sábado, 21 de agosto de 2010

Quintal do Vizinho

Outra vez nos chega, de presente, container de lixo vindo do outro continente. Países que nos consideram de categoria inferior, que impõem barreiras alfandegárias severas a nossa gente, remetem seu lixo sorrateira e criminosamente. Comportam-se como aqueles vizinhos selvagens, que jogam dejetos para o quintal do lado imaginando que moscas, mosquitos e ratos respeitarão o muro de suas casas. O caso acontecido nesta semana, reprise de filme visto recentemente, resulta do encontro de inescrupulosos de vários países. Espertamente, fizeram uma negociação na qual todos venderam: uns venderam o lixo, outros venderam o transporte e outros venderam o lugar em que vivem e todos venderam sua almas por um negócio realmente muito sujo. Por ganância, para ter lucro fácil e rápido, intoxicaram um pouco mais nosso já sofrido meio ambiente. Mais grave do que a reincidência do achado é a desconfiança de que o descarte internacional venha acontecendo há largo tempo e só raramente seja detectado, tornando o negócio menos arriscado e ainda mais lucrativo.

Pensam que há vários planetas? Que mandando para o outro lado do oceano, o lixo desaparecerá e o problema ficará resolvido? O que precisa acontecer para que se desfaçam as ilusões nacionalistas e que o mundo todo assuma o compromisso de preservação ambiental? Quanta incapacidade de ver a Terra como a casa de todos. Os sinais claros e dramáticos da mudança climática em andamento parecem não ser suficientes para despertar a consciência planetária.

Por todos os cantos pulsam transformações agudas: maremotos, enchentes, grandes incêndios, temperaturas chegando a extremos de frio e de calor em vários países. Oceanos bombardeados por resíduos vão levando a extinção da flora e fauna ali existentes. Migrações de populações por questões ambientais vão se tornando freqüentes. Tudo filmado, fotografado, documentado para os olhos que queiram ver. Os excessos do consumo, que continuam sendo cega e irresponsavelmente estimulados, associados à total ausência de comprometimento com ações responsáveis de cuidado ao meio ambiente antecipam e agravam tragédias. O lixo mais do que compõe o cenário, é questão vital, envolve a saúde das pessoas e a sobrevivência do planeta. Deveria ser pauta preferencial dos agentes públicos, jamais poderia fazer parte de negociações meramente comerciais ou de financiamentos políticos partidários. É sério demais para ser trocado por patrocínio, tornado refém de interesses especulativos e financeiros.

Um impressionante vídeo da Discovery demonstra a estrutura do planeta e compara: se a Terra fosse uma laranja, nós ocuparíamos apenas a casca. Abaixo da sutil faixa que ocupamos, o resto são camadas insondáveis, tal sua densidade e temperatura. Essa casquinha de laranja é todo o ecossistema que nos permite viver e que está sendo duramente castigado. Por isso, que ninguém pretenda sacudir os ombros ou lavar suas mãos. O problema é nosso e temos que encará-lo: que se investigue profundamente o tráfico de lixo e que se puna de modo exemplar, tornando-o um péssimo negócio.
Publicada Caderno Mulher
21/08/2010

domingo, 8 de agosto de 2010

O Sumiço dos Ouvintes


Com nostálgica saudade, recordo os tempos do rádio, quando a TV ainda não existia e o universo do imaginário era povoado por vozes e sons. Eu ouvia o Repórter Esso, cuja voz se sobressaia aos chiados do rádio de válvulas. Era pequena demais para entender o significado das noticias, mas me encantava com o aparelho – em madeira caprichosamente arqueada e com uma voz misteriosa saindo por entre a tela tramada de tecido e filetes metálicos. O mesmo sentimento de doce nostalgia me envolve quando recordo a eletrola grande da sala de casa e os momentos em que, muito miúda, saboreava escutar as histórias infantis dos pequenos discos coloridos de vinil. O som enriquecido de ruídos de fundo me levavam a uma viagem imaginária encantadora. Aquela era uma época em que se dava ao cérebro o trabalho de imaginar, de criar as imagens e também o tempo necessário para refletir sobre as palavras e seus significados. Éramos todos – crianças, jovens, adultos e idosos – ouvintes treinados: o entretenimento mais prazeroso nos entrava pelos ouvidos e fazia desta uma via importante de nossa sensibilidade. E as pessoas conversavam, proseavam muito.

Com o advento da televisão, rompe-se a primazia do som e entramos na era da imagem, com efeitos muito diferentes e, em alguns aspectos, bastante adversos. Enquanto para ouvir precisamos de atenção, sem a qual o som nem é captado, ver televisão exige apenas a presença de nossos corpos: diante do aparelho nos tornamos pateticamente hipnotizados por imagens e mensagens subliminares de todos os gêneros. Não precisamos fazer nada, nem pensar. O aparelho inaugurou a era da distração, que progressivamente invadiu todos os momentos da vida com cada vez maior número de aparatos de imagem. Em qualquer situação, nossa atenção é seqüestrada por estímulos visuais, capturada de mil modos e grande é o esforço necessário para resistir a tantos apelos.

De ouvintes atentos que em maioria éramos, nos transformamos em falantes distraídos. Esse é o mundo dos falantes – inclusive as máquinas. Somos “atendidos” por gravações e dialogamos com terminais eletrônicos e falamos com códigos: disque 1 para isto, 2 para aquilo, 3 para aquilo outro; conversamos com números. Os diálogos estão se tornando monólogos coletivos nos quais todos falam, falam, falam, sem que alguém se coloque na condição de ouvinte. Está cada vez mais difícil ouvir e ser ouvido.

Se nas situações pacíficas e harmoniosas, a falta de escuta é constante, nas cenas de conflito a possibilidade de alcançar entendimento por via do diálogo beira o impossível: ninguém quer ouvir a parte contrária. O importante é preservar a trincheira de seu ponto de vista. A comunicação é feita no modelo bombardeio. Cada um usa a munição que tem em mãos e, diante da bandeira branca da parte contrária, aproveita-se a brecha para recarregar as armas e achar um ponto vulnerável do interlocutor, tornado adversário.

Estão sumindo os ouvintes, acabaremos todos falando com as paredes.

Crônica Publicada no Jornal Agora, Caderno Mulher
dia 07/08/2010