segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Natal dos Figurantes


     A maratona de compras, o malabarismo das contas, os comes e bebes, qual o sentido de tudo isto? Por vezes, aé se perde de vista o significado da celebração. No meio de tanto o que fazer, acaba o essencial ficando oculto.
     O significado é algo da ordem da atribuição e não da coisa em si mesma - independente do que seja e do valor intríseco que possua.
     É fácil escorregar nos modismos, ceder à tortura insistente dos apelos da mídia. Mas o Natal é algo mais transcendente e não há forma mais gratificante de vivê-lo do que numa partilha generosa e solidária. Solidariedade está em alta, virou moda, se fala e se faz muita coisa m nome desta palavra comprida. Por telefone, pela internet, na saída do supermercado, muitas são as vias para doar alguma coisa aos que mais precisam. Solidariedade on-line, 24 horas - bem cosmopolita. A culpa social fica aliviada em alguns minutos, a custo acessível.  Tudo isso é muito bom, essas redes de solidariedade são indispensáveis, mas precisamos avançar mais. Precisamos ser também capazes de entregar em mãos nossa cota social.
     Muitas pessoas circulam nossa vida, sem nunca adentrar à sala, sentar à mesa, receber um bom dia. Gente sem nome nem rosto, sem história, figurantes em nossas vidas. Alguns são figurantes tão próximos que chegam a participar de cenas importantes de nosso contidiano, mas sempre na posição coadjuvante dos personagens secundários. Prestam serviços subalternos - via de regra tão pesados quanto mal pagos. Participam, falam, mas não opinam. Gente maltratada pela vida, acostumada a fazer seu trabalho penoso sem receber o obséquio de mínimas atenções, sem ser olhada no rosto, sem ser chamada pelo nome, sem por favor e nem muito obrigado.  Os serviçais fardados e os desempregados, que guardam carros, catam o lixo, varrem ruas, faxinam casas, fazem mil pequenas indispensáveis tarefas.  Exército de valiosos figurantes. Sempre próximos, sempre invisíveis. Dispensar-lhes atenção nestas datas é o mínimo que se pode fazer, mas não é comum que se faça.
     Não sou afeita  a receitas de vida, mas sugiro que se experimente neste Natal doar pessoalmente alguma atenção direta para um desses personagens do esquecimento. Experimente doar pessoalmente algo minimamente generoso, que faça diferença para quem recebe e descubra quanto a felicidade pode custar pouco. Aquele dinheiro que crianças tiranas recusam para o lanche, será motivo de um agradecimento emocionado. Gente que vive de moedas não está acostumada com cortesia, se comove diante de um minimo trocado que, para sua vida, pode fazer uma imensa diferença. A passagem de ônibus de volta para a casa (R$1,50) evitará a caminhada de horas; alguns pães a mais (R$ 2,00), o almoço para toda a familia por apenas 5 reais. Como tão pouco dinheiro pode fazer tanta diferença? Pode, claro que pode. O Natal dos Figurantes é absurdamente barato, é a prova dos nove da desigualdade social. Essa atitude natalina pode ser revolucionária: pessoalmente  terapêutica e socialmente transformadora.
     As luzes de Natal podem perdurar se forem acessas com o brilho da partilha, da tolerância, da compreensão, do amor e da solidariedade. Feliz Natal a todos.
Publicada em 18/12/2004
Jornal Agora -Caderno Mulher

Tamagochi



     Alguém tem ainda um tamagochi? Ninguém? Nem em casa, nem em lugar algum, possivelmente, haja um tamagochi "vivo" daquela geração original, disputada a preço de ouro. Houve um extermínio silencioso dos tamagochis. Ao contrário do alvoroço que provocaram em sua chegada,sumiram sem gerar protestos,sem luto ou culpa.
     Para quem já esqueceu - ou descartou da memória - estou falando daquele chaveirinho tocante, que nos foiimpingido pela inteligência mercantilista japonesa com a proposta de servir  para cultivar o sentimento humano de cuidar de alguém. É bom lembrar que, na época em que chegaram, houve uma febre, uma verdadeira epidemia dos "bichinhos de estimação virtuais". Discussões acaloradas, inclusive em meios acadêmicos e cientificos, trataram da importância dos tamagochi. O assunto parecia muito pertinente: devia-se permitir ou proibir que as crianças levassem seus tamagochi para a escola? O tamagochi auxiliaria crianças a desenvolverem habilidades afetivas e sociais através daquela forma de "cuidado"? Alguns profissionais, espertos, chegaram a considerar que o chaveirinho pudesse representar o Outro, indispensável a constituição psíquica. Parecia até cômodo: tamagochis não faziam xixi, não roíam os móveis, não latiam, não comiam ração, nem precisavam de banho e tosa. Tudo era virtual: água que não molhava, passeios feitos a um simples toque de botão...  Aparentemente inofensivos, os bichinhos virtuais logo mostraram sua tirania: exigiam pronto atendimento a cada chamado e só quem teve um sabe o quanto eram exasperantes seus chamados.
     Houve os que argumentaram que o chaveirinho tocante, entre suas fantásticas utilidades, ajudaria na elaboração da perda, da morte, do luto. O tamagochi era muito "sensível", necessitava de atenção permanente, se não fosse cuidado convenientemente "morria". Morria, como morre tudo o que é movido à bateria e pode ressuscitar tantas vezes quantas a gente troque a bateria. Mas a coisa era tomada como real no seu significado simbólico e no apagar do chaveiro havia um colapso trágico no entorno familiar. Só faltou ser feito o enterro do tamagochi - será que faltou? Muita gente séria, adulta, culta e inteligente prestou seu plantão de babá de chaveiro e levou o serviço à sério.
      Para onde caminha a humanidade? Fomos capazes de aceitar viver uma relação de cuidado amoroso com um chaveiro!
     Mas a experiência valeu. Quase tudo nesta vida vale, quando se sabe tirar o valioso proveito da aprendizagem. Os tamagochis foram o mico da vez, a bobagem levada a sério, a moda absurda e ridícula - como quase todas as modas. Ainda há tamagochis a venda, mas agora custam o preço de um chaveiro, sem mais pretensões afeito-sociais.
     Aos pedagogos, psicólogos e especialistas em geral, restou uma constrangedora e penosa lição: é preciso ser crítico, manter o bom senso e não se deixar cair na tentação perniciosa dos modismos.
     Observação final:  a necessidade de cuidado é uma das nossas necessidades mais transcendentes, que só se realiza na presença de um outro ser vivo, seja ele pessoa, anial ou planta. Coisificar esse afeto perverte, exaure, esteriliza um dos mais nobres sentimentos humanos.
Publicada em 04/06/2005
Jornal Agora - Caderno Mulher

Os Aposempatos e os Pega Ratões



    Os pouco afeitos ao sabor das letras, criticam o ensino de regras ortográficas e gramaticais, por considerarem o assunto complicado e enfadonho. Contanto que seja resolvido, tanto lhes az que seja um problema, um "probrema" ou um "polema". Em parte, os traumas escolares com a Língua Portuguesa se justificam. Gastam-se anos de vida estudando os floreios da linguagem, sem que a riqueza do vernáculo se associe com sua importante função organizadora do pensamento. Pelas vias e lapsos da palavra nos revelamos e pelos mesmos caminhos desvendamos o mundo, deciframos pessoas, resignificamos a realidade.
     A aprendizagem da leitura é algo transformador, mas não basta ler. É preciso alcançar o entendimento crítico do que se lê. Como tornar o ensino mais encantador e também mais útil? Uma idéia é atrelar a aprendizagem ao cotidiano e, neste aspecto, a vida de hoje é por demais inspiradora.
   Talvez um dos exercícios mais criativos e envolventes pudesse ser a proposta de realizar pesquisas de campo, em especial no espaço profícuo das peças publicitárias. Nos anúncios encontramos assassinatos de Gramática e Ortografia, ofertas curiosas, coisas engraçadas, mas, principalmente, muitas armadilhas publicitárias - estas, especialmente, mereceriam aprofundados estudos em todos os graus de ensino.
     Atualmente o alvo principal da propaganda são os aposentados e pensionistas. Figuras de idosos ricamente vestidos, desfrutando praias do Caribe, sugerem que com um empréstimo o aposentado possa mudar de vida. Alguns textos anunciam expressamente a promessa de transformação radical.  Parece que da fila do Inss o aposentado saltará direto para o embarque num luxuoso cruzeiro marítimo. Sem mínimo pudor, artistas consagrados personificam agiotas sorridentes, sustentando promessas enganosas. O bombardeio é total: anúncios em embalagens de lojas de todo tipo, propagandas enxertadas em programas de grande audiência, cartazes por todos os lados. "E o melhor de tudo: desconto direto na folha de pagamento."  Melhor para quem???
     Os aposentados são os patos da vez, os aposemtapos, prestes aperderem, no impulso de um telefonema, um terço de suas penas, ou melhor, de seus penosos benefícios. Notícias dão conta de que 25 mil depenados, digo, aposentados são cozinhados diariamente num caldeirão fin/anceiros de mais de 5 bilhões de reais. Deixemos os números de fora - para serem tratados quando falarmos na disciplina de Matemática.
     O tema "empréstimo para aposentados" é apenas um exemplo dentre tantos outros assuntos, muito atuais, que podem ser ricamente explorados em sala de aula, para estimular a percepção de mensagens subliminares, dos duplos significados, dos conteúdos discrepantes, dos sujeitos ocultos dissimulados. Essas atividades são normalmente trabalhadas apenas às vésperas do vestibular,como treinamento para enfrentar os usuais "pega ratões", como são conhecidos os textos que inspiram equívocos de interpretação.
     Se os aposentados e os consumidores em geral estão sendo tratados como patos, ratos e outros bichos, aprimorar a leitura dos "pega ratões" pode ser preciosa aquisição escolar.
Publicada  em 23/04/2005
Caderno Mulher -Jornal Agora   

domingo, 12 de dezembro de 2010

Os Yodas: Sua Vida Sob Nova Direção

Esse é um mundo que, compulsivamente, inventa. Cria-se de tudo, inclusive genéricas maluquices. Quase não dá mais para se espantar, mas ainda há o que ultrapassa o amplo limite de nossa tolerância. Dizia a manchete do jornal da capital: “É natural: queremos alguém que nos guie”, reproduzindo palavras da consultora especialista em consumo, Melinda Davis. A americana do norte é autora do livro A Nova Cultura do Desejo, que defende que as pessoas querem ser poupadas de chateação no seu estado de espírito: querem ser liberadas do peso de tomarem decisões e fazerem escolhas. E acrescenta que para vender é preciso proporcionar mais do que prazer: êxtase. As palavras de Davis apenas verbalizam o que a realidade do cotidiano demonstra: vivemos uma sociedade extasiada pelo consumo. Os Yodas aparecem como guias para satisfazer os ávidos consumidores.

Vai fazer uma viagem? Procure um yoda que lhe guie não apenas o caminho e seus atalhos, mas defina o roteiro e os lugares que você deverá ir. Este é o modo de transformar os preciosos dias de férias em um roteiro de compromissos agendados: acordar cedo, não perder passeios “imperdíveis”, etc e tal. Não invente, nem improvise, apenas siga o roteiro.

Para boa sorte geral, as viagens programadas acontecem esporadicamente. Os piores guias são os que atormentam o dia a dia, determinando desde o traje até o que se deva ou não falar, comer, beber. O que combina e o que não combina. Tudo estabelecido sem levar em consideração os juízos de valor e as particularidades de gosto ou paladar. Para comprar um vinho, consulte um guia, leia a opinião de especialistas que vão lhe falar coisas que você provavelmente nem vai entender, mas que lhe apontarão o que deverá servir em seu copo. Se a questão é comprar um livro, consulte um especialista. Decorar cada, o decorador. Presentear alguém? Tem o especialista para indicar o que deve se comprado. Nem pense em ficar perdendo seu tempo precioso com essas miudezas.

Pensou num cineminha? Tropa de Elite 2 é sucesso de bilheteria, os yodas o recomendam para crianças, jovens, adultos e idosos. Tiro pra cá, palavrão pra lá, mas é bom, tem quer ver, pois essa é a realidade – do morro, da favela, do crime. Tem que ver, independente da sua idade ou sensibilidade ou do lugar onde viva. Depois você toma uma o remédio da pressão, uma dose a mais do antidepressivo ou um comprimido para conseguir dormir.

Os yodas estão sempre prontos a colocar a vida alheia no piloto automático: ninguém precisa mais pensar em nada, apenas prosseguir no rumo apontado e, como Pilatos, lavar as mãos pelas decisões não tomadas. É vida sob nova direção, sendo vivida por escolhas ditadas, dissociada de significados, inconsciente de conseqüências.
Publicada
dia 11/12/2010 

Volúpia de Parecer Sacrificado

Caprichosa é a subjetiva capacidade de sentir alegria ou dor. O que para uns é sofrimento e provoca fuga, para outros é um imã de irresistível atração. Esse é o caso das pessoas que sofrem (ou curtem) a Volúpia de Parecer Sacrificado (VPS). Elas parecem experimentar grande prazer, quase êxtase, ao se sentirem sacrificadas e por isto interpretam tudo como martírio. São seres de alma aflita que só conseguem olhar para a existência pelo viés da dor e do pesar. Como a vida lhes pesa! Arrastam-se pela existência, curvadas pelo sofrimento auto-infligido, como se carregassem nas costas um piano de cauda. Acreditam, piamente, que sua vida seja só sacrifício e que viver é cumprir um doloroso castigo.


Nada lhes pode fazer graça: tudo é só desgraça. Se alguma coisa parece boa, logo tratam logo de arruiná-la. Estão organizando uma festa? Então começam a sofrer desde o inicio: reclamam das despesas, se queixam dos afazeres necessários. Estão num bom emprego? Ah, certamente acharão o serviço péssimo. Se conseguirem um bom trabalho, reclamarão do salário. Se o salário for bom e o serviço melhor ainda, restará a possibilidade de sofrerem com os colegas ou reclamar do imposto da renda. Sua vida parece um novelo enredado de encrencas: pouca diferença existe se estão a serviço ou de férias; sozinhos ou acompanhados. Nada muda seu existir, pois são especialistas em arranjar sofrimento.

Quase nem respiram, o ar flui por suspiros. Sem perceber, não se permitem forma alguma de felicidade. Nunca dirão estarem bem, nem para constar. Mesmo num rápido encontro de elevador conseguem narrar seu sofrer. Estão sempre de mal a pior. E assim, vão arrastando a vida, ou se arrastando pela vida, incapazes de desfrutar o lado mais leve da existência. Sempre se auto-flagelando, chicoteando a alma com sua espinhosa ladainha de queixas.

Sua existência é uma expressão dramática, que namora, mas nunca casa com o trágico. Com a ânsia de quem aguarda a chegada do grande amor, esperam a tragédia que pensam iminente. Porém nunca chega a dor de real desgraça que lhes poderia salvar de seus mil imaginários pesares. Por isso, prosseguem vida afora no interminável script de lamentações.

A Volúpia de Parecer Sacrificado (ou sacrificada) não é encontrada com freqüência, mas não se pode dizer que sejam raros casos. Certamente qualquer pessoa consegue identificar no seu horizonte próximo alguém cuja vida é costurada com queixumes. Provavelmente, já tenha até tentado ajudar: uma, duas, várias vezes, até o momento que perdeu a ilusão. Descobriu o traço mais típico da Volúpia de Parecer Sacrificado: a enorme resistência à mudança. São criaturas que não se entregam facilmente a uma ajuda. Diante de uma solução, logo criam novo problema e prosseguem a arrastar correntes, devotadas ao seu papel de mártir de uma vida de provações.

A Volúpia de Parecer Sacrificado não se ajusta às patologias descritas nos manuais psicológicos ou psiquiátricos: é um tipo de jeito de viver, de vibração existencial. Esse viver em eterno calvário pode suscitar até piada, mas deveria apenas inspirar compaixão, pois é um completo desperdício de vida.

Publicada em 27/11/2010

Decidi Ignorar

Desde que passei a ignorar as novidades que todos os dias surgem, começaram a se acumular objetos, tecnologias e até palavras que não sei para que se prestam ou o que significam. E, para piorar ou melhorar, isso está me parecendo ótimo: não preciso delas, não existem para mim e quero, desejo firmemente, que continuem a não existir. As ignoro sabendo o que estou fazendo. Ignoro porque decidir ignorar, numa decisão do tipo bem pensada. Pensei , pensei, refleti, pesei, medi e conclui: não vou tomar seu conhecimento.


Eu, que era do tipo de vanguarda tecnológica, que usava agenda eletrônica e aderi aos primeiros computadores, enfrentando o trabalho de decifrar os enigmas do ambiente Dos em inglês; eu que queria tudo saber. Pois agora que tudo ficou tão amigável, que a navegação é tão colorida, rápida e ampla, cansei. Acho que foi efeito de overdose: é coisa demais, novidade demais e minha limitada capacidade de absorção foi ultrapassada. Cheguei ao meu limite.

A tecnologia Bluetooth representou o divisor de águas: nunca a utilizei. Ela está ali no celular, no computador; mas eu nunca usei e nem falta senti. Foi o primeiro sinal. Depois vieram as redes sociais e veio o Twitter. E eu até que tentei: entrei, mas nem sei se entendi. O que captei é que é um modo instantâneo de enviar mensagens curtas. Não vi o motivo da pressa – de tudo ter que ser imediato, nem de haver sentido em enviar mensagens reduzidas, incompletas para milhões de pessoas mundo afora. Ali, dei um passo mais largo no caminho para me tornar ignorante e desde então, a cada dia ignoro mais.

Talvez pareça acomodada preguiça essa resistência à atualização, mas talvez represente uma sensata dose de sanidade; uma atitude de lucidez, que me faz perceber a necessidade de fazer escolhas.

Ou adentro nos twiters e facebooks, mergulhando no mundo virtual de um milhão de amigos, ou dou atenção ao restrito grupo dos que fazem parte de minha história e do cotidiano que me cerca. Ou venço a pilha de livros que escolhi ler, saboreando palavras e refletindo sobre suas mensagens; ou dispenso minhas preciosas horas incluindo comentários incompletos em voláteis e fragmentados diálogos virtuais. Ou uma coisa ou outra: não dá para fazer tudo – pelo menos eu não consigo. Ou vivo a vida real, vivencio a minha história; ou mergulho no infinito espaço virtual.

Decidi ficar de fora. Não sei, não quero saber, mas não tenho raiva de quem saiba. Até admiro as pessoas que conseguem circular no ambiente virtual e no real, numa mesma vida. É uma admiração sem inveja, sem desejo de se seguir seu exemplo. É do tipo de admiração que tenho por quem é capaz de praticar alpinismo ou pára-quedismo. Meu espaço aéreo é mais limitado: ultraleve e asa delta são meus limites de máxima altitude.

Prefiro buscar conhecimento na sabedoria antiga a ser amarrada por novas tecnologias. E, por fim, confesso ter certo medo do avanço da dependência tecnológica. Talvez faça parte da conspiração chinesa: em breve estarão todos dependentes, com suas vidas gravadas em instáveis chips ou na invisível rede virtual.

Não tenho mais tempo para perder: o que me resta será todo dedicado inteiramente à realidade verdadeira, mesmo que isto me custe cultivar grandes áreas de ignorância.
Publicada em 12/11/2010

O Disse Me Disse

“Disse me disse” é a corrente de maledicência, do boato, do mexerico, da difamação. Até não muito tempo atrás esse era o tipo de coisa feita à boca pequena, ao pé do ouvido, em voz baixa, espalhada pessoa a pessoa, num processo demorado e trabalhoso. Dizia-se: quem conta um conto acrescenta um ponto, pois era assim que a coisa ia crescendo. Havia o risco – ou a chance - de que as palavras se perdessem ao vento, se encontrassem no caminho uma pessoa de bem, que não se prestasse a retransmitir a mensagem, cortando o elo da corrente maldosa.


Para conseguir anonimato e fugir das responsabilidades era necessário lambuzar os dedos no complicado trabalho de recortar e colar letras de jornal, montando artesanalmente a maledicência, que ainda precisava ser entregue sorrateiramente ao destinatário.

Distantes parecem aqueles tempos em que fazer coisa errada dava tanto trabalho, medo e vergonha. Agora se tornou rápido e fácil ferir ou até destruir a moralidade de alguém: basta um toque de teclado e mensagens anônimas são transmitidas a todos os quadrantes. A rapidez da transmissão de informação ampliou muito o poder destrutivo das palavras. É só soltar na rede da internet uma notícia e ela vai sendo reproduzida automaticamente nas listas de contato. A coisa é muito fácil de fazer: demanda quase nenhum trabalho ou esforço, pode ser mal acabada, produzida em série e distribuída instantaneamente. E se quiser tornar a coisa mais real e convincente, é possível usar imagens modificadas digitalmente. Uma imagem vale mais do que mil palavras – continuam dizendo os ingênuos, que não sabem o quanto os olhos podem iludir o coração e enganar a mente.

Com a internet, a capacidade destrutiva dos fuxicos extrapolou qualquer expectativa: tudo se inventa, comenta, recebe e retransmite sem necessidade de confirmação ou autoria. Fofoca - que era coisa feia, repreensível - se tornou quase natural. A internet é a rede do vale tudo, o território do “disse me disse” capaz de alterar destinos e destruir biografias. Acredite quem quiser e questione quem tiver juízo.

Ninguém precisa ser famoso para ser alvo: qualquer um pode ser atingido por comentários e maledicências, agressões moralmente indefensáveis, golpes baixos que atinjam mortalmente sua honra e dignidade, mas naturalmente são as pessoas com projeção pública os alvos mais fáceis.

É preciso ter muita lucidez, bom senso e vigilância para não cair nos contos entregues em lote diariamente na caixa de correio virtual. Pode ser mais prudente descartar sem ler mensagens que trazem informações maledicentes, afinal melhor correr o risco de perder algum trigo do que cometer o engano de gastar precioso tempo semeando joio.
Publicada em 30/10/2010

De Improviso e Com Prorrogação

Somos um povo talhado pelo improviso, pelas coisas de última hora, pelas promessas de curto prazo com cláusulas de previsíveis prorrogações. Do trabalho acadêmico, à declaração de imposto de renda e ao jogo de futebol: adoramos a última hora e contamos como certo um tempo de acréscimo ao que fora estabelecido. Essas são nossas marcas, nosso jeito coletivo de ser. Um modo meio malandro, despojado da seriedade dos compromissos. Para quase tudo damos um jeito, algum jeito. O jeitinho está em nosso DNA. Isso pode ser um talento ou um defeito, dependendo do lugar, da hora em que se coloque. Com muita jinga, temos grande habilidade para contornar situações, inventar atalhos, abreviar trabalhos e fugir dos grandes esforços. Somado a isto, temos um traço empreendedor: somos mercadores natos. Todas estas características são um orgulhoso patrimônio nacional, nosso jeito brasileiro de tudo fazer de improviso e com prorrogação.


Talvez por isto, acompanhar o trabalho de resgate dos mineiros chilenos tenha sido como viajar a um estranho país estrangeiro: deu para perceber bem a diferença cultural entre o jeito deles e o nosso. Somos vizinhos próximos, mas de mundos distantes. Por lá, planejaram várias estratégias e colocaram simultaneamente em prática três planos de trabalho. Não contentes com tamanha prudência, na hora do resgate, se puseram a testar várias vezes o procedimento. Ah, se fosse com a gente... Planejar não é muito nossa praia e menos ainda fazer ensaios prévios. Esboçaríamos o plano A, só se não funcionasse, então pensaríamos no B.

O que dizer de suas cautelosas previsões? Cumpriram sua missão na metade do tempo previsto. Eles têm uma lógica, um modo de pensar bem diferente. Quando falam em prazo, estão estabelecendo um tempo máximo, diante do qual se comprometem como se estivessem atrasados. Aqui é exatamente o contrário: quando se faz uma previsão, este tempo é pensado como o mínimo, basta ver o andamento da mais corriqueira das obras públicas. Ninguém se constrange ou envergonha de não cumprir prazo: estamos acostumados com isto. Sem falar na mania nacional de dizer que uma ação futura já foi começada, está em andamento – ainda que nenhum ato tenha sido praticado. Preferimos nos enganar com doçura das ilusões a encarar a dureza dos fatos.

Outra diferença notória foi a falta de merchandising: total ausência de patrocinadores. Se fosse por nossas bandas não perderíamos a oportunidade: haveria grandes balões publicitários, empresas diversas distribuiriam “brindes” e não faltariam bonés coloridos com logomarcas e farta distribuição de produtos de apoio. Sem falar nas barraquinhas modelo feira livre, com venda de churrasquinho, pipoca e lembrancinhas com fotos dos mineiros e do acampamento. Famosos apresentadores de TV comandariam as transmissões e câmeras exclusivas da Rede Globo estariam instaladas dentro da mina e em todo o trajeto do resgate; além de promoverem campanha para angariar fundos para o resgate e para as famílias dos mineiros. Faltaria espaço para os políticos de várias jurisdições se acotovelarem diante dos holofotes: de vereadores ao presidente da república – todo mundo ia querer estar presente nos abraços e ter seus minutos de discurso.

Realmente, os alienígenas chilenos são muito esquisitos. Estranho é o Chile, muito estranho. Ou será que estranhos somos nós?
Publicada em 16/10/2010

O Povo, a Virtude e o Voto

“Povo que não te virtude, acaba por ser escravo”*

Saber ler e escrever são as exigências legais mínimas para ser candidato a cargos públicos eletivos, mas este critério está longe de ser condição suficiente para desempenhar atribuições de importância maior como as funções de legislar, gerenciar o bem coletivo, tomar decisões complexas. É preciso muito mais.

Em termos cognitivos, as funções públicas eletivas exigem um nível intelectual suficiente para entender não somente as leis, mas os complexos meandros das macro-negociações. Para tomar decisões corretas e sensatas há que se ter condição mental para discernir, para avaliar, para refletir, raciocinar. Esta é uma parte da questão, mas talvez nem seja a mais grave já que os grandes desmandos têm sido praticados por pessoas que denotam boa capacidade intelectual . Por incrível que a muitos pareça, mesmo uma pessoa com limitação intelectual é capaz de entender a diferença entre o bem e o mal, entre o honesto e o desonesto, entre o justo e o injusto. São noções morais que ocupam uma área cerebral diferente das noções cognitivas do conhecimento formal (escolar, acadêmico).

Embora seja plausível escolher os mais capazes, mais inteligentes e mais cultos – já que desempenharão funções de alta relevância, o que mais se precisa (e se tem falta) são de candidatos éticos. Pessoas que tenham índole resistente às tentações do poder; que por seu passado ou por seus traços demonstrem a capacidade de negociar, sem cair em conchavos; lidar com poder, sem escorregar na ganância; manter o espírito e o interesse público, acima de seus interesses pessoais e até mesmo dos restritos interesses partidários. Pessoas com autonomia de pensar e agir: capazes de se manterem fiéis aos seus compromissos, mesmo quando sob pressão. É por ai que a escolha se torna cada vez mais difícil.

Pode parecer fora da realidade, mas existem – ainda existem – os bem intencionados, os honestos, os humildes, os autênticos, embora seja difícil achá-los no baile de fantasia que se tornou o período eleitoral. Diante de tanta propaganda e dos efeitos maquiadores da publicidade, ficou complicada a tarefa de separar o joio do trigo. Aliás, exatamente como no cultivo, os terrenos arados pelo poder são mais férteis ao joio do que ao trigo. E, como toda erva daninha, o joio não exige cuidado para ser semeado, cresce rápido e é muito resistente. Ai está bem figurado o cenário político atual: os campos estão minados de joio e os grãos de trigo sobreviventes precisam ser protegidos para que não se contaminem e envenenem. É preciso ter um paciente e cuidadoso trabalho para separar o joio dos falsos discursos do valioso trigo das boas intenções e da índole honesta.

Já que temos o poder de escolher, porque optar pelos piores? Para fazer graça? Se assim agirmos estaremos assinando nossa desgraça e confirmando nosso constante papel de bobos da abusada corte que desde os mais remotos tempos do império continua orbitando nos palácios governamentais. Na diversificada lista de candidatos há os que inspiram esperança de possuírem maiores virtudes e são esses que merecem a aposta de nosso voto. Que os eleitos deixem de refletir mazelas nacionais e passem a retratar as virtudes e glórias de nosso povo.

*Hino Rio-grandense, letra de Francisco Pinto da Fontoura

Publicada
em 02/10/2010

Depois dos 50

Após os cinqüenta anos, fica fácil perceber a mudança no curso da vida, que em muito se assemelha ao descer de uma montanha: a subida é árdua, a permanência é breve e a descida é representa o maior e mais difícil obstáculo a ser vencido. Ao chegar ao topo não se terá vencido a metade do caminho, pois o percurso seguinte será muito mais exigente e perigoso. Exatamente como na vida.


A passagem dos 50 anos é talvez a mais radical mudança, um marco, o ponto em que começamos a irremediável descida. Não há mais jeito: a reviravolta é geral. Passamos a enfrentar novas provas. Até ali buscáramos números altos nas notas do colégio, no vestibular, na faculdade, no contracheque, nos extratos de banco. Agora passamos a perseguir as notas baixas. O tormento são os exames de laboratório, com a exigência de cada vez mais diminuir suas taxas. Quem consegue as menores notas e dribla os avanços de colesterol, triglicerídeos, glicemia e pressão arterial é um vitorioso, pois vai percebendo que o grosso da tropa se tornou cliente fiel de médicos e farmácias.

A mais difícil das mudanças é que passamos a acompanhar o obituário do jornal, antes de ler qualquer outra matéria, pois ali encontramos com freqüência nossos amigos e conhecidos. A cada notícia de falecimento, um abalo, um sentimento de perda, uma sacudida existencial. A vida parece fluir mais rapidamente e não há mais tempo para desperdiçar com bobagens. É prudente e sábio que se mude o senso e altere a importância de muitas coisas.

Mas, o que seriam “bobagens”? Depende do conceito de cada um. Percebendo que estamos rumando montanha abaixo, não parece sensato carregar peso extra ou bagagens desnecessárias. É prudente largar as ilusões do trecho de subida, que nos faziam sonhar chegar às nuvens e permanecer eternamente jovens: melhor tratar de cuidar da saúde, deixando secundárias as questões narcísicas, meramente estéticas. Que se vão os luxos e os anéis, mas que se preservem os dedos. A cor é outra, a vida é outra. Se já se viajou o bastante ou não se conheceu do mundo o suficiente, não fará mais tanta diferença. Se o topo da carreira foi alcançado ou nunca se conquistou sequer um cargo de subchefia, isto deixa de abalar nossa felicidade. Tudo passa a ser tão diferente, quando se olha de outro ângulo.

É possível após o 50 anos mudar de amor, de profissão, de cidade, mas a maior revolução será outra. O despojamento é a maior fortuna, o ouro que se pode alcançar com a maturidade. Descer do salto alto ou do sapato de bico fino, largar ambições e vaidades resulta em muito melhor proveito do que insistir na busca de efêmeros sucessos. Descartar-se de tudo que é trivial, abreviar as necessidades e valorizar o que realmente importa: a essência das coisas, das situações e, principalmente, das pessoas. Essa mudança de ótica faz parte da colheita sábia de quem aprende com as mudanças.

Dirão alguns: mas que exagero! Hoje uma pessoa de 50 anos pode manter a imagem e vitalidade de bem menos idade e ultrapassar os 90 anos com lucidez e saúde. E eu lhes respondo: pode parecer mais jovem, mas adentrou na fase de prorrogação da existência que é de mais incerto prazo.

Publicado Caderno Mulher
Jornal Agora
18/09/2010

700 metros e Muitas Reflexões

Para baixo todo santo ajuda. Nem sempre. A demorada operação de resgate dos mineiros presos no Chile, acompanhada pelos holofotes do mundo, demonstra o quanto ocupamos uma terra insondável e nos coloca – ou deveria colocar - em nosso devido lugar. Somos pequenos, frágeis e impotentes diante da Natureza e de suas forças.

A vaidade humana constrói prédios com mais de 700 metros de altura, pretendendo riscar o céu e impor seu domínio. As ilusões de poder continuam fascinando a humanidade. O ser humano é capaz de ir a Lua, viajar a velocidade do som (1224 km por hora), mas só consegue avançar poucos metros por dia na perfuração do solo. Longos meses serão necessários para que as máquinas vençam apenas 700 metros, sete quarteirões – menos de um quilômetro do chão que está sob seus pés.

Loucamente, fabricam-se bombas atômicas para exterminar num segundo uma cidade inteira, armazenam-se arsenal capaz de explodir o planeta inteiro, mas não conseguiram produzir a máquina eficiente para perfurar o solo profundo rapidamente. A Terra é insondável, sólida, densa e internamente chega a ser tão quente quanto o Sol. Explorada, bombardeada, não se vinga e nem dá troco: não é este o espírito da mãe natureza. Ela apenas reage, recompondo sua força e forma. Nunca, jamais, é sorrateira: como mãe amorosa, quando desrespeitada sempre dá muitos sinais de alerta, antes de drástica reação.

O episódio chileno possibilita muitas reflexões. Pensar sobre a dimensão da Natureza e o quanto precisamos conhecê-la e respeitá-la. Como os rios, oceanos e montanhas, a mina chilena deu avisos de que iria iniciar um processo de se recompor. Mas, como costuma acontecer, a mãe-natureza não foi ouvida: o desrespeito arrogante persistiu até o desastre se concretizar.

Há um lado positivo para redimir um pouco nossos tão falhos comportamentos humanos. O pequeno grupo de mineiros retido demonstra qualidades ímpares: se mostram unidos, organizados, resistentes e capazes de lidar com o infortúnio com serenidade. Dão um exemplo do quanto a dureza do trabalho rude pode aprimorar o espírito humano. O serviço penoso que os mantém fisicamente sujos parece ter aprimorado virtudes: solidariedade, capacidade de superar frustrações, resistência a privações. A pele engrossada e as unhas sujas brutalizaram os corpos, mas em muito podem ter ajudado a aprimorar suas almas.

A humanidade evolui mais fazendo forçados trabalhos do que aboletada em funções abusivamente remuneradas. É mais fácil evoluir na privação do que na abastança. O efeito provocado pelos excessos de conforto e luxo vem sendo demonstrados em diários maus exemplos dos seguimentos mais poderosos da sociedade. Paradoxos que merecem reflexão e mudança de paradigmas.

Publicado Caderno Mulher
Jornal Agora
04/09/2010

sábado, 21 de agosto de 2010

Quintal do Vizinho

Outra vez nos chega, de presente, container de lixo vindo do outro continente. Países que nos consideram de categoria inferior, que impõem barreiras alfandegárias severas a nossa gente, remetem seu lixo sorrateira e criminosamente. Comportam-se como aqueles vizinhos selvagens, que jogam dejetos para o quintal do lado imaginando que moscas, mosquitos e ratos respeitarão o muro de suas casas. O caso acontecido nesta semana, reprise de filme visto recentemente, resulta do encontro de inescrupulosos de vários países. Espertamente, fizeram uma negociação na qual todos venderam: uns venderam o lixo, outros venderam o transporte e outros venderam o lugar em que vivem e todos venderam sua almas por um negócio realmente muito sujo. Por ganância, para ter lucro fácil e rápido, intoxicaram um pouco mais nosso já sofrido meio ambiente. Mais grave do que a reincidência do achado é a desconfiança de que o descarte internacional venha acontecendo há largo tempo e só raramente seja detectado, tornando o negócio menos arriscado e ainda mais lucrativo.

Pensam que há vários planetas? Que mandando para o outro lado do oceano, o lixo desaparecerá e o problema ficará resolvido? O que precisa acontecer para que se desfaçam as ilusões nacionalistas e que o mundo todo assuma o compromisso de preservação ambiental? Quanta incapacidade de ver a Terra como a casa de todos. Os sinais claros e dramáticos da mudança climática em andamento parecem não ser suficientes para despertar a consciência planetária.

Por todos os cantos pulsam transformações agudas: maremotos, enchentes, grandes incêndios, temperaturas chegando a extremos de frio e de calor em vários países. Oceanos bombardeados por resíduos vão levando a extinção da flora e fauna ali existentes. Migrações de populações por questões ambientais vão se tornando freqüentes. Tudo filmado, fotografado, documentado para os olhos que queiram ver. Os excessos do consumo, que continuam sendo cega e irresponsavelmente estimulados, associados à total ausência de comprometimento com ações responsáveis de cuidado ao meio ambiente antecipam e agravam tragédias. O lixo mais do que compõe o cenário, é questão vital, envolve a saúde das pessoas e a sobrevivência do planeta. Deveria ser pauta preferencial dos agentes públicos, jamais poderia fazer parte de negociações meramente comerciais ou de financiamentos políticos partidários. É sério demais para ser trocado por patrocínio, tornado refém de interesses especulativos e financeiros.

Um impressionante vídeo da Discovery demonstra a estrutura do planeta e compara: se a Terra fosse uma laranja, nós ocuparíamos apenas a casca. Abaixo da sutil faixa que ocupamos, o resto são camadas insondáveis, tal sua densidade e temperatura. Essa casquinha de laranja é todo o ecossistema que nos permite viver e que está sendo duramente castigado. Por isso, que ninguém pretenda sacudir os ombros ou lavar suas mãos. O problema é nosso e temos que encará-lo: que se investigue profundamente o tráfico de lixo e que se puna de modo exemplar, tornando-o um péssimo negócio.
Publicada Caderno Mulher
21/08/2010

domingo, 8 de agosto de 2010

O Sumiço dos Ouvintes


Com nostálgica saudade, recordo os tempos do rádio, quando a TV ainda não existia e o universo do imaginário era povoado por vozes e sons. Eu ouvia o Repórter Esso, cuja voz se sobressaia aos chiados do rádio de válvulas. Era pequena demais para entender o significado das noticias, mas me encantava com o aparelho – em madeira caprichosamente arqueada e com uma voz misteriosa saindo por entre a tela tramada de tecido e filetes metálicos. O mesmo sentimento de doce nostalgia me envolve quando recordo a eletrola grande da sala de casa e os momentos em que, muito miúda, saboreava escutar as histórias infantis dos pequenos discos coloridos de vinil. O som enriquecido de ruídos de fundo me levavam a uma viagem imaginária encantadora. Aquela era uma época em que se dava ao cérebro o trabalho de imaginar, de criar as imagens e também o tempo necessário para refletir sobre as palavras e seus significados. Éramos todos – crianças, jovens, adultos e idosos – ouvintes treinados: o entretenimento mais prazeroso nos entrava pelos ouvidos e fazia desta uma via importante de nossa sensibilidade. E as pessoas conversavam, proseavam muito.

Com o advento da televisão, rompe-se a primazia do som e entramos na era da imagem, com efeitos muito diferentes e, em alguns aspectos, bastante adversos. Enquanto para ouvir precisamos de atenção, sem a qual o som nem é captado, ver televisão exige apenas a presença de nossos corpos: diante do aparelho nos tornamos pateticamente hipnotizados por imagens e mensagens subliminares de todos os gêneros. Não precisamos fazer nada, nem pensar. O aparelho inaugurou a era da distração, que progressivamente invadiu todos os momentos da vida com cada vez maior número de aparatos de imagem. Em qualquer situação, nossa atenção é seqüestrada por estímulos visuais, capturada de mil modos e grande é o esforço necessário para resistir a tantos apelos.

De ouvintes atentos que em maioria éramos, nos transformamos em falantes distraídos. Esse é o mundo dos falantes – inclusive as máquinas. Somos “atendidos” por gravações e dialogamos com terminais eletrônicos e falamos com códigos: disque 1 para isto, 2 para aquilo, 3 para aquilo outro; conversamos com números. Os diálogos estão se tornando monólogos coletivos nos quais todos falam, falam, falam, sem que alguém se coloque na condição de ouvinte. Está cada vez mais difícil ouvir e ser ouvido.

Se nas situações pacíficas e harmoniosas, a falta de escuta é constante, nas cenas de conflito a possibilidade de alcançar entendimento por via do diálogo beira o impossível: ninguém quer ouvir a parte contrária. O importante é preservar a trincheira de seu ponto de vista. A comunicação é feita no modelo bombardeio. Cada um usa a munição que tem em mãos e, diante da bandeira branca da parte contrária, aproveita-se a brecha para recarregar as armas e achar um ponto vulnerável do interlocutor, tornado adversário.

Estão sumindo os ouvintes, acabaremos todos falando com as paredes.

Crônica Publicada no Jornal Agora, Caderno Mulher
dia 07/08/2010

domingo, 25 de julho de 2010

A Nova Alma Riograndina



“Assim como cada época, por mais lamentável que seja, se julga mais sábia que as precedentes; assim também a cada idade de um homem, esse julga-se superior ao que fora antes; enganam-se ambos muitas vezes”. (in Sabedoria da Vida, Shopenhauer)


Rio Grande foi o berço deste Estado, já foi capital no tempo da província, já foi muita coisa e depois adormeceu. A partir dos anos 50-60 do século passado, só se viu esta terra minguar com o desaparecimento do parque industrial que sustentava sua economia. Foram-se as fábricas e todas as gerações nascidas desde então se tornaram – de algum modo – órfãs da Swift e das grandes empresas que deixaram de existir. As histórias de muitas famílias demonstram efeitos de longo prazo derivados do fechamento daquele ciclo, sucedido por décadas de desesperança.

Adquirimos maus hábitos em função deste dramático colapso coletivo: tornamo-nos negativos, pessimistas, ranzinzas e até um tanto invejosos dos sucessos alheios. O espírito riograndino, que fora pioneiro, obscureceu-se. Deixou-se de acreditar que pudesse aqui alguma coisa dar certo e, em vez de apostar no futuro, semeando bons projetos, fez-se deste um chão de lamentações.

De repente, quando já quase ninguém acreditava, abriu-se um novo ciclo. Da sombria Terra do Já Tivemos para o alvorecer do novo tempo que estamos vivendo há um saldo imenso, mas também uma grande oportunidade de sacudir a poeira da desesperança, de renovar o ânimo, de tornar outra a alma desta cidade. É, os lugares têm alma, energias coletivas que qualquer pessoa medianamente sensível percebe: há cidades amistosas, acolhedoras; outras hostis, frias; cidades tensas e cidades tranqüilas. E Rio Grande, que tinha uma alma sombria, vive a oportunidade de renascer com outro espírito. Está surgindo uma nova cidade. A transformação está nas ruas e também nas pessoas; é realidade vista e vivida, para espanto dos pessimistas.

Há muito por fazer, ainda estamos na fase dos ensaios e dos erros. A cidade pulsa nervosa com tantas novidades, mas reage ranzinza diante das primeiras dificuldades, absolutamente naturais do processo. É como se quisesse as mudanças, mas não desejasse mudar.

Pois é hora de repensar essa nova cidade e refletir que somos nós, cada um dos que aqui vivem, que poderemos fazer deste um lugar melhor para se viver, aproveitando positivamente as transformações. Ou podemos persistir nos agarrando ao ânimo derrotista de até então e apostar nos aspectos negativos - pois estes naturalmente também existirão. Neste último caso, continuaremos a ladainha de lamúrias.

O bom senso diz que podemos – e devemos - instaurar um clima melhor, olhando positivamente o que está sendo feito e criticando apenas de modo construtivo o que precisar ser corrigido; sendo mais tolerantes, mais solidários, mais gentis e até mais simpáticos. Para nos tornarmos – individual e coletivamente – melhores do que já fomos temos que exercitar nossas virtudes, nossas qualidades positivas e corrigir nossos erros; sem tal esforço, apenas reeditaremos nossos velhos problemas.

sábado, 10 de julho de 2010

Perdemos. Óbvio!

                                                                         

“... assim como hoje o povo do Brasil usa a força
do  pensamento de modo pouco eficaz,
com a esperança de obter metas futebolísticas
e de escassa importância real, no futuro
o mesmo povo poderá usar essa força
para superar seus desafios culturais,
econômicos, sociais e ambientais.” [1]

Perdemos, pois nem sempre se pode ganhar. Óbvio.

Perdemos, porque o time adversário estava vivo, correndo no campo, jogando, disputando a bola e mirando o gol. Óbvio

Perdemos, posto que para fazer um gol, além do talento, há de se ter um sopro de certeira boa sorte. Assim como a bola por um triz entra, por outro triz fica de fora da trave que separa o sucesso do fracasso. No placar não são contados os quase gols. Óbvio.

Perdemos, porque há variados talentos, esforços e sortes distribuídos em todas as nacionalidades; não são patrimônios exclusivamente brasileiros. Óbvio.

Perdemos porque não se pode ganhar sempre o jogo, e era só um jogo. Óbvio.

Tudo isto absolutamente óbvio. Pois estas obviedades trazem lições para a vida, ou podem trazer se forem analisadas. Muita sabedoria está assim, ao alcance de quem observa aquilo que lhe salta aos olhos. A vida é generosa em situações óbvias, mas a mente desatenta não as enxerga. Absorta em milhares de distrações, pouco reflete e vai perdendo preciosas oportunidades de aprender, de evoluir.

As vivências cotidianas só nos servirão de lembranças se estiverem ligadas a algum aprendizado e aprendemos muito mais coisas com as derrotas do que com as vitórias. Porém, se buscarmos nas prateleiras de uma livraria, encontraremos ampla variedade de títulos sobre o mesmo tema: receitas de sucesso. Se seguidos a risca todos os passos recomendados, raramente alcançamos o mesmo resultado dos autores destes livros.

O sucesso parece com aquela água que se vê ao longe sobre a estrada e que, ao nos aproximarmos, descobrimos ser apenas uma ilusão de ótica. Os sucessos – em quaisquer áreas - são fugazes, passageiros, perigosamente ilusórios. As glórias alcançadas costumam vir acompanhadas da traiçoeira fama, inspirando orgulho e vaidade; insuflando o ego com arrogante autoconfiança. Seu efeito mais danoso pode ser constatado nos percursos meteóricos de alguns conhecidos personagens do mundo das artes e dos esportes - carreiras promissoras destruídas pelos excessos de dinheiro e de fama.

Já as decepções, se bem aproveitados, são capazes de promover positivas transformações. As derrotas colocam as coisas no seu devido lugar: demonstram a fragilidade humana. Os fracassos são férteis semeadores de pensamentos virtuosos: humildade, autocrítica construtiva, reconhecimento do valor alheio, solidariedade.

Da recente frustração futebolística se podem colher vários aprendizados: a Copa do Mundo não era brasileira por antecipação; os bem pagos jogadores não são heróis e nem estavam a serviço da salvação da pátria. E a pátria amada Brasil tem coisas mais importantes para pensar e para resolver. Óbvio.

[1] Carlos Cardoso Aveline, O Brasil e a Força do Pensamento, http://www.filosofiaesoterica.com/ler.php?id=409

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Origem do Movimento Teosófico no Brasil

     O blog  http://www.riograndeteosofia.com/ publica  hoje artigo com o título "Origem do Movimento Teosófico no Brasil", de autoria de Carlos Cardoso Aveline.  A sua leitura atenta do texto oferece uma visão mais ampla do percurso histórico da teosofia. Interessante ressaltar  a informação nele contida de que foi nesta região do extremo sul do Brasil, na cidade de Pelotas, que em 29 de julho de 1902 foi fundada a primeira loja teosófica brasileira - loja Dharmah.  Ressurgir e fortalecer o movimento pensamento teosófico é a missão do http://www.riograndeteosofia.com/.
    

domingo, 27 de junho de 2010

AVASSALADORES ENTUSIASMOS





     Poucas coisas são tão traiçoeiras como os entusiasmos: eles detonam poderosos estímulos orgânicos, mexem com a sofisticada química cerebral; atiçam vontades, cegam, ensurdecem, emudecem, entorpecem... Importa pouco o motivo que detona a elétrica tempestade, o impulso das paixões é avassalador. O excesso de entusiasmo provoca um abalo sísmico no corpo todo, deixando o coração aos pulos, a respiração ofegante, o cérebro atrapalhado e o pensamento confuso.

     A intensidade do bombardeio emocional absorve e domina todos os sentidos, por isto a expressão que mais se ajusta a seus efeitos é a palavra avassaladora: que avassala, faz da pessoa um vassalo, um servo. Sob efeito de forte emoção, se pode ir do ridículo ao cometimento de desvarios e até a prática de crimes.

     A provisória loucura pode ser provocada por um amor que se revele grande, capaz de sobreviver à avidez dos impulsos; mas também pode ser detonada por coisa qualquer: um objeto que se deseje comprar, um negócio que se deseja concluir, um jogo de futebol, a disputa de um campeonato. E lá se vai fora toda a razão, com sua capacidade de pesar, medir e ponderar. Perde-se o raciocínio, deixa-se de lado a inteligência. O cérebro fica aprisionado, torna-se presa das emoções quando está sob efeito da química da paixão, com febre de entusiasmo.

     No caso do futebol, quando se observa as ruidosas manifestações de torcedores – cada vez mais barulhentos – dá para perceber que o ruído incentiva ainda mais a tensão e exalta os ânimos, retroalimentando o processo. Pessoas normalmente pacatas podem se alterar completamente, demonstrando excitação que lhes seja incomum. Há uma sensação de prazer em desfrutar tanta euforia, soltar gritos que avançam quarteirões e riscar o céu com rojões. O extravasar explosivo das emoções resulta para uns em descarga da tensão, mas para muitos apenas reforça o processo, deixando a pessoa ainda mais entusiasmada. Os riscos deste tipo de excesso relativamente à Copa do Mundo já foi alvo de pesquisas médicas na Alemanha e agora está sendo estudado no Brasil, em vários hospitais, para avaliar a hipótese de aumento de urgências cardiológicas. Talvez em breve o Ministério da Saúde precise lançar uma advertência semelhante à existente para cigarros e bebidas, alertando: evite o excesso de entusiasmos em sua torcida, proteja seu coração.

     Como a aceleração cardíaca limita a capacidade de raciocínio, acarreta também um efeito semelhante ao da embriaguez. Pode-se falar de uma embriaguez sem álcool, que compromete a capacidade de dirigir, por isto se vê tantos excessos ao volante ao final de jogos de futebol.

     Acima dos riscos imediatos citados, o mais importante pode ser refletir se controlamos nossas emoções ou se são elas que nos controlam? Seremos vassalos ou senhores de nossos entusiasmos?

     Nota final: convido os leitores a visitarem a página http://www.riograndeteosofia.com/. Ali encontrarão textos de filosofia clássica e de teosofia.
publicada Jornal Agora - Caderno Mulher
26jun2010

sábado, 19 de junho de 2010

O Exemplo de Aung San Suu Kyi

         Foi incluida neste sábado, 19 de junho, no site http://www.riograndeteosofia.com/ um artigo de Carlos Cardoso Aveline entitulado "O Exemplo de Aung San Suu Kyi" - Algumas Lições de Desapego na Caminhada.
         Aung San Suu Kyi, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1991. Ela aniversaria nesta data, na prisão domiciliar em que vive desde 1980, na Birmânia. 
         A autora de "Viver Sem Medo" (ed.Campos, RJ, 1992) traça a relação entre corrupção e medo: “Não é o poder que corrompe. É o medo. O medo de perder o poder corrompe aqueles que o detêm, e o medo de ser oprimido pelo poder corrompe os que a ele estão sujeitos.” (p. 145) 
        Que o exemplo de luta e resistência pacífica de Aung San Suu Kyi se multiplique em pensamentos positivos, que sua obra seja mais lida e suas idéias frutifiquem em outras mentes e outros corações.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

A intensa dor da felicidade

       Nesses dias de ebulição coletiva em função da Copa do Mundo, é pertinente refletir sobre a vida.
A exaltação excessiva diante dos jogos pode provocar emergências cardiovasculares, como revelado em 2006, numa pesquisa feita na Alemanha. O assunto é importante e está sendo agora pesquisado em 17 hospitais brasileiros, dentre os quais o Clinicas de Porto Alegre.  
      A comoção social estimulada pela mídia leva a um estado de transe coletivo, no qual parece que a vida é a copa do mundo e a felicidade está ao alcance de um chute, de um lance, de uma taça.
     Pois que se pense sobre a felicidade e sobre a vida.   O site http://www.riograndeteosofia.com/ incluiu hoje uma interessante carta do filosofo cearense Farias Brito relatando a intensa dor da felicidade suprema, que é algo transcendente, espiritual.    Para acessa-la clique no endereço que segue:

http://www.riograndeteosofia.com/2010/06/intensa-dor-da-felicidade-suprema.html

sexta-feira, 11 de junho de 2010

A ALQUIMIA DO AMOR

Talvez seja errado pensar que o amor, em si mesmo, produz felicidade.
Na verdade, o amor produz altruísmo.
A prática do altruísmo é que produz felicidade.
Em quaisquer relações humanas,
quando cada um se preocupa
com a satisfação das necessidades do outro,
 há plenitude e bem-estar.
Carlos Cardoso Aveline *


        A alquimia do amor é uma química oculta, ainda que a ciência decifre alguns de seus percursos, permanecem os mistérios. Faz parte da magia da vida.

       Há, sim, uma magia, um encanto químico-energético que atrai, aproxima e une as pessoas. As faíscas geradas no momento inicial da relação deixam de acontecer com o fluir do tempo por um esgotamento orgânico, por uma acomodação química cerebral. É o que dizem as pesquisas atuais de neurociências, informando que as pessoas que sentem necessidade de sentir essa forma de estimulação prazerosa precisam recorrer a novos amores, capazes de detonar o mesmo abalo sísmico no cérebro. Tornam-se dependentes de paixões efêmeras de modo muito semelhante a qualquer outra forma de dependência química.

    Diferente da tempestade elétrica da paixão é o sentimento que sobrevive e se aprofunda ao longo do tempo de convívio. Este parece cada vez mais ser privilégio de poucos pares: a duradoura felicidade conjugal.

     Casamentos já são difíceis neste mundo onde tudo se descarta, inclusive as pessoas; casamentos duradouros, cada vez mais raros. Mas, esses casamentos que vão até que a morte separe serão sempre modelos de felicidade? Um olhar atento permite identificar que muitos casais longevos não se apresentam como exemplos de felicidade: semblantes tristes, fechados; poucas conversas, raros carinhos denotam relações que se perderam nas agruras do convívio diário. Relações amarradas em celebrações de festivas bodas, sobreviventes dos vários naufrágios de decepções, mas que azedaram ao efeito do tempo, se tornaram parcerias ranzinzas, convívios amargos. Relações duradouras podem ser saborosamente doces ou se revelarem azedas, envelhecidas em lamúrias, exemplos de infelicidade crônica irreversível.

     Outra é a história dos casais felizes, cuja relação só melhora ao longo do tempo. Que especiais são os relacionamentos que se aprimoram com o passar da vida, ajustando seu compasso um ao outro. Há fórmula para se alcançar a benção de passar a vida em boa companhia? Por certo não existe uma receita, mas se pode observar que são mais felizes no casamento – e na vida em geral - as pessoas capazes de sentir alegria com a alegria do outro; os que partilham ; os que toleram, que desenvolvem uma relação altruísta, de busca do bem estar do parceiro ou da parceira. Essas ficam mais protegidas das decepções e amealham ao longo dos anos uma relação de mútuo respeito e consideração. A plenitude, o bem estar se conquista na medida exata em que se vive para oferecer ao outro o melhor de si mesmo e se desenvolve maior tolerância com os erros alheios. Esse jeito de ser e agir promove a química do altruísmo e esta é a fórmula mais segura de alcançar a felicidade serena e duradoura, no casamento ou fora dele.

*Aveline, Carlos Cardoso – O casal como centro da civilização: http://www.filosofiaesoterica.com/ler.php?id=270

Publicada Jornal Agora - Caderno Mulher  - 12/06/2010

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O CULTIVO DA TRANQUILIDADE

             Não faz nenhuma diferença o que nós fazemos;
 o que importa é como nós fazemos qualquer coisa.
E como sempre há algo sendo feito,
 nós sempre temos a oportunidade de fazê-lo corretamente.
 Robert Crosbie


      O tempo parece-nos na maioria das vezes curto o suficiente para justificar a agonia de fazer tudo rápido, de um jeito qualquer, dispensando caprichos e reflexões que exigiriam mais alguns minutos. Escoando no atropelo, vamos alinhavando uma vida sem debruns e acabamentos. Deixa-se de lado o que parece à primeira vista ser dispensável, utilizando um critério de escolha que prioriza rapidez e sacrifica todos os demais quesitos. E sobe a pressão arterial aos solavancos de um viver turbinado de afazeres.

     Fazemos as coisas sem nelas pensar, sem que nossa mente se permita sedimentar decisões, questionar sentidos e significados. Muito do estresse cotidiano e de suas conseqüências pessoais e coletivas é fruto desse tocar a vida ao ritmo de urgências fabricadas. A agitação física e mental estabelece um turbilhão de pensamentos simultâneos que turvam a atenção e sobrecarregam nosso sistema de raciocínio. Cansamo-nos mais, atrapalhamo-nos desejando abarcar vários assuntos num só ato. E pior, prosseguimos deixando coisas caírem pelo apressado caminho de nossa existência.

     Entretanto, por mais que sejam atravessados momentos ou situações agitadas, a mente tranqüila sempre será mais capaz de buscar e encontrar as melhores alternativas, abreviando esforços e frustrações. Nossas ocupações podem ser adequadamente cumpridas na cadência dos dias, sem a necessidade de nos preocuparmos com o que possa eventualmente deixar de ser feito. O tempo mostrará se o que foi deixado para trás fará ou não falta. Na maioria absoluta das vezes, as pequenas falhas cotidianas não se transformarão em perdas irreparáveis.

     Podemos fazer muitas coisas se nos permitirmos dar um passo de cada vez, um após o outro, sem nos desviarmos de metas propostas e procurando sempre a melhor forma possível. Com o pensamento liberto das pressões desnecessárias, conseguimos olhar a vida saboreando suas cores, seus sabores e principalmente estabelecendo importância adequada a cada momento.

     A tranqüilidade é o fruto maduro de uma atitude de viver caprichosamente germinada nos pequenos atos e nas situações banais do dia a dia. Tranqüilidade se cultiva, com zelo e cuidado persistentes; não se compra pronta e nem se engole em capsulas. Quando se alcança tal equilíbrio, se descobre uma serenidade profunda e duradoura, jamais conquistada com a química dos remédios.

     Retornando às palavras iniciais de Crosbie, o que importa na vida é o modo como fazemos as coisas, independente de serem simples ou complexas; rotineiras ou não. O fundamental é caprichar, fazer bem feito e, como a pressa sempre foi inimiga da perfeição, manter sempre a calma e a preservar a tranqüilidade. 
                                                             Publicado Jornal Agora 15maio2010


domingo, 9 de maio de 2010

Reflexões sobre o rascunho publicado

     A minha crônica anterior foi publicada na versão de rascunho. Se tivesse o trabalho sido produzido em papel seria quase impossível confundir coisa com outra: riscos e flechas alertariam de que aquele texto não estava “limpo” para ser lido por outros olhos que não os meus. Como sempre faço, só enviei a crônica quando dei por concluído o trabalho, depois de lidas, relidas, cortes e recortes. Costumo ir tecendo idéias, alinhavando aqui e acolá e depois faço a redução necessária para ajustar o texto ao espaço da coluna. Entretanto, nestes fulminantes tempos virtuais, basta um toque de dedo para se cometer um equívoco e, no caso em questão, multiplicar seus efeitos por milhares de exemplares da edição do jornal. Acabei enviando à redação o arquivo que fora rascunho. Não há no texto palavras ou expressões a serem corrigidas. Só por vaidoso preciosismo republicaria o artigo, em sua versão correta.

     O erro, portanto, foi meu e não transfiro essa responsabilidade. Já basta aos leitores terem que suportar as constantes notas de “não fui eu que fiz”, “não era do meu conhecimento” ou os “a bem da verdade”. Nunca fiz e não vai ser com cabelos prateados que passarei a fazer parte da grande turma dos que se esquivam de responsabilidades, mas não os condeno. Consigo entender as causas de tantos maus exemplos e foi este o assunto que brotou de minhas reflexões. Vivemos os tempos do “recall”, termo que nos é imposto sem tradução por variadas empresas, encobrindo erros graves de fabricação de seus produtos. Como a expressão é para inglês ler, engolimos os chamados para consertos como se fossem gentis e cuidadosos agrados dos fabricantes. E seguem os autores anônimos construindo coisas que estragam, deixando serviços mal feitos ou pela metade, fornecendo dinheiro que rechear as roupas de políticos.

     Por outro lado ou talvez por inspiração em tantos modelos negativos, dotados de auto-estima e autoconfiança exacerbadas, é fácil observar que as pessoas estão ficando cada vez mais auto-indulgentes. Desculpam a si mesmas e não se constrangem ou acham necessário explicar suas faltas. Paradoxalmente, parecem cada vez mais exigentes e intolerantes com falhas alheias. A mesma pessoa que estaciona em fila dupla ou na vaga de portadores de deficiência, por exemplo, se exaspera com a mínima demora num sinal de trânsito, protestando com nervosas e grosseiras buzinadas.

     Mas todos desejamos um mundo melhor, menos violento, mais amoroso e pacífico, não é mesmo? A questão dos erros, nossos e alheios, tem bastante a ver com harmonia e entendimento. Medidas bem simples podem ser tomadas individualmente para melhorar a situação crítica que hoje sofremos. Pois para finalizar trago uma sugestão colhida em sabedoria muito antiga, que diz mais ou menos assim: tenha em mente que a perfeição lhe é impossível, mas exija sempre o máximo de si mesmo, buscando fazer o melhor que estiver ao alcance de seu esforço; porém desenvolva a tolerância e compreensão em relação a erros e falhas alheias. Recomendação aparentemente curta, cuja prática exige persistência, mas tem efeitos positivamente revolucionários para quem a adota.
                                             (publicada Jornal Agora - março 2010)

ADMIRAVEL MUNDO NOVO

     Os arroubos da arrogância juvenil, outrora reprimidos com severidade, são atualmente estimulados. Esta é uma cultura que mal educa suas crianças e jovens, aos quais tudo concede, releva e perdoa. Enquanto o mundo vai sofrendo problemas cada vez mais complexos e o horizonte vai se tornando mais sombrio e ameaçador, continua-se a embalar o berço para que o ninho não se esvazie e siga a juventude com ilusões eternas, enquanto durem. Num contexto desses, é até natural que assuntos do âmbito da família ou da escola tenham que ser decididos por legisladores. Só com lei se imagina restituir a ordem no universo caótico que foi estabelecido. Amarga ilusão... As coisas não chegaram aonde estão por obra do acaso, por meras casualidades. Esses moços, pobres moços, que acham que defendem sua liberdade ao pretenderem usar celular e internet 24 horas por dia, desfrutar todos os diretos da vida adulta sem as consequentes responsabilidades, não sabem o quanto estão indo para o inferno à procura de luz, como diria o sábio Lupicínio Rodrigues.

        Os recentes debates em torno do porte e utilização de celular em sala de aula, faz pensar que poderia ser motivo de semelhante discussão o uso do aparelho em salas de concerto, cinemas e palestras. Afinal, foi muito bem implantada na mente coletiva a idéia de que há uma indispensável necessidade de estar sempre conectado, pronto a receber e transmitir mensagens, independente da importância ou urgente pertinência do assunto. Vivemos hoje numa sociedade controlada pela febre do consumo, sedada por programas televisivos alienantes. Faz-se tudo, menos pensar, refletir, decidir, afinal uma das primeiras vítimas sacrificadas pelo novo sistema foi a Filosofia. Só com o êxodo do raciocínio reflexivo e do hábito de leitura pode ser o mundo dominado pelas ilusões hipnóticas da propaganda e da moda.

        Estamos seguindo o roteiro do Admirável Mundo Novo, no qual o genial Aldous Huxley anteviu nosso presente nos distantes anos de 1930. Logicamente a roupagem era diferente, como seria mesmo se o autor tivesse atualizado seu livro dez anos depois de escrevê-lo, como ele reconheceu em uma edição apenas dez anos posterior, mas ele preferiu respeitar a obra original, deixando-a intacta a remendos. O Mundo Novo de Huxley era dividido rigidamente em castas, convenientemente identificadas por cores, cumprindo um destino definido antes da concepção – feita sob encomenda em tubos de ensaio, sem a participação das perturbações de paixões ou romances. Tudo ficava sob rígido controle do estado. Não foi preciso tanto trabalho para estabelecer um mundo “dominado”. O senhor deste Admirável Mundo Novo não é um estado mundial mas o tirano senhor mercado – que comanda todas as coisas, estabelecendo a ordem das necessidades. As famílias continuam existindo, mas se esvaziaram de suas funções, perderam o poder de sua importância. Seus filhos estão entregues aos representantes do mercado, às macaquices da moda e seus modismos. Já antes de nascerem as crianças são preparadas para o mundo do consumo, pois acima e antes de serem humanos, são potenciais consumidores.

      O mundo da ilusão lúdica mantém a hipnose coletiva de que a vida é feita para se comprar, tudo está ao alcance do dinheiro que se disponha e esta é a única forma de ser feliz. Precisamos precisar, somos a medida do que desejamos. Pouco importa o que somos, mas o que temos ou no mínimo o que aparentamos ter. O “Admirável” Mundo Novo está ai, sendo sacudido por transformações geológicas. É tempo de despertar, de voltar a separar o que importa na vida, do que é secundário; de reaprender a pensar. Hora de acordar: talvez seja este o recado da mãe Terra.
                                            (publicada Jornal Agora - março 2010)

Da Psicologia para o Oceano da Teosofia

“Quando a gente tem uma meta clara e elevada, e ela não é imediata nem estreita, não nos abalamos muito com coisas pequenas de curto prazo, sejam elas 'agradáveis' ou 'desagradáveis'. “ Carlos Cardoso Aveline


Nos 33 anos de formação e enlace com a profissão, estudei várias escolas teóricas, cumpri um longo percurso de descobertas, muita gratificação e alguns punhados de frustrações, que hoje não fazem conta. Quatro meses se passaram desde que encerrei as atividades da clinica de psicologia. Não fiz uma despedida formal e acabei dispensando a comunicação pública do fato. Contra todas as opiniões contrárias, retirei de mim o manto da Psicologia, desvinculando-me de todas as referências e teorias psicológicas, retomando a plena liberdade de meu pensamento.

Foi uma decisão pensada, refletida com profundidade e comunicada a tempo para as pessoas que estavam sendo por mim profissionalmente assistidas. Durante os últimos meses de trabalho me surpreendi com o espanto que minha atitude provocava em muita gente. Parecia algo inacreditável, um completo absurdo que eu decidisse deixar a profissão. Meus pacientes de então percebiam que eu continuava com agenda lotada, indo “muito bem e muito obrigada” com meu trabalho. Talvez por isto o espanto tenha sido ainda maior. Estaria eu doente ou iria rumar para distantes paragens? A maioria me questionou o que eu pretendia fazer, já que a idéia da aposentadoria lhes era chocante.

Eu sabia o que estava fazendo: encerrava uma etapa importante de minha vida, que fora muito gratificante, mas que intuía ser momento de concluir. Tinha clareza de que desejava me libertar dos ditames da profissão, mas não a clarividência do rumo a tomar a partir de então, por isto, diante dos questionamentos, brinquei com hipóteses: disse que aproveitaria o tempo para andar de bicicleta ou simplesmente nada faria, permitindo-me o ócio dos desocupados.

Despojei-me dos gastos sapatos da longa caminhada, doei meus livros e tudo o mais da antiga profissão, com a alma leve e a consciência tranqüila do dever cumprido. Essa voluntária renúncia me permitiu desfrutar a valiosa liberdade de percorrer outros espaços, de beber conhecimentos de outras fontes. Passado pouco tempo, foram surgindo claros os sinais que anunciavam uma nova vida.

Aos sair das trilhas da Psicologia fui viajar sim, mas para o universo distante de novas leituras, foi quando se descortinou diante de mim o Oceano da Teosofia, a milenar Psicologia Asiática, muito anterior a Freud, seus discípulos e seus opositores. Em verdade, foi um reencontro, pois eu já lera pequenos ensaios do assunto quando era muito jovem, antes de ingressar nos estudos da faculdade de Psicologia. A Teosofia oferece a fonte do conhecimento ancestral, transcendente, remetendo para leituras muito antigas, eternas, sempre atuais em seus significados. Mas não se resume às palavras, pois é, acima de tudo e de qualquer palavra, uma atitude vital de altruísmo, de despojamento dos pensamentos ego centrados e de permanente compromisso ético e fraterno. Pode parecer que seja um mundo de sacrifício, mas é o caminho para a duradoura felicidade.
                                                (publicada Jornal Agora 01maio2010)