscais haviam sido tomadas por piratas virtuais. Aliás, vale pensar porque será que essas tais contas são tão imunes, tão seguras e garantidas?

O fato é que temos que achar um jeito, urgente, de sarar a sangria, de conter os desfalques, de mudar as práticas políticas neste país. O problema é histórico, não tem soluções fáceis, o que deve nos estimular a lutar para mudar o rumo, para fazer deste um país sério e respeitado. Temos que deixar de pensar que, por serem antigos e históricos, os maus hábitos devam ser aceitos como naturais e eternos.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Destino

    As grandes tragédias se inscrevem nas tramas dos fios de absurdas coincidências. Será que coisas tão importantes da vida podem acontecer ao sabor do casual, da singeleza simplória da sorte ou do azar?

     Vivemos a sonhar, planejar coisas, nos pensando senhores de nossa existência e, num repente, no supetão de um instante, tudo sai do lugar, toma o rumo do inesperado, vai por águas abaixo, como se movido por uma avassaladora correnteza contrária. E lá se vão os sonhos, as expectativas e tudo o mais.

     Se muito da nossa história de vida é constituída pelos frutos de nossos desejos, esforços ou méritos, há um bocado de coisas que, simplesmente, nos acontecem, independente de nossa liberdade de arbítrio. Surgem como se, por vezes, apenas cumpríssemos um roteiro escrito nas enviesadas linhas das mãos ou nas estrelas do céu – como dizem ciganas e místicos.

     As coisas mais graves, mais importantes da vida parecem ter data certa, lugar marcado e protagonistas previamente selecionados, com scripts comandados por outra vontade, diferente da nossa. O destino não erra de porta, nem chega de véspera e nem se atrasa no dia ou na hora: é absolutamente certeiro. Diante dele, de nada adianta mandar dizer que não se está ou se esconder embaixo da cama. De pernas mais rápidas e braços mais compridos do que os nossos, chamo de destino a essa força que nos transcende, que nos supera, que se impõe para além de todos nossos maiores esforços.

     Na Mitologia, o Destino é uma divindade nascida do Caos e da Noite. Inexorável, cega e poderosa, comanda todas as outras divindades: céus, terra, mar e os infernos. E assim parece ser o destino: um deus implacável, com jurisprudência própria que desconsidera méritos e virtudes. Diante de sua força, no mais das vezes, pretendendo ser seus cúmplices, conseguimos apenas nos tornar passivos reféns de situações que nunca desejamos e das quais tentamos, inutilmente, fugir.

     Este senhor nem sempre surge como cruel ou injusto; temperamental, tem seus momentos de generosidade, de nos trazer; de surpresa, grandes presentes. É pela mão do destino que, contrariando todas as probabilidades, se encontram os amores improváveis e até os imaginados impossíveis. É pela mão da casualidade que se escolhe o bilhete da loteria e, literalmente, se muda de vida.

     Diante do improvável, por certo, nunca estaremos preparados. Os que conseguem antever – e há pessoas com esse dom da premunição – apenas sofrem o inevitável por antecipação, agonia tornada ainda mais longa.

     Podemos nos apegar à esperança de proteção mágica supersticiosa, o que não nos garante, mas pode resultar em algum alento. Talvez, porém, o que de mais efetivo possamos é nos desfazer da pesada culpa pelas responsabilidades que não temos sobre determinados fatos que nos acontecem (sem que isto nos autorize a fugir das demais responsabilidades) e, principalmente, fazer o que der, com o que nos vier.

Publicado em 21/01/2006
Caderno Mulher
Jornal Agora 

Roubar Com Moderação

     São tantos os escândalos políticos financeiros que a gente até se confunde com dados e nomes. Pululam Ali-babás por todos os lados.

     Tenho pensado que nosso problema não é que roubem, mas sim as grandezas envolvidas. O país é grande, rico, mas não dá conta de tantos Ali-babás e de seus milhares de ladrões dilapidando fortunas. Se fosse muita gente, mas cada um roubando apenas um quinhão, seria só exercício de distribuição de riqueza, ainda que ilegal, imoral, desonesto, não afetaria muito nossas finanças. Se fosse um ou outro corrupto, que surrupiassem vultosas somas, por serem casos isolados, não dariam conta de carregar o tanto que temos e nem denegririam a moral nacional. Mas é muita, muita gente roubando muito, aí não há quem agüente. Roubar para o sustento, para o básico, para matar a fone, até a lei perdoa; roubar dentro dos limites físicos do transporte (dentro de bolsos e bolsas) pode passar despercebido; roubar para utilizar o dinheiro em gastos supérfluos – ainda serve para redistribuir o dinheiro surrupiado... Agora, roubar para mandar os frutos para aquelas ilhas que nunca fizeram parte das aulas de Geografia; roubar o que, de tanto, nem numa vida inteira se conseguirá gastar; aí ultrapassa todos os limites. São milhares de pessoas, roubando bilhões de milhões de pessoas. Roubalheira acima de qualquer cálculo estimativo.

     Os pequenos furtos são comuns na vida cotidiana. Todo empreendimento comercial conhece a prática, mas, que eu saiba, nunca houve um único caso de falência de empresa provocada unicamente pela incidência desse delito. É um problema físico: os que assim agem – mesmo que sejam muitos – só podem levar o que conseguem carregar no próprio corpo.

     Retornando para nossas finanças públicas, recorro à ironia como forma de protesto, meu jeito de registrar minha indignação. Já que no tramar da política, em todas suas entrânsias, está enxertado o desvio de recursos, poderíamos propor, coletivamente, um acordo para que prática de surrupiar passasse a ser exercida com alguma moderação. Poderíamos ser generosos com o teto máximo do roubo consentido. Por tratar-se de um acordo, estabeleceriamos um limite na casa de um milho grande – um milhão, daqueles que a gente que vive do trabalho nunca viu e, possivelmente, jamais verá na vida. Estaríamos no lucro, pois sempre os roubos envolvem dezenas ou centenas de milhões. Com o tempo, a cota seria reduzida até chegar ao nível de tolerância zero.

     Poderíamos propor uma alternativa mais radical para, ao menos, manter o dinheiro no país. Uma campanha terrorista informaria com alarde que as contas secretas nos paraísos fiscais haviam sido tomadas por piratas virtuais. Aliás, vale pensar porque será que essas tais contas são tão imunes, tão seguras e garantidas?

     O fato é que temos que achar um jeito, urgente, de sarar a sangria, de conter os desfalques, de mudar as práticas políticas neste país. O problema é histórico, não tem soluções fáceis, o que deve nos estimular a lutar para mudar o rumo, para fazer deste um país sério e respeitado. Temos que deixar de pensar que, por serem antigos e históricos, os maus hábitos devam ser aceitos como naturais e eternos.

Publicada em 02/07/2005
Caderno Mulher Interativa
Jornal Agora

Crueldades E Malvadezas

      As novelas de televisão, nos seus variados horários, estão apresentando enredos cuja ênfase recai, insistentemente, sobre a capacidade humana de fazer mal ao próximo. Será moda?

     Entre tramas e trapaças de vários gêneros, assiste-se a vidas desfeitas nas novelas de todos os canais, em qualquer horário. Maldades ensejadas não pelo ardor de paixões ou pelo amargo ressentimento de amores não correspondidos. As articulações giram, todas, sobre a ambição, a inveja e a ganância. Os conchavos cruéis simulam modelos que reproduzem as malvadezas banalizadas no cotidiano. Talvez possa ser o contrário: que a vida imite a novela, em traduções corriqueiras, mais baratas. Não é, para mim, possível discriminar o original e a cópia, mas está clara a correlação entre os temas apresentados e a realidade diária. As diferenças são apenas cênicas.

     Nas novelas, o ambiente é de luxo e as disputas giram em torno de grandes fortunas, heranças, sucesso e celebridade. Na vida diária, a ganância pode estar dirigida para objetos bem menores.  No trabalho, por exemplo, o objeto de desejo pode ser uma subchefia de um subsetor qualquer, um avanço salarial mínimo ou o prestígio diante de um chefe passageiro. Para atingir o objetivo serão utilizadas as mesmas armas da novela, em formas mais mesquinhas, menos criativas, mas igualmente cruéis. Fazer qualquer coisa para alcançar um mínimo prestígio ou um pouco de dinheiro pode parecer normal, afinal, os fins justificam os meios - dizem muitos.  Quem faria qualquer coisa para ganhar um milhão, também age de forma semelhante em troca de um mínimo trocado, pois honestidade e lealdade não são questões de preço.

     Há os personagens bons e os neutros - tanto nas novelas quanto na vida. Se analisarmos as pessoas que conhecemos ao longo de nossa existência, se fizermos um exercício de memória, perceberemos, com clareza, que algumas se destacam em nossa lembrança por terem sido excepcionalmente boas, outras por terem sido profundamente más. Muitas outras passaram por nosso convívio sem fazer maior marca, foram figurantes secundários, não fizeram diferença. Recordo uma interessante comparação que li, certa vez, entre o ser humano e as bactérias.  Dizia o autor: as bactérias são 10% maléficas, 10% benéficas e 80% oportunistas. A humanidade estaria dividida entre duas minorias e uma grande maioria. Os muito maus, sórdidos, cruéis e inescrupulosos, seriam uma das minorias. A outra minoria seria dos muito bons, extraordinariamente honestos, éticos, plenamente confiáveis. Entre essas duas minorias, circularia o grande grupo dos oportunistas, aqueles que vão conforme o favor dos ventos e a ilusão das oportunidades, sempre ficando do lado das conveniências do momento.

     Desconsiderando os percentuais, sempre enganosos, pode-se perceber que, efetivamente, assim caminha a humanidade, o que dá esperança e também temor. Os espectadores expostos à intoxicante programação televisiva, sorvendo doses diárias de exemplos venenosos, são passivos como um rebanho. Doutrinados por modelos negativos, podem reproduzir esses comportamentos, que passam a ser considerados naturais e até adequados.

     Naturalmente, não é necessário desligar a televisão para se proteger de seu efeito. O fundamental é manter ligado sempre o senso crítico e não permitir que seja anestesiada a sensibilidade.

Publicada em 24/04/2004
Caderno Mulher Interativa
Jornal Agora -

O Boato e A Onda

     No meio do caminho havia uma pedra, havia uma pedra no meio do caminho...

     Era para ser só a inspiração do poeta, mas alguém passou e contou que havia uma pedreira no caminho, quem ouviu acrescentou que a pedreira havia desmoronado. Outro ouvinte da história levou o caso adiante, acrescentando muitas mortes e a pedra se tornou trágica notícia. Assim se fazem os boatos, de conto em conto, cada um aumenta um ponto.

     Pois por dias a fio ouvimos, aqui e acolá, a história de uma onda gigante que cobriria a cidade, assolando toda a região. Os comentários davam conta de detalhes sórdidos, pormenores dignos de testemunhas oculares: o pânico teria tomado conta da cidade, muita gente estaria vendendo as casas a preço de banana, não haveria mais passagens de ônibus para fugir do município... O disse me disse era trazido aos pedaços, como retalhos de coisa mal contada, passada de boca em boca, enfeitada com pinceladas ao gosto de cada falante, ao sabor prazeroso de uma diversão um tanto sádica. Boatos são sempre assim. São da ordem do ouvir dizer, sem autoria assinada em baixo, via de regra, anônimos. Um anonimato um tanto covarde, diluído num sujeito coletivo, num plural indeterminado. Todos falam por terem ouvido dizer, ninguém viu, ninguém quer assumir a responsabilidade de autor nem de testemunha.

     Boato se movimenta como onda, vai ganhando força, se agigantando, tornando-se assustador. O movimento de arrasto das coisas recontadas é terrivel porque o jogo das forças toma uma espiral de potência, multiplica seu poder devastador no acréscimo das ênfases e distorções. Quanto mais é ouvido e repetido, mais se torna digno de confiança. As pessoas entram na onda, literalmente. Recebem e retransmitem uma notícia no embalo da própria convicção e, quanto mais a cena vai sendo reproduzida, reforçada pelos caprichosos acasos da vida, pelas coinscidências tomadas como indícios de confirmação, mais ganha forma verossímil.  Boatos podem se tornar muito destrutivos, como uma tsunami, podem destruir vidas inteiras, alterar destinos.

     Mas porque as pessoas espalham boatos, repassam histórias e fatos que não são verdadeiros? Falta de assunto? Vontade de enganar o próximo? Muito difícil atribuir apenas a tão mesquinhos motivos, ainda que estes por vezes ocorram.

     Por certo, há certa cumplicidade maledicente entre a curiosidade e a maldade. Mas existem as maldades bem intencionadas, sim, tanto quanto os amores mal intencionados. A vida é feita de contraditórios irônicos. Maldades completamente ingênuas, não-premeditadas, sem vínculo de interesse, sem intenção ou com a s melhores  - e mais equivocadas intenções.

     Talvez eu tenha uma visão otimista do ser humano, mas considero que a maioria das pessoas alimenta boatos como quem dá comida a um bicho feroz, sem se dar conta dos perigos envolvidos.

     Termino de escrever ste artigo ao som de uma chuva fina, meio chocha, um vexame para a anunciada tempestade. A gente aprende com a vida, para isto são muito valiosos os enganos. Quem sabe nossa experiência coletiva com os rumores da tsunami riograndina nos leve à reflexão crítica e faça nossa aldeia crescer e aprender a dar menos crédito a boatos. Se for assim, terá sido preciosa a situação.

Publicada em 26/11/2005
Caderno Mulher - Jornal Agora
* inspirada na notícia corrente na época
de uma tsunami que destruiria
a cidade de Rio Grande


Do Avesso E De Cabeça Para Baixo


     Sou de um tempo muito distante. Lembro dos bondes, do surgimento dos fogões a gás, das geladeiras abastecidas com enormes barras de gelo, trazidas em carroça; da primeira tv com seus chuviscos em preto e branco, coloridos por celofane degradee... A vida era assim: a gente ouvia no rádio o vai e vem da voz chiada do repórter Esso.

     Naquele tempo, em minha longínqua infância, os adultos, os mais velhos e os bem mais velhos eram considerados gente grande, pessoas responsáveis, só pelo fato de serem mais velhos - ninguém discutia isso. O lugar na mesa e nas conversas era algo sagrado - naquele mundo repleto de  coisas sagradas e indiscutíveis. Os mais antigos representavam a tradição e a sabedoria. A primazia era do mundo dessas pessoas mais velhas que, pensando agora, me pareciam muito mais velhas do que eram. Os adultos tinham que almoçar primeiro, pois iam trabalhar - coisa também sagrada. E porque trabalhavam, precisavam vestir roupas adequadas. A elegância tinha a seriedade adulta dos chapéus e do brilho dos sapatos lustrados. Crianças tinham apenas que ter bons modos. Essas usavam as mesmas roupas de sempre, enquanto lhes servissem e, se houvessem irmãos mais velhos, o que era o mais comum, seus trajes acabavam sendo herdados, surrados pelo uso.

     Criança era criança, jovem era jovem e adulto era adulto. Não se falava muito em adolescência. O tempo de crescer era marcado por rituais e insígnias, mas era um processo natural, biologicamente automático. A menina se tornava mocinha quando passava pela menarca e o menino quando mudava de voz e surgiam os primeiros fios de barba. Através dos marcadores biológicos, ingressavam como aprendizes no mundo adulto, dirigido ao casamento ou ao trabalho, sem conflitos. Não era aceitável ficar agarrado à saia da mãe ou à casa dos pais.

     Agora tudo parece estar exatamente ao contrário. Crianças a adolescentes são os donos da bola, do campo, do apito e do jogo, no qual ditam e mudam as regras, segundo a própria conveniência. Os jovens vivem num constante e imperativo precisar. Precisam do celular de última geração, da internet, das roupas de griffe; precisam de carro, dinheiro; precisam fazer festa e sexo todos os finais de semana. Precisam, se não morrem - de vergonha, de raiva ou de tédio. A adolescência é uma etapa tão lúdica que as crianças são cada vez mais precoces, se apressam para adolescerem e dessa etapa ninguém parece querer sair. Como os rituais de passagem foram prescritos, adultos de trinta anos continuam, às vezes, psicológica, social e financeiramente dependurados na mais dourada adolescência.

     Analisando tudo isto, me parece que a minha geração, que agora está dobrando o cabo das boas esperanças, acabou meio trapaceada. Vivemos a infância e a juventude beijando as mãos dos mais velhos, acatando ordens, pedindo licenças, nos curvando em desculpas e muito obrigados. Quando amadurecemos e pensamos que chegara nossa vez de ter lugar para sentar, inverteram as regras do jogo e a mesma minha turma continua em serviço. Continuamos firmes nas funções subalternas de apoio, de abastecimento e limpeza, sem revezamento.

     Podem me dizer que sou do tempo do avião a lenha ou do guaraná com rolha, mas eu acho que o mundo agora foi colocado do avesso e, não contente, virado de cabeça para baixo.

Publicada em 10/12/2005
Caderno Mulher - Jornal Agora

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Máquinas E "Brujos"

    


       No tempo das coisas eletromecânicas tudo era fácil de ser compreendido. Os aparelhos de rádio e tv, por exemplo, funcionavam a válvulas que, vez ou outra, queimavam - conserto fácil, barato e feito a domícilio, aos nossos olhos. As máquinas, como o mundo de então, eram previsíveis e duráveis.
       Bem diferente dos aparelhos de agora, animados por chips. Não se consegue visualizar o caminho de sua ação e, menos ainda, o motivo de seus problemas.
     Será que as máquinas não tem vida mesmo? O antropomorfismo parece ser justificado nas experiências de manuseio dos eletrônicos. Dia desses levei o computador portátil para conserto. O equipamento, que me é valioso na produção dos artigos, volta e meia, sem motivo aparente, desliga e não religa. Deixei na assistência técnica e ao retornar me foi oferecido o mais pitoresco diagnóstico. Disse-me o muito jovem especialista, com absoluta naturalidade: "ele só liga quando quer". Opa! Meu notebook tem vontade, desejo, vida própria. Eu poderia ter ficado espantada se não fosse alo que eu já tivesse observado. Não há como situar defeito.
     Escrevo agora com mais delicadeza, como quem fala baixinho, para nao ofendê-lo, pois concluí que ele tem um temperamento muito suscetível, com facilidade se ofende. Por ser equipamento portátil, pretendia carrega-lo em viagens. Por duas vezes, ao chegar no destino, estranhou o clima, ou talvez a altitude, ou a viagem de avião e se desligou da vida. Só voltou a se abrir quando retornei para casa. Assim, descobri que é apegado à cidade onde vive. Foi uma decepção, mas me conformei. No veraneio, levei-o para a praia. Parece que estranhou o calor, a maresia. Novamente não quis trabalhar. Será que achou injusto ter que trabalhar na praia? Retornou para casa e logo estava de volta à ativa, sem intervenção alguma. Certo dia, levei-o para o apartamento ao lado. Foi o suficiente para estranhar o ambiente e nada fazer. Só voltou a funcionar em casa. Percebi que, mesmo sendo portátil, é sensível a movimentos, não gosta de agitos. Desisti de leva-lo de lá para cá. Ele é portátil mas não se considera uma unidade móvel. Por último aconteceu de ser colocado outro equipamento na mesa, ao seu lado. Pronto. Foi o suficiente. Outra pane: fechou-se em copas. Foi um período mais longo sem funcionar. Nova descoberta: o bichinho é ciumento! Após todos esses entraves, descobri que se quero contar com sua fiel colaboração, tenho que respeitá-lo. Ele não gosta de viajar de avião, nem de praias, nem de fazer novos amigos. Tem um temperamento caseiro, seletivo, introspectivo. Adora a intimidade do convívio privativo e exclusivo: funciona muito bem se for a dois: ele e eu. Assim, está sempre bem disposto. Cada coisa tem neste mundo!
     Minhas conclusões: a pressa tem outros inimigos, além da perfeição. Os eletrônicos parecem ter alma, espírito e uma forte personalidade, que não aprecia afoitos e estressados. O fato é que, confesso, passei a conversar com computador, impressoras e coisas do gênero. Não sei se eu é que fico zen para lidar com seres tão instáveis ou se são eles que se acalma, mas a coisa funciona e é isto que importa.
     Como sabiamente dizem os espanhóis, no creo em brujos, pero...
                                                          Publicada no Caderno Mulher - em 17/09/2005

domingo, 12 de junho de 2011

Enamore-se

       
      Para evitar doenças se tem por certo o rumo a ser seguido: ficar longe dos excessos e buscar uma vida equilibrada. Mas para ter saúde o caminho parece mais amplo e a receita mais interessante. Uma dieta rica e colorida, aliada a exercícios físicos regulares e uma vida afetiva e social gratificante ajudam em muito. Em síntese, ser feliz parece ser a receita que leva à plena saúde e à longevidade. Para os solitários tristes e agoniados em geral a prescrição pode parecer impossível: a vida lhes pesa e oprime. Como se consegue ser feliz?

       Pesquisas científicas, após seguirem rigoroso percurso pelos complexos meandros dos métodos, estão apontando o óbvio: a felicidade é essencial para a saúde e – a boa notícia – ela depende de uma condição interior. São mais felizes as pessoas que se mantém enamoradas. Isso nada tem a ver com estar só ou acompanhado; com estar namorando, amando ou vivendo com alguém. Os namorados e os amantes estão felizes e permanecerão neste magnífico estado enquanto brilharem as ilusões do fascínio, os ardores da paixão. Enamorar-se de alguém é maravilhoso, mas muitas vezes resulta transitório e culmina com um final decepcionante. Por mais que uma paixão encante ou adoce, sua intensidade diminui e se transforma com o passar do tempo. O caminho do amor romântico parece um tortuoso percurso que culmina em apenas duas alternativas: ou morrer, quando se apaga a faiscante chama das ilusões do encantamento inicial, ou se transformar numa relação com novos significados.

        O enamoramento que leva à felicidade mais duradoura é algo amplo e transcendente. São felizes aqueles que se mantém enamorados pela vida, por cada dia, por cada momento. Esse estado de amor faz com que o corpo funcione bem, que o coração se mantenha firme, forte e que a mente visualize positivamente as diferentes situações do cotidiano. Esta atitude resulta num sentimento de bem estar sereno e profundo, condição capaz de levar o corpo a um estado de vigor e vitalidade.

       Namorar é fundamental, sim, mas namorar a vida, acima de todas as demais paixões – pois elas passam, como tudo passa e sempre passará. Essa atitude de enamoramento definitiva, permanente e transformadora é revolucionária a nível pessoal. E, melhor de tudo, não depende de pessoa ou coisa alguma: jovens e velhos, ricos e pobres, solitários e bem acompanhados, todos – indiscriminadamente – podem ser felizes. Utopia? Mito? Pois teste você mesmo: instaure na sua mente uma disposição positiva, se determine a ser feliz – independente das circunstâncias atuais. Enamore-se de sua existência. Teime, insista, não desista de namorar sua vida, de se encantar com cada dia, de se sentir feliz e observe os resultados após algum tempo.
                                                                       Publicada Jornal Agora 11/06/2011