segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Natal dos Figurantes


     A maratona de compras, o malabarismo das contas, os comes e bebes, qual o sentido de tudo isto? Por vezes, aé se perde de vista o significado da celebração. No meio de tanto o que fazer, acaba o essencial ficando oculto.
     O significado é algo da ordem da atribuição e não da coisa em si mesma - independente do que seja e do valor intríseco que possua.
     É fácil escorregar nos modismos, ceder à tortura insistente dos apelos da mídia. Mas o Natal é algo mais transcendente e não há forma mais gratificante de vivê-lo do que numa partilha generosa e solidária. Solidariedade está em alta, virou moda, se fala e se faz muita coisa m nome desta palavra comprida. Por telefone, pela internet, na saída do supermercado, muitas são as vias para doar alguma coisa aos que mais precisam. Solidariedade on-line, 24 horas - bem cosmopolita. A culpa social fica aliviada em alguns minutos, a custo acessível.  Tudo isso é muito bom, essas redes de solidariedade são indispensáveis, mas precisamos avançar mais. Precisamos ser também capazes de entregar em mãos nossa cota social.
     Muitas pessoas circulam nossa vida, sem nunca adentrar à sala, sentar à mesa, receber um bom dia. Gente sem nome nem rosto, sem história, figurantes em nossas vidas. Alguns são figurantes tão próximos que chegam a participar de cenas importantes de nosso contidiano, mas sempre na posição coadjuvante dos personagens secundários. Prestam serviços subalternos - via de regra tão pesados quanto mal pagos. Participam, falam, mas não opinam. Gente maltratada pela vida, acostumada a fazer seu trabalho penoso sem receber o obséquio de mínimas atenções, sem ser olhada no rosto, sem ser chamada pelo nome, sem por favor e nem muito obrigado.  Os serviçais fardados e os desempregados, que guardam carros, catam o lixo, varrem ruas, faxinam casas, fazem mil pequenas indispensáveis tarefas.  Exército de valiosos figurantes. Sempre próximos, sempre invisíveis. Dispensar-lhes atenção nestas datas é o mínimo que se pode fazer, mas não é comum que se faça.
     Não sou afeita  a receitas de vida, mas sugiro que se experimente neste Natal doar pessoalmente alguma atenção direta para um desses personagens do esquecimento. Experimente doar pessoalmente algo minimamente generoso, que faça diferença para quem recebe e descubra quanto a felicidade pode custar pouco. Aquele dinheiro que crianças tiranas recusam para o lanche, será motivo de um agradecimento emocionado. Gente que vive de moedas não está acostumada com cortesia, se comove diante de um minimo trocado que, para sua vida, pode fazer uma imensa diferença. A passagem de ônibus de volta para a casa (R$1,50) evitará a caminhada de horas; alguns pães a mais (R$ 2,00), o almoço para toda a familia por apenas 5 reais. Como tão pouco dinheiro pode fazer tanta diferença? Pode, claro que pode. O Natal dos Figurantes é absurdamente barato, é a prova dos nove da desigualdade social. Essa atitude natalina pode ser revolucionária: pessoalmente  terapêutica e socialmente transformadora.
     As luzes de Natal podem perdurar se forem acessas com o brilho da partilha, da tolerância, da compreensão, do amor e da solidariedade. Feliz Natal a todos.
Publicada em 18/12/2004
Jornal Agora -Caderno Mulher

Tamagochi



     Alguém tem ainda um tamagochi? Ninguém? Nem em casa, nem em lugar algum, possivelmente, haja um tamagochi "vivo" daquela geração original, disputada a preço de ouro. Houve um extermínio silencioso dos tamagochis. Ao contrário do alvoroço que provocaram em sua chegada,sumiram sem gerar protestos,sem luto ou culpa.
     Para quem já esqueceu - ou descartou da memória - estou falando daquele chaveirinho tocante, que nos foiimpingido pela inteligência mercantilista japonesa com a proposta de servir  para cultivar o sentimento humano de cuidar de alguém. É bom lembrar que, na época em que chegaram, houve uma febre, uma verdadeira epidemia dos "bichinhos de estimação virtuais". Discussões acaloradas, inclusive em meios acadêmicos e cientificos, trataram da importância dos tamagochi. O assunto parecia muito pertinente: devia-se permitir ou proibir que as crianças levassem seus tamagochi para a escola? O tamagochi auxiliaria crianças a desenvolverem habilidades afetivas e sociais através daquela forma de "cuidado"? Alguns profissionais, espertos, chegaram a considerar que o chaveirinho pudesse representar o Outro, indispensável a constituição psíquica. Parecia até cômodo: tamagochis não faziam xixi, não roíam os móveis, não latiam, não comiam ração, nem precisavam de banho e tosa. Tudo era virtual: água que não molhava, passeios feitos a um simples toque de botão...  Aparentemente inofensivos, os bichinhos virtuais logo mostraram sua tirania: exigiam pronto atendimento a cada chamado e só quem teve um sabe o quanto eram exasperantes seus chamados.
     Houve os que argumentaram que o chaveirinho tocante, entre suas fantásticas utilidades, ajudaria na elaboração da perda, da morte, do luto. O tamagochi era muito "sensível", necessitava de atenção permanente, se não fosse cuidado convenientemente "morria". Morria, como morre tudo o que é movido à bateria e pode ressuscitar tantas vezes quantas a gente troque a bateria. Mas a coisa era tomada como real no seu significado simbólico e no apagar do chaveiro havia um colapso trágico no entorno familiar. Só faltou ser feito o enterro do tamagochi - será que faltou? Muita gente séria, adulta, culta e inteligente prestou seu plantão de babá de chaveiro e levou o serviço à sério.
      Para onde caminha a humanidade? Fomos capazes de aceitar viver uma relação de cuidado amoroso com um chaveiro!
     Mas a experiência valeu. Quase tudo nesta vida vale, quando se sabe tirar o valioso proveito da aprendizagem. Os tamagochis foram o mico da vez, a bobagem levada a sério, a moda absurda e ridícula - como quase todas as modas. Ainda há tamagochis a venda, mas agora custam o preço de um chaveiro, sem mais pretensões afeito-sociais.
     Aos pedagogos, psicólogos e especialistas em geral, restou uma constrangedora e penosa lição: é preciso ser crítico, manter o bom senso e não se deixar cair na tentação perniciosa dos modismos.
     Observação final:  a necessidade de cuidado é uma das nossas necessidades mais transcendentes, que só se realiza na presença de um outro ser vivo, seja ele pessoa, anial ou planta. Coisificar esse afeto perverte, exaure, esteriliza um dos mais nobres sentimentos humanos.
Publicada em 04/06/2005
Jornal Agora - Caderno Mulher

Os Aposempatos e os Pega Ratões



    Os pouco afeitos ao sabor das letras, criticam o ensino de regras ortográficas e gramaticais, por considerarem o assunto complicado e enfadonho. Contanto que seja resolvido, tanto lhes az que seja um problema, um "probrema" ou um "polema". Em parte, os traumas escolares com a Língua Portuguesa se justificam. Gastam-se anos de vida estudando os floreios da linguagem, sem que a riqueza do vernáculo se associe com sua importante função organizadora do pensamento. Pelas vias e lapsos da palavra nos revelamos e pelos mesmos caminhos desvendamos o mundo, deciframos pessoas, resignificamos a realidade.
     A aprendizagem da leitura é algo transformador, mas não basta ler. É preciso alcançar o entendimento crítico do que se lê. Como tornar o ensino mais encantador e também mais útil? Uma idéia é atrelar a aprendizagem ao cotidiano e, neste aspecto, a vida de hoje é por demais inspiradora.
   Talvez um dos exercícios mais criativos e envolventes pudesse ser a proposta de realizar pesquisas de campo, em especial no espaço profícuo das peças publicitárias. Nos anúncios encontramos assassinatos de Gramática e Ortografia, ofertas curiosas, coisas engraçadas, mas, principalmente, muitas armadilhas publicitárias - estas, especialmente, mereceriam aprofundados estudos em todos os graus de ensino.
     Atualmente o alvo principal da propaganda são os aposentados e pensionistas. Figuras de idosos ricamente vestidos, desfrutando praias do Caribe, sugerem que com um empréstimo o aposentado possa mudar de vida. Alguns textos anunciam expressamente a promessa de transformação radical.  Parece que da fila do Inss o aposentado saltará direto para o embarque num luxuoso cruzeiro marítimo. Sem mínimo pudor, artistas consagrados personificam agiotas sorridentes, sustentando promessas enganosas. O bombardeio é total: anúncios em embalagens de lojas de todo tipo, propagandas enxertadas em programas de grande audiência, cartazes por todos os lados. "E o melhor de tudo: desconto direto na folha de pagamento."  Melhor para quem???
     Os aposentados são os patos da vez, os aposemtapos, prestes aperderem, no impulso de um telefonema, um terço de suas penas, ou melhor, de seus penosos benefícios. Notícias dão conta de que 25 mil depenados, digo, aposentados são cozinhados diariamente num caldeirão fin/anceiros de mais de 5 bilhões de reais. Deixemos os números de fora - para serem tratados quando falarmos na disciplina de Matemática.
     O tema "empréstimo para aposentados" é apenas um exemplo dentre tantos outros assuntos, muito atuais, que podem ser ricamente explorados em sala de aula, para estimular a percepção de mensagens subliminares, dos duplos significados, dos conteúdos discrepantes, dos sujeitos ocultos dissimulados. Essas atividades são normalmente trabalhadas apenas às vésperas do vestibular,como treinamento para enfrentar os usuais "pega ratões", como são conhecidos os textos que inspiram equívocos de interpretação.
     Se os aposentados e os consumidores em geral estão sendo tratados como patos, ratos e outros bichos, aprimorar a leitura dos "pega ratões" pode ser preciosa aquisição escolar.
Publicada  em 23/04/2005
Caderno Mulher -Jornal Agora   

domingo, 12 de dezembro de 2010

Os Yodas: Sua Vida Sob Nova Direção

Esse é um mundo que, compulsivamente, inventa. Cria-se de tudo, inclusive genéricas maluquices. Quase não dá mais para se espantar, mas ainda há o que ultrapassa o amplo limite de nossa tolerância. Dizia a manchete do jornal da capital: “É natural: queremos alguém que nos guie”, reproduzindo palavras da consultora especialista em consumo, Melinda Davis. A americana do norte é autora do livro A Nova Cultura do Desejo, que defende que as pessoas querem ser poupadas de chateação no seu estado de espírito: querem ser liberadas do peso de tomarem decisões e fazerem escolhas. E acrescenta que para vender é preciso proporcionar mais do que prazer: êxtase. As palavras de Davis apenas verbalizam o que a realidade do cotidiano demonstra: vivemos uma sociedade extasiada pelo consumo. Os Yodas aparecem como guias para satisfazer os ávidos consumidores.

Vai fazer uma viagem? Procure um yoda que lhe guie não apenas o caminho e seus atalhos, mas defina o roteiro e os lugares que você deverá ir. Este é o modo de transformar os preciosos dias de férias em um roteiro de compromissos agendados: acordar cedo, não perder passeios “imperdíveis”, etc e tal. Não invente, nem improvise, apenas siga o roteiro.

Para boa sorte geral, as viagens programadas acontecem esporadicamente. Os piores guias são os que atormentam o dia a dia, determinando desde o traje até o que se deva ou não falar, comer, beber. O que combina e o que não combina. Tudo estabelecido sem levar em consideração os juízos de valor e as particularidades de gosto ou paladar. Para comprar um vinho, consulte um guia, leia a opinião de especialistas que vão lhe falar coisas que você provavelmente nem vai entender, mas que lhe apontarão o que deverá servir em seu copo. Se a questão é comprar um livro, consulte um especialista. Decorar cada, o decorador. Presentear alguém? Tem o especialista para indicar o que deve se comprado. Nem pense em ficar perdendo seu tempo precioso com essas miudezas.

Pensou num cineminha? Tropa de Elite 2 é sucesso de bilheteria, os yodas o recomendam para crianças, jovens, adultos e idosos. Tiro pra cá, palavrão pra lá, mas é bom, tem quer ver, pois essa é a realidade – do morro, da favela, do crime. Tem que ver, independente da sua idade ou sensibilidade ou do lugar onde viva. Depois você toma uma o remédio da pressão, uma dose a mais do antidepressivo ou um comprimido para conseguir dormir.

Os yodas estão sempre prontos a colocar a vida alheia no piloto automático: ninguém precisa mais pensar em nada, apenas prosseguir no rumo apontado e, como Pilatos, lavar as mãos pelas decisões não tomadas. É vida sob nova direção, sendo vivida por escolhas ditadas, dissociada de significados, inconsciente de conseqüências.
Publicada
dia 11/12/2010 

Volúpia de Parecer Sacrificado

Caprichosa é a subjetiva capacidade de sentir alegria ou dor. O que para uns é sofrimento e provoca fuga, para outros é um imã de irresistível atração. Esse é o caso das pessoas que sofrem (ou curtem) a Volúpia de Parecer Sacrificado (VPS). Elas parecem experimentar grande prazer, quase êxtase, ao se sentirem sacrificadas e por isto interpretam tudo como martírio. São seres de alma aflita que só conseguem olhar para a existência pelo viés da dor e do pesar. Como a vida lhes pesa! Arrastam-se pela existência, curvadas pelo sofrimento auto-infligido, como se carregassem nas costas um piano de cauda. Acreditam, piamente, que sua vida seja só sacrifício e que viver é cumprir um doloroso castigo.


Nada lhes pode fazer graça: tudo é só desgraça. Se alguma coisa parece boa, logo tratam logo de arruiná-la. Estão organizando uma festa? Então começam a sofrer desde o inicio: reclamam das despesas, se queixam dos afazeres necessários. Estão num bom emprego? Ah, certamente acharão o serviço péssimo. Se conseguirem um bom trabalho, reclamarão do salário. Se o salário for bom e o serviço melhor ainda, restará a possibilidade de sofrerem com os colegas ou reclamar do imposto da renda. Sua vida parece um novelo enredado de encrencas: pouca diferença existe se estão a serviço ou de férias; sozinhos ou acompanhados. Nada muda seu existir, pois são especialistas em arranjar sofrimento.

Quase nem respiram, o ar flui por suspiros. Sem perceber, não se permitem forma alguma de felicidade. Nunca dirão estarem bem, nem para constar. Mesmo num rápido encontro de elevador conseguem narrar seu sofrer. Estão sempre de mal a pior. E assim, vão arrastando a vida, ou se arrastando pela vida, incapazes de desfrutar o lado mais leve da existência. Sempre se auto-flagelando, chicoteando a alma com sua espinhosa ladainha de queixas.

Sua existência é uma expressão dramática, que namora, mas nunca casa com o trágico. Com a ânsia de quem aguarda a chegada do grande amor, esperam a tragédia que pensam iminente. Porém nunca chega a dor de real desgraça que lhes poderia salvar de seus mil imaginários pesares. Por isso, prosseguem vida afora no interminável script de lamentações.

A Volúpia de Parecer Sacrificado (ou sacrificada) não é encontrada com freqüência, mas não se pode dizer que sejam raros casos. Certamente qualquer pessoa consegue identificar no seu horizonte próximo alguém cuja vida é costurada com queixumes. Provavelmente, já tenha até tentado ajudar: uma, duas, várias vezes, até o momento que perdeu a ilusão. Descobriu o traço mais típico da Volúpia de Parecer Sacrificado: a enorme resistência à mudança. São criaturas que não se entregam facilmente a uma ajuda. Diante de uma solução, logo criam novo problema e prosseguem a arrastar correntes, devotadas ao seu papel de mártir de uma vida de provações.

A Volúpia de Parecer Sacrificado não se ajusta às patologias descritas nos manuais psicológicos ou psiquiátricos: é um tipo de jeito de viver, de vibração existencial. Esse viver em eterno calvário pode suscitar até piada, mas deveria apenas inspirar compaixão, pois é um completo desperdício de vida.

Publicada em 27/11/2010

Decidi Ignorar

Desde que passei a ignorar as novidades que todos os dias surgem, começaram a se acumular objetos, tecnologias e até palavras que não sei para que se prestam ou o que significam. E, para piorar ou melhorar, isso está me parecendo ótimo: não preciso delas, não existem para mim e quero, desejo firmemente, que continuem a não existir. As ignoro sabendo o que estou fazendo. Ignoro porque decidir ignorar, numa decisão do tipo bem pensada. Pensei , pensei, refleti, pesei, medi e conclui: não vou tomar seu conhecimento.


Eu, que era do tipo de vanguarda tecnológica, que usava agenda eletrônica e aderi aos primeiros computadores, enfrentando o trabalho de decifrar os enigmas do ambiente Dos em inglês; eu que queria tudo saber. Pois agora que tudo ficou tão amigável, que a navegação é tão colorida, rápida e ampla, cansei. Acho que foi efeito de overdose: é coisa demais, novidade demais e minha limitada capacidade de absorção foi ultrapassada. Cheguei ao meu limite.

A tecnologia Bluetooth representou o divisor de águas: nunca a utilizei. Ela está ali no celular, no computador; mas eu nunca usei e nem falta senti. Foi o primeiro sinal. Depois vieram as redes sociais e veio o Twitter. E eu até que tentei: entrei, mas nem sei se entendi. O que captei é que é um modo instantâneo de enviar mensagens curtas. Não vi o motivo da pressa – de tudo ter que ser imediato, nem de haver sentido em enviar mensagens reduzidas, incompletas para milhões de pessoas mundo afora. Ali, dei um passo mais largo no caminho para me tornar ignorante e desde então, a cada dia ignoro mais.

Talvez pareça acomodada preguiça essa resistência à atualização, mas talvez represente uma sensata dose de sanidade; uma atitude de lucidez, que me faz perceber a necessidade de fazer escolhas.

Ou adentro nos twiters e facebooks, mergulhando no mundo virtual de um milhão de amigos, ou dou atenção ao restrito grupo dos que fazem parte de minha história e do cotidiano que me cerca. Ou venço a pilha de livros que escolhi ler, saboreando palavras e refletindo sobre suas mensagens; ou dispenso minhas preciosas horas incluindo comentários incompletos em voláteis e fragmentados diálogos virtuais. Ou uma coisa ou outra: não dá para fazer tudo – pelo menos eu não consigo. Ou vivo a vida real, vivencio a minha história; ou mergulho no infinito espaço virtual.

Decidi ficar de fora. Não sei, não quero saber, mas não tenho raiva de quem saiba. Até admiro as pessoas que conseguem circular no ambiente virtual e no real, numa mesma vida. É uma admiração sem inveja, sem desejo de se seguir seu exemplo. É do tipo de admiração que tenho por quem é capaz de praticar alpinismo ou pára-quedismo. Meu espaço aéreo é mais limitado: ultraleve e asa delta são meus limites de máxima altitude.

Prefiro buscar conhecimento na sabedoria antiga a ser amarrada por novas tecnologias. E, por fim, confesso ter certo medo do avanço da dependência tecnológica. Talvez faça parte da conspiração chinesa: em breve estarão todos dependentes, com suas vidas gravadas em instáveis chips ou na invisível rede virtual.

Não tenho mais tempo para perder: o que me resta será todo dedicado inteiramente à realidade verdadeira, mesmo que isto me custe cultivar grandes áreas de ignorância.
Publicada em 12/11/2010

O Disse Me Disse

“Disse me disse” é a corrente de maledicência, do boato, do mexerico, da difamação. Até não muito tempo atrás esse era o tipo de coisa feita à boca pequena, ao pé do ouvido, em voz baixa, espalhada pessoa a pessoa, num processo demorado e trabalhoso. Dizia-se: quem conta um conto acrescenta um ponto, pois era assim que a coisa ia crescendo. Havia o risco – ou a chance - de que as palavras se perdessem ao vento, se encontrassem no caminho uma pessoa de bem, que não se prestasse a retransmitir a mensagem, cortando o elo da corrente maldosa.


Para conseguir anonimato e fugir das responsabilidades era necessário lambuzar os dedos no complicado trabalho de recortar e colar letras de jornal, montando artesanalmente a maledicência, que ainda precisava ser entregue sorrateiramente ao destinatário.

Distantes parecem aqueles tempos em que fazer coisa errada dava tanto trabalho, medo e vergonha. Agora se tornou rápido e fácil ferir ou até destruir a moralidade de alguém: basta um toque de teclado e mensagens anônimas são transmitidas a todos os quadrantes. A rapidez da transmissão de informação ampliou muito o poder destrutivo das palavras. É só soltar na rede da internet uma notícia e ela vai sendo reproduzida automaticamente nas listas de contato. A coisa é muito fácil de fazer: demanda quase nenhum trabalho ou esforço, pode ser mal acabada, produzida em série e distribuída instantaneamente. E se quiser tornar a coisa mais real e convincente, é possível usar imagens modificadas digitalmente. Uma imagem vale mais do que mil palavras – continuam dizendo os ingênuos, que não sabem o quanto os olhos podem iludir o coração e enganar a mente.

Com a internet, a capacidade destrutiva dos fuxicos extrapolou qualquer expectativa: tudo se inventa, comenta, recebe e retransmite sem necessidade de confirmação ou autoria. Fofoca - que era coisa feia, repreensível - se tornou quase natural. A internet é a rede do vale tudo, o território do “disse me disse” capaz de alterar destinos e destruir biografias. Acredite quem quiser e questione quem tiver juízo.

Ninguém precisa ser famoso para ser alvo: qualquer um pode ser atingido por comentários e maledicências, agressões moralmente indefensáveis, golpes baixos que atinjam mortalmente sua honra e dignidade, mas naturalmente são as pessoas com projeção pública os alvos mais fáceis.

É preciso ter muita lucidez, bom senso e vigilância para não cair nos contos entregues em lote diariamente na caixa de correio virtual. Pode ser mais prudente descartar sem ler mensagens que trazem informações maledicentes, afinal melhor correr o risco de perder algum trigo do que cometer o engano de gastar precioso tempo semeando joio.
Publicada em 30/10/2010

De Improviso e Com Prorrogação

Somos um povo talhado pelo improviso, pelas coisas de última hora, pelas promessas de curto prazo com cláusulas de previsíveis prorrogações. Do trabalho acadêmico, à declaração de imposto de renda e ao jogo de futebol: adoramos a última hora e contamos como certo um tempo de acréscimo ao que fora estabelecido. Essas são nossas marcas, nosso jeito coletivo de ser. Um modo meio malandro, despojado da seriedade dos compromissos. Para quase tudo damos um jeito, algum jeito. O jeitinho está em nosso DNA. Isso pode ser um talento ou um defeito, dependendo do lugar, da hora em que se coloque. Com muita jinga, temos grande habilidade para contornar situações, inventar atalhos, abreviar trabalhos e fugir dos grandes esforços. Somado a isto, temos um traço empreendedor: somos mercadores natos. Todas estas características são um orgulhoso patrimônio nacional, nosso jeito brasileiro de tudo fazer de improviso e com prorrogação.


Talvez por isto, acompanhar o trabalho de resgate dos mineiros chilenos tenha sido como viajar a um estranho país estrangeiro: deu para perceber bem a diferença cultural entre o jeito deles e o nosso. Somos vizinhos próximos, mas de mundos distantes. Por lá, planejaram várias estratégias e colocaram simultaneamente em prática três planos de trabalho. Não contentes com tamanha prudência, na hora do resgate, se puseram a testar várias vezes o procedimento. Ah, se fosse com a gente... Planejar não é muito nossa praia e menos ainda fazer ensaios prévios. Esboçaríamos o plano A, só se não funcionasse, então pensaríamos no B.

O que dizer de suas cautelosas previsões? Cumpriram sua missão na metade do tempo previsto. Eles têm uma lógica, um modo de pensar bem diferente. Quando falam em prazo, estão estabelecendo um tempo máximo, diante do qual se comprometem como se estivessem atrasados. Aqui é exatamente o contrário: quando se faz uma previsão, este tempo é pensado como o mínimo, basta ver o andamento da mais corriqueira das obras públicas. Ninguém se constrange ou envergonha de não cumprir prazo: estamos acostumados com isto. Sem falar na mania nacional de dizer que uma ação futura já foi começada, está em andamento – ainda que nenhum ato tenha sido praticado. Preferimos nos enganar com doçura das ilusões a encarar a dureza dos fatos.

Outra diferença notória foi a falta de merchandising: total ausência de patrocinadores. Se fosse por nossas bandas não perderíamos a oportunidade: haveria grandes balões publicitários, empresas diversas distribuiriam “brindes” e não faltariam bonés coloridos com logomarcas e farta distribuição de produtos de apoio. Sem falar nas barraquinhas modelo feira livre, com venda de churrasquinho, pipoca e lembrancinhas com fotos dos mineiros e do acampamento. Famosos apresentadores de TV comandariam as transmissões e câmeras exclusivas da Rede Globo estariam instaladas dentro da mina e em todo o trajeto do resgate; além de promoverem campanha para angariar fundos para o resgate e para as famílias dos mineiros. Faltaria espaço para os políticos de várias jurisdições se acotovelarem diante dos holofotes: de vereadores ao presidente da república – todo mundo ia querer estar presente nos abraços e ter seus minutos de discurso.

Realmente, os alienígenas chilenos são muito esquisitos. Estranho é o Chile, muito estranho. Ou será que estranhos somos nós?
Publicada em 16/10/2010

O Povo, a Virtude e o Voto

“Povo que não te virtude, acaba por ser escravo”*

Saber ler e escrever são as exigências legais mínimas para ser candidato a cargos públicos eletivos, mas este critério está longe de ser condição suficiente para desempenhar atribuições de importância maior como as funções de legislar, gerenciar o bem coletivo, tomar decisões complexas. É preciso muito mais.

Em termos cognitivos, as funções públicas eletivas exigem um nível intelectual suficiente para entender não somente as leis, mas os complexos meandros das macro-negociações. Para tomar decisões corretas e sensatas há que se ter condição mental para discernir, para avaliar, para refletir, raciocinar. Esta é uma parte da questão, mas talvez nem seja a mais grave já que os grandes desmandos têm sido praticados por pessoas que denotam boa capacidade intelectual . Por incrível que a muitos pareça, mesmo uma pessoa com limitação intelectual é capaz de entender a diferença entre o bem e o mal, entre o honesto e o desonesto, entre o justo e o injusto. São noções morais que ocupam uma área cerebral diferente das noções cognitivas do conhecimento formal (escolar, acadêmico).

Embora seja plausível escolher os mais capazes, mais inteligentes e mais cultos – já que desempenharão funções de alta relevância, o que mais se precisa (e se tem falta) são de candidatos éticos. Pessoas que tenham índole resistente às tentações do poder; que por seu passado ou por seus traços demonstrem a capacidade de negociar, sem cair em conchavos; lidar com poder, sem escorregar na ganância; manter o espírito e o interesse público, acima de seus interesses pessoais e até mesmo dos restritos interesses partidários. Pessoas com autonomia de pensar e agir: capazes de se manterem fiéis aos seus compromissos, mesmo quando sob pressão. É por ai que a escolha se torna cada vez mais difícil.

Pode parecer fora da realidade, mas existem – ainda existem – os bem intencionados, os honestos, os humildes, os autênticos, embora seja difícil achá-los no baile de fantasia que se tornou o período eleitoral. Diante de tanta propaganda e dos efeitos maquiadores da publicidade, ficou complicada a tarefa de separar o joio do trigo. Aliás, exatamente como no cultivo, os terrenos arados pelo poder são mais férteis ao joio do que ao trigo. E, como toda erva daninha, o joio não exige cuidado para ser semeado, cresce rápido e é muito resistente. Ai está bem figurado o cenário político atual: os campos estão minados de joio e os grãos de trigo sobreviventes precisam ser protegidos para que não se contaminem e envenenem. É preciso ter um paciente e cuidadoso trabalho para separar o joio dos falsos discursos do valioso trigo das boas intenções e da índole honesta.

Já que temos o poder de escolher, porque optar pelos piores? Para fazer graça? Se assim agirmos estaremos assinando nossa desgraça e confirmando nosso constante papel de bobos da abusada corte que desde os mais remotos tempos do império continua orbitando nos palácios governamentais. Na diversificada lista de candidatos há os que inspiram esperança de possuírem maiores virtudes e são esses que merecem a aposta de nosso voto. Que os eleitos deixem de refletir mazelas nacionais e passem a retratar as virtudes e glórias de nosso povo.

*Hino Rio-grandense, letra de Francisco Pinto da Fontoura

Publicada
em 02/10/2010

Depois dos 50

Após os cinqüenta anos, fica fácil perceber a mudança no curso da vida, que em muito se assemelha ao descer de uma montanha: a subida é árdua, a permanência é breve e a descida é representa o maior e mais difícil obstáculo a ser vencido. Ao chegar ao topo não se terá vencido a metade do caminho, pois o percurso seguinte será muito mais exigente e perigoso. Exatamente como na vida.


A passagem dos 50 anos é talvez a mais radical mudança, um marco, o ponto em que começamos a irremediável descida. Não há mais jeito: a reviravolta é geral. Passamos a enfrentar novas provas. Até ali buscáramos números altos nas notas do colégio, no vestibular, na faculdade, no contracheque, nos extratos de banco. Agora passamos a perseguir as notas baixas. O tormento são os exames de laboratório, com a exigência de cada vez mais diminuir suas taxas. Quem consegue as menores notas e dribla os avanços de colesterol, triglicerídeos, glicemia e pressão arterial é um vitorioso, pois vai percebendo que o grosso da tropa se tornou cliente fiel de médicos e farmácias.

A mais difícil das mudanças é que passamos a acompanhar o obituário do jornal, antes de ler qualquer outra matéria, pois ali encontramos com freqüência nossos amigos e conhecidos. A cada notícia de falecimento, um abalo, um sentimento de perda, uma sacudida existencial. A vida parece fluir mais rapidamente e não há mais tempo para desperdiçar com bobagens. É prudente e sábio que se mude o senso e altere a importância de muitas coisas.

Mas, o que seriam “bobagens”? Depende do conceito de cada um. Percebendo que estamos rumando montanha abaixo, não parece sensato carregar peso extra ou bagagens desnecessárias. É prudente largar as ilusões do trecho de subida, que nos faziam sonhar chegar às nuvens e permanecer eternamente jovens: melhor tratar de cuidar da saúde, deixando secundárias as questões narcísicas, meramente estéticas. Que se vão os luxos e os anéis, mas que se preservem os dedos. A cor é outra, a vida é outra. Se já se viajou o bastante ou não se conheceu do mundo o suficiente, não fará mais tanta diferença. Se o topo da carreira foi alcançado ou nunca se conquistou sequer um cargo de subchefia, isto deixa de abalar nossa felicidade. Tudo passa a ser tão diferente, quando se olha de outro ângulo.

É possível após o 50 anos mudar de amor, de profissão, de cidade, mas a maior revolução será outra. O despojamento é a maior fortuna, o ouro que se pode alcançar com a maturidade. Descer do salto alto ou do sapato de bico fino, largar ambições e vaidades resulta em muito melhor proveito do que insistir na busca de efêmeros sucessos. Descartar-se de tudo que é trivial, abreviar as necessidades e valorizar o que realmente importa: a essência das coisas, das situações e, principalmente, das pessoas. Essa mudança de ótica faz parte da colheita sábia de quem aprende com as mudanças.

Dirão alguns: mas que exagero! Hoje uma pessoa de 50 anos pode manter a imagem e vitalidade de bem menos idade e ultrapassar os 90 anos com lucidez e saúde. E eu lhes respondo: pode parecer mais jovem, mas adentrou na fase de prorrogação da existência que é de mais incerto prazo.

Publicado Caderno Mulher
Jornal Agora
18/09/2010

700 metros e Muitas Reflexões

Para baixo todo santo ajuda. Nem sempre. A demorada operação de resgate dos mineiros presos no Chile, acompanhada pelos holofotes do mundo, demonstra o quanto ocupamos uma terra insondável e nos coloca – ou deveria colocar - em nosso devido lugar. Somos pequenos, frágeis e impotentes diante da Natureza e de suas forças.

A vaidade humana constrói prédios com mais de 700 metros de altura, pretendendo riscar o céu e impor seu domínio. As ilusões de poder continuam fascinando a humanidade. O ser humano é capaz de ir a Lua, viajar a velocidade do som (1224 km por hora), mas só consegue avançar poucos metros por dia na perfuração do solo. Longos meses serão necessários para que as máquinas vençam apenas 700 metros, sete quarteirões – menos de um quilômetro do chão que está sob seus pés.

Loucamente, fabricam-se bombas atômicas para exterminar num segundo uma cidade inteira, armazenam-se arsenal capaz de explodir o planeta inteiro, mas não conseguiram produzir a máquina eficiente para perfurar o solo profundo rapidamente. A Terra é insondável, sólida, densa e internamente chega a ser tão quente quanto o Sol. Explorada, bombardeada, não se vinga e nem dá troco: não é este o espírito da mãe natureza. Ela apenas reage, recompondo sua força e forma. Nunca, jamais, é sorrateira: como mãe amorosa, quando desrespeitada sempre dá muitos sinais de alerta, antes de drástica reação.

O episódio chileno possibilita muitas reflexões. Pensar sobre a dimensão da Natureza e o quanto precisamos conhecê-la e respeitá-la. Como os rios, oceanos e montanhas, a mina chilena deu avisos de que iria iniciar um processo de se recompor. Mas, como costuma acontecer, a mãe-natureza não foi ouvida: o desrespeito arrogante persistiu até o desastre se concretizar.

Há um lado positivo para redimir um pouco nossos tão falhos comportamentos humanos. O pequeno grupo de mineiros retido demonstra qualidades ímpares: se mostram unidos, organizados, resistentes e capazes de lidar com o infortúnio com serenidade. Dão um exemplo do quanto a dureza do trabalho rude pode aprimorar o espírito humano. O serviço penoso que os mantém fisicamente sujos parece ter aprimorado virtudes: solidariedade, capacidade de superar frustrações, resistência a privações. A pele engrossada e as unhas sujas brutalizaram os corpos, mas em muito podem ter ajudado a aprimorar suas almas.

A humanidade evolui mais fazendo forçados trabalhos do que aboletada em funções abusivamente remuneradas. É mais fácil evoluir na privação do que na abastança. O efeito provocado pelos excessos de conforto e luxo vem sendo demonstrados em diários maus exemplos dos seguimentos mais poderosos da sociedade. Paradoxos que merecem reflexão e mudança de paradigmas.

Publicado Caderno Mulher
Jornal Agora
04/09/2010