sexta-feira, 14 de maio de 2010

O CULTIVO DA TRANQUILIDADE

             Não faz nenhuma diferença o que nós fazemos;
 o que importa é como nós fazemos qualquer coisa.
E como sempre há algo sendo feito,
 nós sempre temos a oportunidade de fazê-lo corretamente.
 Robert Crosbie


      O tempo parece-nos na maioria das vezes curto o suficiente para justificar a agonia de fazer tudo rápido, de um jeito qualquer, dispensando caprichos e reflexões que exigiriam mais alguns minutos. Escoando no atropelo, vamos alinhavando uma vida sem debruns e acabamentos. Deixa-se de lado o que parece à primeira vista ser dispensável, utilizando um critério de escolha que prioriza rapidez e sacrifica todos os demais quesitos. E sobe a pressão arterial aos solavancos de um viver turbinado de afazeres.

     Fazemos as coisas sem nelas pensar, sem que nossa mente se permita sedimentar decisões, questionar sentidos e significados. Muito do estresse cotidiano e de suas conseqüências pessoais e coletivas é fruto desse tocar a vida ao ritmo de urgências fabricadas. A agitação física e mental estabelece um turbilhão de pensamentos simultâneos que turvam a atenção e sobrecarregam nosso sistema de raciocínio. Cansamo-nos mais, atrapalhamo-nos desejando abarcar vários assuntos num só ato. E pior, prosseguimos deixando coisas caírem pelo apressado caminho de nossa existência.

     Entretanto, por mais que sejam atravessados momentos ou situações agitadas, a mente tranqüila sempre será mais capaz de buscar e encontrar as melhores alternativas, abreviando esforços e frustrações. Nossas ocupações podem ser adequadamente cumpridas na cadência dos dias, sem a necessidade de nos preocuparmos com o que possa eventualmente deixar de ser feito. O tempo mostrará se o que foi deixado para trás fará ou não falta. Na maioria absoluta das vezes, as pequenas falhas cotidianas não se transformarão em perdas irreparáveis.

     Podemos fazer muitas coisas se nos permitirmos dar um passo de cada vez, um após o outro, sem nos desviarmos de metas propostas e procurando sempre a melhor forma possível. Com o pensamento liberto das pressões desnecessárias, conseguimos olhar a vida saboreando suas cores, seus sabores e principalmente estabelecendo importância adequada a cada momento.

     A tranqüilidade é o fruto maduro de uma atitude de viver caprichosamente germinada nos pequenos atos e nas situações banais do dia a dia. Tranqüilidade se cultiva, com zelo e cuidado persistentes; não se compra pronta e nem se engole em capsulas. Quando se alcança tal equilíbrio, se descobre uma serenidade profunda e duradoura, jamais conquistada com a química dos remédios.

     Retornando às palavras iniciais de Crosbie, o que importa na vida é o modo como fazemos as coisas, independente de serem simples ou complexas; rotineiras ou não. O fundamental é caprichar, fazer bem feito e, como a pressa sempre foi inimiga da perfeição, manter sempre a calma e a preservar a tranqüilidade. 
                                                             Publicado Jornal Agora 15maio2010


domingo, 9 de maio de 2010

Reflexões sobre o rascunho publicado

     A minha crônica anterior foi publicada na versão de rascunho. Se tivesse o trabalho sido produzido em papel seria quase impossível confundir coisa com outra: riscos e flechas alertariam de que aquele texto não estava “limpo” para ser lido por outros olhos que não os meus. Como sempre faço, só enviei a crônica quando dei por concluído o trabalho, depois de lidas, relidas, cortes e recortes. Costumo ir tecendo idéias, alinhavando aqui e acolá e depois faço a redução necessária para ajustar o texto ao espaço da coluna. Entretanto, nestes fulminantes tempos virtuais, basta um toque de dedo para se cometer um equívoco e, no caso em questão, multiplicar seus efeitos por milhares de exemplares da edição do jornal. Acabei enviando à redação o arquivo que fora rascunho. Não há no texto palavras ou expressões a serem corrigidas. Só por vaidoso preciosismo republicaria o artigo, em sua versão correta.

     O erro, portanto, foi meu e não transfiro essa responsabilidade. Já basta aos leitores terem que suportar as constantes notas de “não fui eu que fiz”, “não era do meu conhecimento” ou os “a bem da verdade”. Nunca fiz e não vai ser com cabelos prateados que passarei a fazer parte da grande turma dos que se esquivam de responsabilidades, mas não os condeno. Consigo entender as causas de tantos maus exemplos e foi este o assunto que brotou de minhas reflexões. Vivemos os tempos do “recall”, termo que nos é imposto sem tradução por variadas empresas, encobrindo erros graves de fabricação de seus produtos. Como a expressão é para inglês ler, engolimos os chamados para consertos como se fossem gentis e cuidadosos agrados dos fabricantes. E seguem os autores anônimos construindo coisas que estragam, deixando serviços mal feitos ou pela metade, fornecendo dinheiro que rechear as roupas de políticos.

     Por outro lado ou talvez por inspiração em tantos modelos negativos, dotados de auto-estima e autoconfiança exacerbadas, é fácil observar que as pessoas estão ficando cada vez mais auto-indulgentes. Desculpam a si mesmas e não se constrangem ou acham necessário explicar suas faltas. Paradoxalmente, parecem cada vez mais exigentes e intolerantes com falhas alheias. A mesma pessoa que estaciona em fila dupla ou na vaga de portadores de deficiência, por exemplo, se exaspera com a mínima demora num sinal de trânsito, protestando com nervosas e grosseiras buzinadas.

     Mas todos desejamos um mundo melhor, menos violento, mais amoroso e pacífico, não é mesmo? A questão dos erros, nossos e alheios, tem bastante a ver com harmonia e entendimento. Medidas bem simples podem ser tomadas individualmente para melhorar a situação crítica que hoje sofremos. Pois para finalizar trago uma sugestão colhida em sabedoria muito antiga, que diz mais ou menos assim: tenha em mente que a perfeição lhe é impossível, mas exija sempre o máximo de si mesmo, buscando fazer o melhor que estiver ao alcance de seu esforço; porém desenvolva a tolerância e compreensão em relação a erros e falhas alheias. Recomendação aparentemente curta, cuja prática exige persistência, mas tem efeitos positivamente revolucionários para quem a adota.
                                             (publicada Jornal Agora - março 2010)

ADMIRAVEL MUNDO NOVO

     Os arroubos da arrogância juvenil, outrora reprimidos com severidade, são atualmente estimulados. Esta é uma cultura que mal educa suas crianças e jovens, aos quais tudo concede, releva e perdoa. Enquanto o mundo vai sofrendo problemas cada vez mais complexos e o horizonte vai se tornando mais sombrio e ameaçador, continua-se a embalar o berço para que o ninho não se esvazie e siga a juventude com ilusões eternas, enquanto durem. Num contexto desses, é até natural que assuntos do âmbito da família ou da escola tenham que ser decididos por legisladores. Só com lei se imagina restituir a ordem no universo caótico que foi estabelecido. Amarga ilusão... As coisas não chegaram aonde estão por obra do acaso, por meras casualidades. Esses moços, pobres moços, que acham que defendem sua liberdade ao pretenderem usar celular e internet 24 horas por dia, desfrutar todos os diretos da vida adulta sem as consequentes responsabilidades, não sabem o quanto estão indo para o inferno à procura de luz, como diria o sábio Lupicínio Rodrigues.

        Os recentes debates em torno do porte e utilização de celular em sala de aula, faz pensar que poderia ser motivo de semelhante discussão o uso do aparelho em salas de concerto, cinemas e palestras. Afinal, foi muito bem implantada na mente coletiva a idéia de que há uma indispensável necessidade de estar sempre conectado, pronto a receber e transmitir mensagens, independente da importância ou urgente pertinência do assunto. Vivemos hoje numa sociedade controlada pela febre do consumo, sedada por programas televisivos alienantes. Faz-se tudo, menos pensar, refletir, decidir, afinal uma das primeiras vítimas sacrificadas pelo novo sistema foi a Filosofia. Só com o êxodo do raciocínio reflexivo e do hábito de leitura pode ser o mundo dominado pelas ilusões hipnóticas da propaganda e da moda.

        Estamos seguindo o roteiro do Admirável Mundo Novo, no qual o genial Aldous Huxley anteviu nosso presente nos distantes anos de 1930. Logicamente a roupagem era diferente, como seria mesmo se o autor tivesse atualizado seu livro dez anos depois de escrevê-lo, como ele reconheceu em uma edição apenas dez anos posterior, mas ele preferiu respeitar a obra original, deixando-a intacta a remendos. O Mundo Novo de Huxley era dividido rigidamente em castas, convenientemente identificadas por cores, cumprindo um destino definido antes da concepção – feita sob encomenda em tubos de ensaio, sem a participação das perturbações de paixões ou romances. Tudo ficava sob rígido controle do estado. Não foi preciso tanto trabalho para estabelecer um mundo “dominado”. O senhor deste Admirável Mundo Novo não é um estado mundial mas o tirano senhor mercado – que comanda todas as coisas, estabelecendo a ordem das necessidades. As famílias continuam existindo, mas se esvaziaram de suas funções, perderam o poder de sua importância. Seus filhos estão entregues aos representantes do mercado, às macaquices da moda e seus modismos. Já antes de nascerem as crianças são preparadas para o mundo do consumo, pois acima e antes de serem humanos, são potenciais consumidores.

      O mundo da ilusão lúdica mantém a hipnose coletiva de que a vida é feita para se comprar, tudo está ao alcance do dinheiro que se disponha e esta é a única forma de ser feliz. Precisamos precisar, somos a medida do que desejamos. Pouco importa o que somos, mas o que temos ou no mínimo o que aparentamos ter. O “Admirável” Mundo Novo está ai, sendo sacudido por transformações geológicas. É tempo de despertar, de voltar a separar o que importa na vida, do que é secundário; de reaprender a pensar. Hora de acordar: talvez seja este o recado da mãe Terra.
                                            (publicada Jornal Agora - março 2010)

Da Psicologia para o Oceano da Teosofia

“Quando a gente tem uma meta clara e elevada, e ela não é imediata nem estreita, não nos abalamos muito com coisas pequenas de curto prazo, sejam elas 'agradáveis' ou 'desagradáveis'. “ Carlos Cardoso Aveline


Nos 33 anos de formação e enlace com a profissão, estudei várias escolas teóricas, cumpri um longo percurso de descobertas, muita gratificação e alguns punhados de frustrações, que hoje não fazem conta. Quatro meses se passaram desde que encerrei as atividades da clinica de psicologia. Não fiz uma despedida formal e acabei dispensando a comunicação pública do fato. Contra todas as opiniões contrárias, retirei de mim o manto da Psicologia, desvinculando-me de todas as referências e teorias psicológicas, retomando a plena liberdade de meu pensamento.

Foi uma decisão pensada, refletida com profundidade e comunicada a tempo para as pessoas que estavam sendo por mim profissionalmente assistidas. Durante os últimos meses de trabalho me surpreendi com o espanto que minha atitude provocava em muita gente. Parecia algo inacreditável, um completo absurdo que eu decidisse deixar a profissão. Meus pacientes de então percebiam que eu continuava com agenda lotada, indo “muito bem e muito obrigada” com meu trabalho. Talvez por isto o espanto tenha sido ainda maior. Estaria eu doente ou iria rumar para distantes paragens? A maioria me questionou o que eu pretendia fazer, já que a idéia da aposentadoria lhes era chocante.

Eu sabia o que estava fazendo: encerrava uma etapa importante de minha vida, que fora muito gratificante, mas que intuía ser momento de concluir. Tinha clareza de que desejava me libertar dos ditames da profissão, mas não a clarividência do rumo a tomar a partir de então, por isto, diante dos questionamentos, brinquei com hipóteses: disse que aproveitaria o tempo para andar de bicicleta ou simplesmente nada faria, permitindo-me o ócio dos desocupados.

Despojei-me dos gastos sapatos da longa caminhada, doei meus livros e tudo o mais da antiga profissão, com a alma leve e a consciência tranqüila do dever cumprido. Essa voluntária renúncia me permitiu desfrutar a valiosa liberdade de percorrer outros espaços, de beber conhecimentos de outras fontes. Passado pouco tempo, foram surgindo claros os sinais que anunciavam uma nova vida.

Aos sair das trilhas da Psicologia fui viajar sim, mas para o universo distante de novas leituras, foi quando se descortinou diante de mim o Oceano da Teosofia, a milenar Psicologia Asiática, muito anterior a Freud, seus discípulos e seus opositores. Em verdade, foi um reencontro, pois eu já lera pequenos ensaios do assunto quando era muito jovem, antes de ingressar nos estudos da faculdade de Psicologia. A Teosofia oferece a fonte do conhecimento ancestral, transcendente, remetendo para leituras muito antigas, eternas, sempre atuais em seus significados. Mas não se resume às palavras, pois é, acima de tudo e de qualquer palavra, uma atitude vital de altruísmo, de despojamento dos pensamentos ego centrados e de permanente compromisso ético e fraterno. Pode parecer que seja um mundo de sacrifício, mas é o caminho para a duradoura felicidade.
                                                (publicada Jornal Agora 01maio2010)