quarta-feira, 20 de julho de 2011

O Senso de Privacidade Na Era da Internet

     Está sendo perdido o senso de privacidade, a noção de intimidade. A era da internet inaugurou uma nova forma de comunicação e de exposição, na qual parece que todos podem saber de tudo, sem restrições nem pudores. O universo pessoal está ameaçado de extinção.

     Saudade do tempo em que tirar uma fotografia era coisa solene que exigia traje e pose. Desde que inventaram as câmeras digitais, dispensando a necessidade de filme e revelação, todos se tornaram fotógrafos e cinegrafistas. Filma-se e fotografa-se tudo. Câmera barata associada com a ausência de custos do fotografar e filmar banalizaram o ato. Não é preciso ter motivo e nem talento para tirar fotos.

    Com a banalidade veio a vulgarização da imagem. Não se escolhe cena e nem momento para fotografar. Poucas pessoas pensam ou percebem que a imagem gravada poderá ser eternizada e se desdobrar em conseqüências, ganhando novos significados. Não se escolhe mais ângulo, se tiram fotos e mais fotos, se filma de qualquer jeito.

     Para agravar a falta de senso geral, os arquivos digitais passaram a ser distribuídos pela rede da internet, em sites abertos, para um universo muito além do restrito mundo dos conhecidos, amigos e familiares. São milhões de imagens disponíveis ao toque do teclado, entregues a domínio público. Num tempo de vaidades atiçadas por ilusões variadas, divulga-se de tudo neste novo espaço de vida: imagens de festas, viagens, mas também cenas gravadas entre as paredes do ambiente de família, antes reservado e sagrado. Todo mundo pode ver cenas que eram partilhadas apenas com os mais íntimos, com os de casa.

     Incautos, simplórios e sem juízo se misturam ao venenoso grupo dos mal-intencionados colocando no amplo espaço virtual imagens de gente que gosta de se mostrar e também de pessoas que jamais gostariam de aparecer. Imagens não autorizadas abastecem a rede de vídeos sem assunto e nem legenda, sem que e nem por que. Sem história ou argumento, vídeos domésticos ficam à disposição de quem queira ver e de quem possa ver sem querer.

    Esse processo de transformação gera efeitos, exige reflexões. Muito além das questões estéticas, há aspectos éticos envolvidos na gravação e divulgação de imagens. Talvez o tempo faça surgir formas de advertência expressas aos fotógrafos e cinegrafistas amadores, informando do risco de danos à pessoa humana e de suas consequências. Até que a lei coloque ordem nessas novas práticas coletivas e que se crie um novo senso moral sobre o assunto, quem queira salvaguardar sua privacidade precisa saber escolher com muito maior cuidado as pessoas que permite entrar em sua vida e freqüentar sua casa.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Roubar Com Moderação

São tantos os escândalos políticos financeiros que a gente até se confunde com dados e nomes. Pululam Ali-babás por todos os lados.


Tenho pensado que nosso problema não é que roubem, mas sim as grandezas envolvidas. O país é grande, rico, mas não dá conta de tantos Ali-babás e de seus milhares de ladrões dilapidando fortunas. Se muita gente, cada um roubando um seu quinhão, seria só exercício de distribuição de riqueza, ainda que ilegal, imoral, desonesto, não afetaria muito nossas finanças. Se fosse um ou outro corrupto, que surrupiassem vultosas somas, por serem casos isolados, não daria conta de carregar o tanto que temos e nem denegririam a moral nacional. Mas é muita, muita gente roubando muito, aí não há quem agüente. Roubar para o sustento, para o básico, para matar a fone, até a lei perdoa; roubar dentro dos limites físicos do transporte (dentro de bolsos e bolsas) pode passar despercebido; roubar para utilizar o dinheiro em gastos supérfluos – ainda serve para redistribuir o dinheiro surrupiado... Agora, roubar para mandar os frutos para aquelas ilhas que nunca fizeram parte das aulas de Geografia; roubar o que, de tanto, nem numa vida inteira se conseguirá gastar; aí ultrapassa todos os limites. São milhares de pessoas, roubando bilhões de milhões de pessoas. Roubalheira acima de qualquer cálculo estimativo.

Os pequenos furtos são comuns na vida cotidiana. Todo empreendimento comercial conhece a prática, mas, que eu saiba, nunca houve um único caso de falência de empresa provocada unicamente pela incidência desse delito. É um problema físico: os que assim agem – mesmo que sejam muitos – só podem levar o que conseguem carregar no próprio corpo.

Retornando para nossas finanças públicas, recorro à ironia como forma de protesto, meu jeito de registrar minha indignação. Já que no tramar da política, em todas suas entrânsias, está enxertado o desvio de recursos, poderíamos propor, coletivamente, um acordo para que prática de surrupiar passasse a ser exercida com alguma moderação. Poderíamos ser generosos com o teto máximo do roubo consentido, por tratar-se de um acordo, colocando-o na casa de um milho grande – um milhão, daqueles que a gente que vive do trabalho nunca viu e, possivelmente, jamais verá na vida. Estaríamos no lucro, pois sempre os roubos envolvem dezenas ou centenas de milhões. Com o tempo, a cota seria reduzida até chegar ao nível de tolerância zero.

Poderíamos propor uma alternativa mais radical para, ao menos manter o dinheiro no país. Uma campanha terrorista informaria com alarde que as contas secretas nos paraísos fiscais haviam sido tomadas por piratas virtuais. Aliás, vale pensar porque será que essas tais contas são tão imunes, tão seguras e garantidas?

O fato é que temos que achar um jeito, urgente, de sarar a sangria, de conter os desfalques, de mudar as práticas políticas neste país. O problema é histórico, não tem soluções fáceis, o que deve nos estimular a lutar para mudar o rumo, para fazer deste um país sério e respeitado. Temos que deixar de pensar que, por serem antigos e históricos, os maus hábitos devam ser aceitos como naturais e eternos.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Destino

    As grandes tragédias se inscrevem nas tramas dos fios de absurdas coincidências. Será que coisas tão importantes da vida podem acontecer ao sabor do casual, da singeleza simplória da sorte ou do azar?

     Vivemos a sonhar, planejar coisas, nos pensando senhores de nossa existência e, num repente, no supetão de um instante, tudo sai do lugar, toma o rumo do inesperado, vai por águas abaixo, como se movido por uma avassaladora correnteza contrária. E lá se vão os sonhos, as expectativas e tudo o mais.

     Se muito da nossa história de vida é constituída pelos frutos de nossos desejos, esforços ou méritos, há um bocado de coisas que, simplesmente, nos acontecem, independente de nossa liberdade de arbítrio. Surgem como se, por vezes, apenas cumpríssemos um roteiro escrito nas enviesadas linhas das mãos ou nas estrelas do céu – como dizem ciganas e místicos.

     As coisas mais graves, mais importantes da vida parecem ter data certa, lugar marcado e protagonistas previamente selecionados, com scripts comandados por outra vontade, diferente da nossa. O destino não erra de porta, nem chega de véspera e nem se atrasa no dia ou na hora: é absolutamente certeiro. Diante dele, de nada adianta mandar dizer que não se está ou se esconder embaixo da cama. De pernas mais rápidas e braços mais compridos do que os nossos, chamo de destino a essa força que nos transcende, que nos supera, que se impõe para além de todos nossos maiores esforços.

     Na Mitologia, o Destino é uma divindade nascida do Caos e da Noite. Inexorável, cega e poderosa, comanda todas as outras divindades: céus, terra, mar e os infernos. E assim parece ser o destino: um deus implacável, com jurisprudência própria que desconsidera méritos e virtudes. Diante de sua força, no mais das vezes, pretendendo ser seus cúmplices, conseguimos apenas nos tornar passivos reféns de situações que nunca desejamos e das quais tentamos, inutilmente, fugir.

     Este senhor nem sempre surge como cruel ou injusto; temperamental, tem seus momentos de generosidade, de nos trazer; de surpresa, grandes presentes. É pela mão do destino que, contrariando todas as probabilidades, se encontram os amores improváveis e até os imaginados impossíveis. É pela mão da casualidade que se escolhe o bilhete da loteria e, literalmente, se muda de vida.

     Diante do improvável, por certo, nunca estaremos preparados. Os que conseguem antever – e há pessoas com esse dom da premunição – apenas sofrem o inevitável por antecipação, agonia tornada ainda mais longa.

     Podemos nos apegar à esperança de proteção mágica supersticiosa, o que não nos garante, mas pode resultar em algum alento. Talvez, porém, o que de mais efetivo possamos é nos desfazer da pesada culpa pelas responsabilidades que não temos sobre determinados fatos que nos acontecem (sem que isto nos autorize a fugir das demais responsabilidades) e, principalmente, fazer o que der, com o que nos vier.

Publicado em 21/01/2006
Caderno Mulher
Jornal Agora 

Roubar Com Moderação

     São tantos os escândalos políticos financeiros que a gente até se confunde com dados e nomes. Pululam Ali-babás por todos os lados.

     Tenho pensado que nosso problema não é que roubem, mas sim as grandezas envolvidas. O país é grande, rico, mas não dá conta de tantos Ali-babás e de seus milhares de ladrões dilapidando fortunas. Se fosse muita gente, mas cada um roubando apenas um quinhão, seria só exercício de distribuição de riqueza, ainda que ilegal, imoral, desonesto, não afetaria muito nossas finanças. Se fosse um ou outro corrupto, que surrupiassem vultosas somas, por serem casos isolados, não dariam conta de carregar o tanto que temos e nem denegririam a moral nacional. Mas é muita, muita gente roubando muito, aí não há quem agüente. Roubar para o sustento, para o básico, para matar a fone, até a lei perdoa; roubar dentro dos limites físicos do transporte (dentro de bolsos e bolsas) pode passar despercebido; roubar para utilizar o dinheiro em gastos supérfluos – ainda serve para redistribuir o dinheiro surrupiado... Agora, roubar para mandar os frutos para aquelas ilhas que nunca fizeram parte das aulas de Geografia; roubar o que, de tanto, nem numa vida inteira se conseguirá gastar; aí ultrapassa todos os limites. São milhares de pessoas, roubando bilhões de milhões de pessoas. Roubalheira acima de qualquer cálculo estimativo.

     Os pequenos furtos são comuns na vida cotidiana. Todo empreendimento comercial conhece a prática, mas, que eu saiba, nunca houve um único caso de falência de empresa provocada unicamente pela incidência desse delito. É um problema físico: os que assim agem – mesmo que sejam muitos – só podem levar o que conseguem carregar no próprio corpo.

     Retornando para nossas finanças públicas, recorro à ironia como forma de protesto, meu jeito de registrar minha indignação. Já que no tramar da política, em todas suas entrânsias, está enxertado o desvio de recursos, poderíamos propor, coletivamente, um acordo para que prática de surrupiar passasse a ser exercida com alguma moderação. Poderíamos ser generosos com o teto máximo do roubo consentido. Por tratar-se de um acordo, estabeleceriamos um limite na casa de um milho grande – um milhão, daqueles que a gente que vive do trabalho nunca viu e, possivelmente, jamais verá na vida. Estaríamos no lucro, pois sempre os roubos envolvem dezenas ou centenas de milhões. Com o tempo, a cota seria reduzida até chegar ao nível de tolerância zero.

     Poderíamos propor uma alternativa mais radical para, ao menos, manter o dinheiro no país. Uma campanha terrorista informaria com alarde que as contas secretas nos paraísos fiscais haviam sido tomadas por piratas virtuais. Aliás, vale pensar porque será que essas tais contas são tão imunes, tão seguras e garantidas?

     O fato é que temos que achar um jeito, urgente, de sarar a sangria, de conter os desfalques, de mudar as práticas políticas neste país. O problema é histórico, não tem soluções fáceis, o que deve nos estimular a lutar para mudar o rumo, para fazer deste um país sério e respeitado. Temos que deixar de pensar que, por serem antigos e históricos, os maus hábitos devam ser aceitos como naturais e eternos.

Publicada em 02/07/2005
Caderno Mulher Interativa
Jornal Agora

Crueldades E Malvadezas

      As novelas de televisão, nos seus variados horários, estão apresentando enredos cuja ênfase recai, insistentemente, sobre a capacidade humana de fazer mal ao próximo. Será moda?

     Entre tramas e trapaças de vários gêneros, assiste-se a vidas desfeitas nas novelas de todos os canais, em qualquer horário. Maldades ensejadas não pelo ardor de paixões ou pelo amargo ressentimento de amores não correspondidos. As articulações giram, todas, sobre a ambição, a inveja e a ganância. Os conchavos cruéis simulam modelos que reproduzem as malvadezas banalizadas no cotidiano. Talvez possa ser o contrário: que a vida imite a novela, em traduções corriqueiras, mais baratas. Não é, para mim, possível discriminar o original e a cópia, mas está clara a correlação entre os temas apresentados e a realidade diária. As diferenças são apenas cênicas.

     Nas novelas, o ambiente é de luxo e as disputas giram em torno de grandes fortunas, heranças, sucesso e celebridade. Na vida diária, a ganância pode estar dirigida para objetos bem menores.  No trabalho, por exemplo, o objeto de desejo pode ser uma subchefia de um subsetor qualquer, um avanço salarial mínimo ou o prestígio diante de um chefe passageiro. Para atingir o objetivo serão utilizadas as mesmas armas da novela, em formas mais mesquinhas, menos criativas, mas igualmente cruéis. Fazer qualquer coisa para alcançar um mínimo prestígio ou um pouco de dinheiro pode parecer normal, afinal, os fins justificam os meios - dizem muitos.  Quem faria qualquer coisa para ganhar um milhão, também age de forma semelhante em troca de um mínimo trocado, pois honestidade e lealdade não são questões de preço.

     Há os personagens bons e os neutros - tanto nas novelas quanto na vida. Se analisarmos as pessoas que conhecemos ao longo de nossa existência, se fizermos um exercício de memória, perceberemos, com clareza, que algumas se destacam em nossa lembrança por terem sido excepcionalmente boas, outras por terem sido profundamente más. Muitas outras passaram por nosso convívio sem fazer maior marca, foram figurantes secundários, não fizeram diferença. Recordo uma interessante comparação que li, certa vez, entre o ser humano e as bactérias.  Dizia o autor: as bactérias são 10% maléficas, 10% benéficas e 80% oportunistas. A humanidade estaria dividida entre duas minorias e uma grande maioria. Os muito maus, sórdidos, cruéis e inescrupulosos, seriam uma das minorias. A outra minoria seria dos muito bons, extraordinariamente honestos, éticos, plenamente confiáveis. Entre essas duas minorias, circularia o grande grupo dos oportunistas, aqueles que vão conforme o favor dos ventos e a ilusão das oportunidades, sempre ficando do lado das conveniências do momento.

     Desconsiderando os percentuais, sempre enganosos, pode-se perceber que, efetivamente, assim caminha a humanidade, o que dá esperança e também temor. Os espectadores expostos à intoxicante programação televisiva, sorvendo doses diárias de exemplos venenosos, são passivos como um rebanho. Doutrinados por modelos negativos, podem reproduzir esses comportamentos, que passam a ser considerados naturais e até adequados.

     Naturalmente, não é necessário desligar a televisão para se proteger de seu efeito. O fundamental é manter ligado sempre o senso crítico e não permitir que seja anestesiada a sensibilidade.

Publicada em 24/04/2004
Caderno Mulher Interativa
Jornal Agora -

O Boato e A Onda

     No meio do caminho havia uma pedra, havia uma pedra no meio do caminho...

     Era para ser só a inspiração do poeta, mas alguém passou e contou que havia uma pedreira no caminho, quem ouviu acrescentou que a pedreira havia desmoronado. Outro ouvinte da história levou o caso adiante, acrescentando muitas mortes e a pedra se tornou trágica notícia. Assim se fazem os boatos, de conto em conto, cada um aumenta um ponto.

     Pois por dias a fio ouvimos, aqui e acolá, a história de uma onda gigante que cobriria a cidade, assolando toda a região. Os comentários davam conta de detalhes sórdidos, pormenores dignos de testemunhas oculares: o pânico teria tomado conta da cidade, muita gente estaria vendendo as casas a preço de banana, não haveria mais passagens de ônibus para fugir do município... O disse me disse era trazido aos pedaços, como retalhos de coisa mal contada, passada de boca em boca, enfeitada com pinceladas ao gosto de cada falante, ao sabor prazeroso de uma diversão um tanto sádica. Boatos são sempre assim. São da ordem do ouvir dizer, sem autoria assinada em baixo, via de regra, anônimos. Um anonimato um tanto covarde, diluído num sujeito coletivo, num plural indeterminado. Todos falam por terem ouvido dizer, ninguém viu, ninguém quer assumir a responsabilidade de autor nem de testemunha.

     Boato se movimenta como onda, vai ganhando força, se agigantando, tornando-se assustador. O movimento de arrasto das coisas recontadas é terrivel porque o jogo das forças toma uma espiral de potência, multiplica seu poder devastador no acréscimo das ênfases e distorções. Quanto mais é ouvido e repetido, mais se torna digno de confiança. As pessoas entram na onda, literalmente. Recebem e retransmitem uma notícia no embalo da própria convicção e, quanto mais a cena vai sendo reproduzida, reforçada pelos caprichosos acasos da vida, pelas coinscidências tomadas como indícios de confirmação, mais ganha forma verossímil.  Boatos podem se tornar muito destrutivos, como uma tsunami, podem destruir vidas inteiras, alterar destinos.

     Mas porque as pessoas espalham boatos, repassam histórias e fatos que não são verdadeiros? Falta de assunto? Vontade de enganar o próximo? Muito difícil atribuir apenas a tão mesquinhos motivos, ainda que estes por vezes ocorram.

     Por certo, há certa cumplicidade maledicente entre a curiosidade e a maldade. Mas existem as maldades bem intencionadas, sim, tanto quanto os amores mal intencionados. A vida é feita de contraditórios irônicos. Maldades completamente ingênuas, não-premeditadas, sem vínculo de interesse, sem intenção ou com a s melhores  - e mais equivocadas intenções.

     Talvez eu tenha uma visão otimista do ser humano, mas considero que a maioria das pessoas alimenta boatos como quem dá comida a um bicho feroz, sem se dar conta dos perigos envolvidos.

     Termino de escrever ste artigo ao som de uma chuva fina, meio chocha, um vexame para a anunciada tempestade. A gente aprende com a vida, para isto são muito valiosos os enganos. Quem sabe nossa experiência coletiva com os rumores da tsunami riograndina nos leve à reflexão crítica e faça nossa aldeia crescer e aprender a dar menos crédito a boatos. Se for assim, terá sido preciosa a situação.

Publicada em 26/11/2005
Caderno Mulher - Jornal Agora
* inspirada na notícia corrente na época
de uma tsunami que destruiria
a cidade de Rio Grande


Do Avesso E De Cabeça Para Baixo


     Sou de um tempo muito distante. Lembro dos bondes, do surgimento dos fogões a gás, das geladeiras abastecidas com enormes barras de gelo, trazidas em carroça; da primeira tv com seus chuviscos em preto e branco, coloridos por celofane degradee... A vida era assim: a gente ouvia no rádio o vai e vem da voz chiada do repórter Esso.

     Naquele tempo, em minha longínqua infância, os adultos, os mais velhos e os bem mais velhos eram considerados gente grande, pessoas responsáveis, só pelo fato de serem mais velhos - ninguém discutia isso. O lugar na mesa e nas conversas era algo sagrado - naquele mundo repleto de  coisas sagradas e indiscutíveis. Os mais antigos representavam a tradição e a sabedoria. A primazia era do mundo dessas pessoas mais velhas que, pensando agora, me pareciam muito mais velhas do que eram. Os adultos tinham que almoçar primeiro, pois iam trabalhar - coisa também sagrada. E porque trabalhavam, precisavam vestir roupas adequadas. A elegância tinha a seriedade adulta dos chapéus e do brilho dos sapatos lustrados. Crianças tinham apenas que ter bons modos. Essas usavam as mesmas roupas de sempre, enquanto lhes servissem e, se houvessem irmãos mais velhos, o que era o mais comum, seus trajes acabavam sendo herdados, surrados pelo uso.

     Criança era criança, jovem era jovem e adulto era adulto. Não se falava muito em adolescência. O tempo de crescer era marcado por rituais e insígnias, mas era um processo natural, biologicamente automático. A menina se tornava mocinha quando passava pela menarca e o menino quando mudava de voz e surgiam os primeiros fios de barba. Através dos marcadores biológicos, ingressavam como aprendizes no mundo adulto, dirigido ao casamento ou ao trabalho, sem conflitos. Não era aceitável ficar agarrado à saia da mãe ou à casa dos pais.

     Agora tudo parece estar exatamente ao contrário. Crianças a adolescentes são os donos da bola, do campo, do apito e do jogo, no qual ditam e mudam as regras, segundo a própria conveniência. Os jovens vivem num constante e imperativo precisar. Precisam do celular de última geração, da internet, das roupas de griffe; precisam de carro, dinheiro; precisam fazer festa e sexo todos os finais de semana. Precisam, se não morrem - de vergonha, de raiva ou de tédio. A adolescência é uma etapa tão lúdica que as crianças são cada vez mais precoces, se apressam para adolescerem e dessa etapa ninguém parece querer sair. Como os rituais de passagem foram prescritos, adultos de trinta anos continuam, às vezes, psicológica, social e financeiramente dependurados na mais dourada adolescência.

     Analisando tudo isto, me parece que a minha geração, que agora está dobrando o cabo das boas esperanças, acabou meio trapaceada. Vivemos a infância e a juventude beijando as mãos dos mais velhos, acatando ordens, pedindo licenças, nos curvando em desculpas e muito obrigados. Quando amadurecemos e pensamos que chegara nossa vez de ter lugar para sentar, inverteram as regras do jogo e a mesma minha turma continua em serviço. Continuamos firmes nas funções subalternas de apoio, de abastecimento e limpeza, sem revezamento.

     Podem me dizer que sou do tempo do avião a lenha ou do guaraná com rolha, mas eu acho que o mundo agora foi colocado do avesso e, não contente, virado de cabeça para baixo.

Publicada em 10/12/2005
Caderno Mulher - Jornal Agora

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Máquinas E "Brujos"

    


       No tempo das coisas eletromecânicas tudo era fácil de ser compreendido. Os aparelhos de rádio e tv, por exemplo, funcionavam a válvulas que, vez ou outra, queimavam - conserto fácil, barato e feito a domícilio, aos nossos olhos. As máquinas, como o mundo de então, eram previsíveis e duráveis.
       Bem diferente dos aparelhos de agora, animados por chips. Não se consegue visualizar o caminho de sua ação e, menos ainda, o motivo de seus problemas.
     Será que as máquinas não tem vida mesmo? O antropomorfismo parece ser justificado nas experiências de manuseio dos eletrônicos. Dia desses levei o computador portátil para conserto. O equipamento, que me é valioso na produção dos artigos, volta e meia, sem motivo aparente, desliga e não religa. Deixei na assistência técnica e ao retornar me foi oferecido o mais pitoresco diagnóstico. Disse-me o muito jovem especialista, com absoluta naturalidade: "ele só liga quando quer". Opa! Meu notebook tem vontade, desejo, vida própria. Eu poderia ter ficado espantada se não fosse alo que eu já tivesse observado. Não há como situar defeito.
     Escrevo agora com mais delicadeza, como quem fala baixinho, para nao ofendê-lo, pois concluí que ele tem um temperamento muito suscetível, com facilidade se ofende. Por ser equipamento portátil, pretendia carrega-lo em viagens. Por duas vezes, ao chegar no destino, estranhou o clima, ou talvez a altitude, ou a viagem de avião e se desligou da vida. Só voltou a se abrir quando retornei para casa. Assim, descobri que é apegado à cidade onde vive. Foi uma decepção, mas me conformei. No veraneio, levei-o para a praia. Parece que estranhou o calor, a maresia. Novamente não quis trabalhar. Será que achou injusto ter que trabalhar na praia? Retornou para casa e logo estava de volta à ativa, sem intervenção alguma. Certo dia, levei-o para o apartamento ao lado. Foi o suficiente para estranhar o ambiente e nada fazer. Só voltou a funcionar em casa. Percebi que, mesmo sendo portátil, é sensível a movimentos, não gosta de agitos. Desisti de leva-lo de lá para cá. Ele é portátil mas não se considera uma unidade móvel. Por último aconteceu de ser colocado outro equipamento na mesa, ao seu lado. Pronto. Foi o suficiente. Outra pane: fechou-se em copas. Foi um período mais longo sem funcionar. Nova descoberta: o bichinho é ciumento! Após todos esses entraves, descobri que se quero contar com sua fiel colaboração, tenho que respeitá-lo. Ele não gosta de viajar de avião, nem de praias, nem de fazer novos amigos. Tem um temperamento caseiro, seletivo, introspectivo. Adora a intimidade do convívio privativo e exclusivo: funciona muito bem se for a dois: ele e eu. Assim, está sempre bem disposto. Cada coisa tem neste mundo!
     Minhas conclusões: a pressa tem outros inimigos, além da perfeição. Os eletrônicos parecem ter alma, espírito e uma forte personalidade, que não aprecia afoitos e estressados. O fato é que, confesso, passei a conversar com computador, impressoras e coisas do gênero. Não sei se eu é que fico zen para lidar com seres tão instáveis ou se são eles que se acalma, mas a coisa funciona e é isto que importa.
     Como sabiamente dizem os espanhóis, no creo em brujos, pero...
                                                          Publicada no Caderno Mulher - em 17/09/2005

domingo, 12 de junho de 2011

Enamore-se

       
      Para evitar doenças se tem por certo o rumo a ser seguido: ficar longe dos excessos e buscar uma vida equilibrada. Mas para ter saúde o caminho parece mais amplo e a receita mais interessante. Uma dieta rica e colorida, aliada a exercícios físicos regulares e uma vida afetiva e social gratificante ajudam em muito. Em síntese, ser feliz parece ser a receita que leva à plena saúde e à longevidade. Para os solitários tristes e agoniados em geral a prescrição pode parecer impossível: a vida lhes pesa e oprime. Como se consegue ser feliz?

       Pesquisas científicas, após seguirem rigoroso percurso pelos complexos meandros dos métodos, estão apontando o óbvio: a felicidade é essencial para a saúde e – a boa notícia – ela depende de uma condição interior. São mais felizes as pessoas que se mantém enamoradas. Isso nada tem a ver com estar só ou acompanhado; com estar namorando, amando ou vivendo com alguém. Os namorados e os amantes estão felizes e permanecerão neste magnífico estado enquanto brilharem as ilusões do fascínio, os ardores da paixão. Enamorar-se de alguém é maravilhoso, mas muitas vezes resulta transitório e culmina com um final decepcionante. Por mais que uma paixão encante ou adoce, sua intensidade diminui e se transforma com o passar do tempo. O caminho do amor romântico parece um tortuoso percurso que culmina em apenas duas alternativas: ou morrer, quando se apaga a faiscante chama das ilusões do encantamento inicial, ou se transformar numa relação com novos significados.

        O enamoramento que leva à felicidade mais duradoura é algo amplo e transcendente. São felizes aqueles que se mantém enamorados pela vida, por cada dia, por cada momento. Esse estado de amor faz com que o corpo funcione bem, que o coração se mantenha firme, forte e que a mente visualize positivamente as diferentes situações do cotidiano. Esta atitude resulta num sentimento de bem estar sereno e profundo, condição capaz de levar o corpo a um estado de vigor e vitalidade.

       Namorar é fundamental, sim, mas namorar a vida, acima de todas as demais paixões – pois elas passam, como tudo passa e sempre passará. Essa atitude de enamoramento definitiva, permanente e transformadora é revolucionária a nível pessoal. E, melhor de tudo, não depende de pessoa ou coisa alguma: jovens e velhos, ricos e pobres, solitários e bem acompanhados, todos – indiscriminadamente – podem ser felizes. Utopia? Mito? Pois teste você mesmo: instaure na sua mente uma disposição positiva, se determine a ser feliz – independente das circunstâncias atuais. Enamore-se de sua existência. Teime, insista, não desista de namorar sua vida, de se encantar com cada dia, de se sentir feliz e observe os resultados após algum tempo.
                                                                       Publicada Jornal Agora 11/06/2011

terça-feira, 31 de maio de 2011

Perdi Um Capítulo

                                                        

    
      Não sei por onde eu andava, mas devo ter perdido um capítulo importante que está me trazendo grande dificuldade de entender certas notícias correntes.

     Num tempo em que a juventude parece tudo usufruir, me deparo com as imagens de jovens protestando pela legalização da maconha. A ampla, geral e quase irrestrita liberdade não lhes parece ser suficiente. O mundo tão complexo, carente de gente bem preparada, e essa turma barulhenta querendo tornar legítima mais uma droga para lhes entorpecer. E eu não entendo a eleição dessa questão como uma prioridade. Achava que a onda de legalização de drogas já tinha passado e que a ordem do dia era dada pela geração saúde, que pratica esportes e cuida da alimentação. Devo ter perdido um capítulo.

     De outro lado, sai dos altos gabinetes de governo uma cartilha escolar elaborada para ensinar a escrever errado. Já vinha sendo acenado um movimento lingüístico de sumiço das letras, principalmente das vogais. Com o MSN, que quase ninguém chama de Messenger, a comunicação entre as pessoas passou a ser feita através de consoantes. A Língua Portuguesa está sendo decepada. Lembro que antigamente as abreviaturas eram ensinadas no colégio, numa lista que dava muito trabalho decorar e sempre era incluída em provas. Agora? Basta tirar as vogais e está abreviada a palavra: vc, q, qq, td, tvz... Nem no tempo do telégrafo se comiam tantas letras. Está certo que as pesquisas de neurociência demonstraram que o cérebro entende o código rapidamente, mas a transformação vai alterando o modo como nos comunicamos e nos entendemos. Os adjetivos, por exemplo, são cada vez menos usados. As frases são reduzidas ao mínimo, por vezes limitadas a um único verbo, desacompanhado de qualquer complemento. Para que “enfeitar”?

     Neste contexto, a proposta do MEC impressa no livro “Por Uma Vida Melhor” encontra muitos defensores que acham dispensável usar – ou aprender – normas de concordância: “os menino pega o peixe”. Entendeu? Então é suficiente. E assim, na base de entendimentos mínimos, vai sendo excluída toda a riqueza do mundo das palavras. A comunicação mínima, que se suporta no momentaneamente suficiente, limita o horizonte do conhecimento, restringe o raciocínio. A escola, que sempre foi a esperança mais tangível para a transformação das condições de vida, agora se propõe a legitimar o errado e mais do que isto, a limitar a capacidade de entendimento dos alunos, restringindo seu vocabulário. E eu que supunha que a função maior da escola era ensinar o certo, divulgar a cultura e estimular a produção do conhecimento. Aonde perdi o capitulo que inverteu a ordem de todas as coisas?

     Seguirei procurando o capítulo perdida, na esperança de desfazer o nó de minhas idéias e melhor compreender o cenário dessas e de outras notícias, que nesse momento me deixam negativamente impressionada.
Publicada em 28/05/2011

segunda-feira, 16 de maio de 2011

A Vingança É Um Prato


     Dizem muitos que a vingança é um prato que se come frio, saboreado ardilosamente. Coisa para ser feita ao longo do tempo, marinada pela mágoa e arrematada pelo ressentimento. Fazem a cobrança tardia de coisas que não permitiram que o tempo apagasse. Vingativos convictos são esses seres capazes de dormirem muitas noites e acordarem com mesma idéia e disposição na cabeça. Esses tipos persistentes, ardilosos, que passam anos a fio bordando e tecendo reações não são numerosos, para nossa grande sorte.

     A maior parte do universo dos vingativos é composta das pessoas vingativas que são dadas a reações imediatas, atos menos pensados, pouco elaborados. São os que agem no calor das emoções, com a cabeça quente, ao estilo “bateu levou”, tão em voga em situações cotidianas bem banais. Gente que não parece perdoar nada, que revida qualquer coisa que lhe pareça ter sido ofensiva: não levam desaforo para casa. É para eles uma catarse: explodem, revidam e se despojam de sua ira. Devoram o prato da vingança cru e quente. Quando a cabeça esfria e o coração se acalma conseguem refletir e até se arrepender dos atos cometidos.

     Desejos de vingança pessoais fazem parte das falhas humanas e, quando causados por amores feridos ou não correspondidos, são fáceis de entender. Muita gente que procura psicoterapia (ou deveria procurar) sofre desses sentimentos mal resolvidos e só supera seus problemas quando conseguem se desfazer da ladainha da vingança que enreda sua vida ao novelo de situações passadas. Perigosas e bem mais graves são as vinganças que se transformam em atos e mais graves ainda quando ensejadas de forma coletiva, promovidas por nações.

     As ações vingativas não colaboram para a paz. Não é revidando ofensas ou praticando crimes que se constrói um mundo melhor. A barbárie nunca foi companheira do entendimento e da fraternidade. Essas ações que vem de longe (e de cima) parecem distantes, mas reforçam outras formas de agir e pensar, nas quais o revide se torna legítimo. São um péssimo modelo e um mau sinal. Estaremos coletivamente aceitando a violência, a arbitrariedade e a vingança como formas legítimas de justiça? Se assim for, estamos retornando ao tempo da barbárie, do olho por olho, dente por dente; do lavar a honra com sangue e outras coisas do gênero.

     Vingança é um prato indigesto e venenoso. Carregado das toxinas da raiva, dos venenos das emoções negativas, não combina bem com a vida e com o caminho do bem, embora continue sendo oferecido em variadas formas no self-service de nossa existência. O mundo estará melhor quando desarmar corações, pensamentos e atitudes; quando for alimentado por uma dieta leve, regada a fraternidade ampla, geral e irrestrita. Por enquanto, continuamos muito longe disto.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Perdoai-vos, Eles Não Sabem O Que Fazem

    
      Perdoar é uma das atitudes mais milagrosas, talvez vez o maior milagre que qualquer ser humano possa praticar. O perdão é capaz de modificar toda a dinâmica das emoções internas, de liberar a pesada tensão da mágoa, diluir a explosiva sensação de raiva, romper a corrente eterna dos ressentimentos. Algumas pessoas pensam que o perdão é algo que se dá a outra pessoa, mas o perdão é algo que damos a nós próprios, mesmo quando perdoamos outra pessoa. Perdoar não é se reconciliar com o errado, nem ser cúmplice dele, é apenas restaurar em si mesmo a paz, o equilíbrio e a serenidade. Perdoar não é esquecer, pois o esquecimento é apenas perda de memória, apagamento de lembranças, amnésia. Perdoar é descolar a dor aguda e as emoções negativas das pessoas ou das situações que a geraram. Ao perdoar alguém largamos a pesada mala dos sentimentos ruins que carregávamos e que fazia nosso coração sofrer.

     Precisamos ter uma atitude constante de perdão, pois a cada momento somos atravessados por situações capazes de gerar emoções ruins, decepção, indignação. Na esfera pessoal, os amores, os amigos, os familiares tantas vezes dizem coisas indigestas, tem atitudes que nos ferem e muitas vezes nem se dão conta disso. No dia a dia, quantas vezes somos passados para trás na fila do super mercado, no estacionamento do carro e tantas outras miúdas, mas freqüentes situações. No trabalho, cada vez mais nos confrontamos com ninhos de cobras venenosas. E ai? Nossa pressão arterial sobe, o coração acelera e a musculatura do corpo todo se contrai de tensão. Pois perdoar provoca imediato relaxamento. Perdoai-vos, pois eles não percebem o que falam, não sabem o que fazem.

     Há tantos que não sabem o que fazem e nem se dão conta disso. Gente que comete atrocidades, mas que se acha justa e santa. No âmbito coletivo, esse é um mundo de absurdas crueldades, de desonestidades de variadas formas; gerido por regras elaboradas pelos que só pensam em si mesmos e buscam benefícios apenas para sua turma. Para sobreviver precisamos permanentemente perdoar. Precisamos perdoar, pois eles não sabem o que fazem: encharcam-se com benefícios de toda ordem, enquanto discutem em plenários o tamanho das migalhas que distribuirão aos seus súditos, digo, eleitores. Precisamos perdoar até esses tipos? Sim, perdoar, mas sem esquecer e nem deixar de tomar atitudes corretivas. Apenas amainar o coração, liberá-lo do peso das emoções negativas para deixar a mente trabalhar com serenidade e assim usar a inteligência para buscar soluções e poder tirar de funções públicas aqueles que não são dignos dela.

     Toda essa gente que age como criança mal educada necessita de corretivo para aprender e deixar de praticar maus atos, precisam da ação psicopedagógica da penitência, capaz de levar luz a suas almas sombrias. Precisamos perdoar para poder ensinar, corrigir e penalizar com a medida dos justos, com a sabedoria dos bons pais e dos bons mestres. Todas as más notícias que nos assombram, todas as injustiças e grosserias que nos são praticadas precisam ser perdoadas, pois só assim impedimos que o rancor e a desesperança se instaurem em nossas vidas.

Publicado em 30/04/2011

Aprender A Perder

    
     Ensinamos nossos filhos a ganhar, a buscar a vitória a todo custo e a despeito de qualquer pena. Moldados pelo paradigma da moderna sociedade industrial, cultivamos a idéia de que só há valor no ganho, no proveito e no lucro. Esquecemos do outro lado da moeda da vida. Tudo o que se ganha também se pode perder e é preciso aprender a lidar com isso.

    Como a descida de uma montanha exige muito maior cuidado e prudência do que a escalada de subida, saber perder é mais complicado do que aprender a ganhar. Aprender a perder é um valioso aprendizado, coisa que se ensinava às crianças nos remotos tempos em que o mundo infantil era preservado distante das conversas e interesses adultos. Mas, em função das agudas transformações da sociedade na qual vivíamos, permitimos que nossas crianças fossem transformadas em precoces consumidores; deixamos de oferecer limites entre o necessário e o dispensável; entre o certo e o errado; entre o bom e o mal. Criamos o mundo das ilusões e dos holofotes; da fama rápida, do sucesso fácil. Era tudo isso adequado ao ciclo de transformação pelo qual passava a sociedade invadida por máquinas e regrada por paradigmas de urgência, competitividade e consumo. Assim exigia e inspirava o mundo das máquinas a todo vapor, acenando uma vida confortável, perfeita, repleta de tudo e ao alcance de todos. Acreditamos no admirável mundo novo e criamos a geração de nossos filhos para desfrutá-lo.

     O fantástico mundo mecânico que instaurou a era moderna agora está superado pelo novo mundo da informação, que gira em saltos e prescinde da necessidade de engatar uma peça na outra. Esse universo saltitante impõe muito maior necessidade de equilíbrio emocional do que o mundo aparentemente sólido oferecido pela era anterior. As ilusões de então estão perdidas: foram-se os empregos estáveis, a segurança das ruas e tantas outras coisas. O mundo é outro, repleto de incertezas presentes e futuras. A espiral dos retornos, que sempre regrou a história, traz de volta a necessidade de resgatar aprendizados de tempos remotos.

     As patologias que estão surgindo são decorrentes das novas contradições sociais e exigem que se ajuste o modo como educamos as gerações futuras. Dentre as mais valiosas habilidades a serem desenvolvidas está a capacidade de resistir a situações adversas chamada de resiliência. Só algumas poucas pessoas são dotadas de inata resiliência, a maioria precisa ser educada para desenvolver essa capacidade, aprendendo a enfrentar perdas e superar frustrações. É muito melhor ensinar as crianças, em situações de ensaio e erro cotidianas, do que as deixar crescer como adultos despreparados, com grande dificuldade de enfrentar as agruras do mundo e as decepções da vida.

Publicada em 16/04/2011

segunda-feira, 21 de março de 2011

O Show Precisa Parar

“Tratem bem a terra.
Ela não foi dada a vocês por seus pais,
mas foi emprestada a vocês pelos seus filhos.
Nós não herdamos a terra dos nossos ancestrais,
mas a tomamos emprestada das nossas crianças. ”*


     O mundo treme num mar de vítimas. As diárias notícias de novas tragédias passam a fazer parte do cotidiano. Enquanto muitos se deparam com a falta de tudo, alguns ajudam, mas outros tantos - o grosso das tropas - continuam se divertindo, vendo a banda, a novela, o BBB, o tempo e a vida passar.

     Mais um tremor, tsunamis, explosões, dores por todos os lados. Notícias cada vez mais trágicas deixam de serem chocantes. O show não pode parar e, entre notícias sérias, continua o efervescente festival das banalidades. Prossegue a vida de entretenimento, de distrações e passatempos; o jogo do faz de conta dos assuntos triviais. Na TV, num mesmo bloco de notícias são apresentadas cenas trágicas de lugares próximos e distantes; seguidos dos jogos da rodada. Tudo comentado brevemente e colocado no mesmo patamar de importância. Que cresça eternamente o produto interno bruto e aumente o consumo sempre e sempre. Os países seguem competindo na capacidade de produzir cada vez mais, para gastar cada vez mais. O mantra do consumismo hipnotiza consciências e anestesia a capacidade de perceber a realidade. Na ilusão da riqueza a total negação da gravidade do que se anuncia todos os dias.

     A Terra adernou 25 graus, mudou seu eixo e, enquanto os especialistas divergem sobre a possibilidade de conseqüências, a orquestra toca animada para distrair os passageiros. Segue a TV em sua programação normal. Foi no Japão, tão distante. Não há com que se preocupar. Foi em São Lourenço do Sul, não foi aqui. Migrações ecológicas começam a acontecer num movimento triste de gente que perdeu tudo e não sabe e nem tem para onde ir. Mas parece que enquanto não estiverem batendo na nossa porta o assunto não nos pertence e nunca nos atingirá. A inundação acontece em nossa cidade, mas se não acontecer na nossa rua, na nossa casa – o assunto não nos envolve. Se as autoridades tão bem pagas para nos representar e resolver as questões coletivas não fazem o suficiente, porque faríamos nós? Quantas ilusões! Quanta alienação!

     É tempo de mudar de ponto de vista, de olhar a vida e o mundo a partir de uma perspectiva mais ampla e duradoura. Não herdamos a terra, ela não nos foi dada. Apenas a tomamos emprestada daqueles que nela viverão após nossa passagem, como sabiamente diz o antigo provérbio indígena colocado em destaque ao início desta crônica. Colocando a mão na consciência: temos sido inquilinos negligentes e egoístas. É momento de escolher outras prioridades. Se há saída, ela é pela via de uma vida mais simples, com menos, cada vez menos coisas, menos apegos, menos ambições, menos vaidades. Uma vida com mais senso de responsabilidade. A transformação pessoal talvez represente um grão de areia ou uma gota d’água diante da indiferença geral, porém é de gotas d’água que se formam os oceanos e de grãos de areia que são feitos os desertos.

(*) Antigo provérbio indígena americano, citado no Boletim O Teosofista: http://www.filosofiaesoterica.com/ler.php?id=1123
publicada em 19/03/2011



segunda-feira, 14 de março de 2011

Domar O Coração


     Atitudes de fúria súbita fazem pensar no que faria um ser humano se despojar de toda sua humanidade e agir como o mais feroz dos animais. Os crimes movidos por doentias paixões existem desde tempos remotos, inspirando o teatro e o cinema com enredos trágicos. Embora pairem no sombrio território da loucura, gozam de certa complacência. De algum modo, os amores loucos encantam, ainda que assustem.

      Diferentes são os atos praticados sob violenta emoção motivados por pura raiva. Cada vez mais freqüentes e variados, esses crimes de ódio são um sinal do crescente desequilíbrio coletivo. Uma sociedade calcada sobre valores equivocados, individualistas, materialistas, nem deveria se espantar de estar gerando – como subproduto - pessoas intolerantes, arrogantes, egoístas, prepotentes e tantos outros adjetivos negativos. Pessoas narcisistas que amam menos outras pessoas, mas são apaixonadas por coisas e se comportam como birutas de aeroporto, seguindo os ventos ditados pela mídia, são seres vulneráveis, com limitada capacidade de pensar e baixa capacidade de resistir a frustrações.

     Para piorar, popularizou-se que sadio e normal era dar vazão às emoções. Várias teorias científicas ratificaram a idéia de que não se devesse reprimir afetos. Da era da repressão, da contenção, escorregou-se para o tempo dos imperativos do coração, do seguir cegamente os impulsos, do buscar satisfazer todos os desejos, independente do que isto custasse. O resultado está agora se tornando nítido para quem queira ver e refletir.

     O coração é um músculo instável, sensível as sutilezas das emoções. O músculo cardíaco reage instantaneamente diante das emoções vividas e o cérebro tem dificuldade de pensar quando o coração está agitado demais. A relação de mútua interferência cérebro-coração reverbera emoções, que se repetem em eco e levam a um colapso temporário por excesso de estímulos, restringindo a capacidade de raciocínio. Se os batimentos aceleram e a pessoa não está correndo, o cérebro fica confuso, tem dificuldade de saber o que está acontecendo e, por isto, acaba pensando errado, agindo errado.

     Compreendendo este funcionamento é fácil entender que, assim como o exercício físico amplia a capacidade cardíaca e o coração passa a bater menos para fazer mais movimento, é possível “treinar” para desenvolver resistência cardíaca aos solavancos existenciais e suas freqüentes frustrações. Quem desejar não ser refém dos imperativos emocionais precisa domar seu coração para ser capaz de pensar – sempre – antes de agir e até mesmo de falar. Essa é a maior liberdade e o maior poder que alguém pode conquistar: domar o próprio coração.

Publicada em 05/03/2011

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Feliz Aniversário Rio Grande!

Rio Grande foi fundada no dia 19 de fevereiro de 1737. O Sol estava a um grau de Peixes, o signo astrológico mais universal e místico do zodíaco, quando Silva Paes deu por iniciada a povoação. A Lua estava em Escorpião, em conjunção precisa com Plutão e em uma relação geométrica harmoniosa com Netuno, o deus mitológico das águas e do Oceano. Assim escreve Carlos Aveline, no artigo intitulado “A Teosofia na Origem de Rio Grande”, publicado no WWW.RioGrandeTeosofia.com, concluindo que esses fatores estabelecem uma inclinação para transcendência e para um sentimento de unidade com o Todo Universal, o “Oceano da Vida”.


O fundador, Brigadeiro José da Silva Paes, cuja figura está postada numa estátua na Praça em frente da Prefeitura Municipal, foi um homem de mente aberta, espírito culto e inclinação filosófica. Além de possuir uma biblioteca com livros devotos (comuns ao português oitocentista de boa posição), livros de filosofia, de geometria e trigonometria, de medicina, de cirurgia e de história, participou da “Academia dos Felizes”, no Rio de Janeiro.

Assim, em função da privilegiada localização geográfica, foi fundada a cidade do Rio Grande, num dia em que os astros estavam combinados a seu favor, por um homem muito acima de seu tempo. A fundação foi iniciada pela construção de um forte, cuja planta configura claramente uma estrela de seis pontas, conhecida como a “Estrela de Davi” ou “Selo de Salomão”, que é um símbolo judaico, mas pertence também a cultura oriental, como referido por Aveline no artigo já mencionado, que pode e merece ser lido na íntegra no site WWW.RioGrandeTeosofia.com.

Rio Grande evoluiu, foi capital da província e viveu um ciclo longo de desenvolvimento. Mas a fase das vacas gordas, das variadas fábricas, dos teatros e cinemas, foi sucedida por um sombrio tempo de vacas magras, estagnação e esquecimento, no qual só não foi fechado e mudado de lugar o Porto, por absoluta impossibilidade de ser daqui retirado. O espírito de desesperança foi tomando conta, anestesiando as pessoas e levando a um total esquecimento de tudo aquilo que fazia desde um lugar especial para se viver.

O pensamento se tornou miúdo diante das adversidades e a visão de curto prazo fez esquecer sua origem, sua história e também suas riquezas perenes, como a natureza privilegiada pelas águas do Oceano e da Laguna. Fechando os olhos para o que era importante, a cidade se voltou para dentro, ensimesmou-se: deixou de enxergar sua beleza e sua vocação natural.

O ciclo de obscurecimento, que para os pessimistas era dado como eterno, foi revertido recentemente. Hoje se respira um ar de transformação: a cidade se renova e se expande, para alegria de uns e temor de outros. Se há muitos que criticam e reclamam das mudanças, já não há mais quem possa duvidar de que a cidade se tornará outra num curto espaço de tempo.

Assim funciona e se cumpre a Roda da Vida: vivemos hoje um novo momento e temos o que celebrar. Esse novo ciclo não será eterno e nem perfeito, pois assim são todos os ciclos, mas é um momento especial. Esse Rio Grande pulsa vibrante, transpira vida, renasce, merece nossa coletiva homenagem.

Feliz Aniversário Rio Grande!
publicada  em 19 de fevereiro de 2011

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Os Descartáveis e a Missão Impossível



     Eram tempos muito remotos aqueles em que a TV exibia, em preto e branco, a série Missão Impossível. Cada episódio começava invariavelmente pela missão a ser cumprida, que vinha em fita gravada num pequeno aparelho. Ao final da audição, uma mensagem advertia de que a mensagem se autodestruiria em cinco segundos, o que acontecia com a fita virando fumaça, num pequeno incêndio. Quando o mundo era feito de coisas concretas, tudo funcionava a olhos vistos, na dimensão da materialidade. Assim, a fita incendiada sumia, se dissipava em nuvem e nem se pensava para onde iriam suas partículas. Elas simplesmente desapareciam do espaço aéreo de nossa ingênua consciência.

     A mesma ingenuidade fascinada com o mundo das novidades ficou encantada com o surgimento dos produtos descartáveis. A praticidade era acenada pela facilidade e pela economia de esforços. Até ali, se buscava leite em cambonas metálicas ou em garrafas de vidro, que eram lavadas e passeavam no leva e traz das leitarias, lugares onde se vendia leite e que, via de regra, cheiravam azedo. No mesmo cenário, existiam os armazéns próximos o suficiente para se ir e vir a pé. Com paredes recobertas de armários de madeira e portas de vidro, ofereciam variados produtos a granel, pesados na frente do freguês, embalados na prosa do vendeiro, geralmente um português chamado Manoel ou Joaquim. A conversa fiada pela passagem quase diária era acompanhada pelas sacolas trazidas de casa, pois do contrário não haveria como levar as compras. Era um mundo dinâmico, permeado por trabalhos leves rotineiros que, ao final do dia, promoviam um saudável exercício muscular e gasto calórico.

     Num rápido giro do tempo, avançamos – ou pensamos avançar – para o ciclo dos descartáveis. A preguiça passava a se chamar praticidade e a vida moderna era sinônimo de economia de esforços e diminuição de trabalho. Nada mais de levar e lavar garrafas, carregar sacolas. As sacolas plásticas eram uma benção que se juntava ao espetáculo dos novos mercados super, com mercadorias ao alcance das mãos. Sumiam os românticos armazéns de esquina substituídos pelas compras em lote.

     Passaram-se poucas décadas para se desfazer a ilusão e se revelar a desconfortável verdade. Multiplicaram-se os produtos, transformados em marcas e embalagens de todos os gêneros, que enfeitam prateleiras, seduzem consumidores e depois são jogados na rua, circulam mundo à fora, à céu aberto, exibindo um espetáculo grotesco. Algumas situações são hoje claras demonstrações do esbanjamento desnecessário e da inconsciência coletiva. Um dos mais chocantes, para a sensibilidade consciente, é o uso e abuso de utensílios e enfeites descartáveis em festas de todos os gêneros. Os festejos públicos são ainda mais assustadores: geram em poucas horas toneladas de copos, pratos, talheres plásticos, que extrapolam a capacidade das lixeiras e seguem o curso das ruas, das valetas, dos rios.

     A preguiça-praticidade gerou um mundo no qual o lixo é a maior “missão impossível”: ele está em toda parte e nos mais variados formatos. Pelas conseqüências graves, todos os produtos deveriam levar em suas embalagens a mensagem de advertência: “esta embalagem só se destruirá em 100 anos”; ou outras mensagens mais assustadoras e melhor inspiradas. Nossa geração inteira vai embora e deixará de herança muito lixo para nossos amados filhos, netos, bisnetos, se não tomarmos nossa dose diária de juízo, adotando uma vida simples, reutilizando embalagens e descartando o mínimo. Essa é uma missão possível.
publicada.
 JORNAL AGORA
05 de fevereiro de 2011

sábado, 22 de janeiro de 2011

A Corda da Salvação



A cena roda o mundo espantando pelo improvável. Na correnteza feroz, uma mulher de 53 anos grita desesperada dentro do que restava da casa que ia sendo devorada pelas águas. Isolada, não parecia haver para ela salvação. Mas, no instante final se descortina o desfecho quase impossível. Surge a corda certa, na medida necessária, lançada no momento e no lugar exato. Surgida dos céus do terceiro andar do prédio vizinho, a salvação se apresentava, mas passa a depender do esforço e determinação da mulher. Era de sua conta atar-se e confiar nas forças dos que, como anjos, estavam prontos a ajudá-la. Em segundos, ela aprende a fazer bem feito o primeiro nó de sua vida, com decisão se segura e se entrega aos seus salvadores, que vencem a derradeira tarefa de içá-la prédio acima.

Se fosse cena de filme teriam sido exigidos muitos ensaios e complexos cálculos: decidir as características e o tamanho da corda, o tipo de nó a ser utilizado... Mas foi tudo executado com o improviso da urgência, numa única tentativa. Dificilmente algum dos protagonistas alcançaria sucesso em repetir a proeza. Porém, dirigidos pelo perigo iminente, a necessidade deu a força, a coragem e foi alcançado êxito. A câmera que filmou tudo fecha a cena, abrindo a cortina para reflexões.

A corda esteve no centro da cena de salvamento. Naturalmente, só foi útil porque houve alguém que se lembrou de buscá-la, surgiu talento para lançá-la e vários “alguéns” tiveram força necessária para o resgate final. Uma mistura de casualidades e grande presença de espírito: combinação que foi definitiva para a solução acontecida. A corda representou a tábua de salvação. Algo que é lançado no momento de mais agudo desespero; que se apresenta como a saída, mas que sempre, inexoravelmente, depende da decisão de quem está em desamparo: agarrar-se à ajuda e fazer sua parte, ou não.

As tragédias acontecem pela mesma combinação de situações e pessoas: por um triz, vão-se preciosas vidas. E pela mesma mínima medida de um triz, salvam-se existências. O que separa a boa sorte da desgraça é um mínimo segundo ou uma caprichosa combinação de pouco prováveis coincidências. Desafiando as probabilidades estatísticas, acontece o inusitado. Como se tivessem encontro marcado: estão todos na hora certa, no lugar exato e tudo dá certo, na medida justa de todas as coisas. Ou o contrário de tudo isto: a hora errada, o lugar errado e o desfecho fatal.

Vivemos o dia a dia na corda bamba dos afazeres, dos passatempos, dos prazeres e desprazeres. A vida vai sendo levada ao sabor da eternidade, colocando o tempo a perder. As freqüentes tragédias nos alertam e tentam nos levar a reflexão. Muito possivelmente, teremos todos que lidar com as conseqüências graves das mudanças climáticas. Só os insensatos podem se sentir a salvo do futuro que se anuncia. Providenciar kits de salvamento pode ajudar: cordas, bóias, lanternas, velas e outras coisas mais. O principal, porém, há de ser ficar atento, sereno e lúcido para ser capaz de lançar a corda de salvação ou se agarrar a ela, dependendo do lado para o qual os maus tempos nos joguem.
publicada em 22.01.2011

sábado, 8 de janeiro de 2011

Entre Retrospectivas e Contagens Regressivas

     Os desatinos de final de ano bombardearam os céus com toneladas fogos e entonteceram as pessoas com shows de imagens e sons, tudo elevado ao expoente do exagero. O ano que terminou foi reduzido numa veloz retrospectiva, em ritmo pisca-pisca de notícias do acontecido: improvável ou impossível refletir sobre o que é apresentado. Para que pensar? O mundo está perdendo o senso de sentido das coisas.

    Passado o dezembro com seus coloridos embrulhos e ferventes agitos, a vida vai surfando meio preguiçosamente no verão de janeiro. Certa ressaca atrasa o avanço dos dias.

    O verão abrasador espanta ainda mais o ano que passou. Para muita gente, é a época de ouro: tem gosto doce de férias e sabor melado de diversões. Tempo de espairecer, de não pensar em nada, esvaziar a mente das ocupações e preocupações. Depois a gente pensa, depois...

    A vida vai fluindo cada vez mais rápida e desatenta. Não por coincidência, mas por uma conjugação de casualidades, nem pisamos o novo ano e somos saudados pela temporada das enxurradas. Claros sinais das alterações climáticas, evidências dos equívocos e irresponsabilidades humanas. Mas por aqui o sol está escaldante, a praia borbulha de gente e o mar está bom para banhista, surfista e todas as demais tribos. Depois a gente pensa, depois.

     Já a turma festiva do grupo dos seguidores de maus exemplos pensa rápido, não perde tempo e comemora fartamente. Devorando as maiores fatias do bolo e embolsando mais uns pedaços, entre gargalhadas, conversa de boca cheia sobre o tamanho das migalhas que deixará para o povo do salário-mínimo. No andar de cima a festa nunca acaba e é sempre animada com sofisticadas comidas, variadas bebidas, caros trajes, importados perfumes e uma exibição de despudor, maus modos e falta de sensibilidade coletiva.

     É. Nós, da câmara dos comuns, dos abobados da enchente, saltamos festivos e cada vez mais barulhentos para o Novo Ano, iludidos com as contagens regressivas: faltam tantos dias para o Natal, para o Réveillon, para o Carnaval, para o final do verão ou para o final do mês. Que amanheça, anoiteça e que chegue o salário, que acabe o carnê do carro; que chegue isto ou que acabe aquilo. E se passam noites e dias sem que se atribua valor, importância e significado à existência.

     Deixamos-nos embalar por ilusões que nos parecem coisas sólidas! Amparamos-nos nelas como se fossem concretas, para depois vê-las ruírem, se dissiparem nos ventos do tempo, como acontece com todas as miragens.

     Entre lembranças e sonhos, vamos navegando, distraídos do caminho que cruzamos, desprezando o precioso presente. Saltando sobre os dias, brincando de viver. Um dia a gente para e reflete, medita, pensa. Um dia a gente aprende a levar a vida mais a sério, assume as responsabilidades, toma atitudes. Entre retrospectivas e contagens regressivas vamos fazendo uma vida em flashes. Um dia a gente pensa e nesse dia a gente aprende.
                                                                                          publicada em 08.01.2011