A liberdade de decidir agoniza, ceifada a golpes de foice diários. No universo coletivo, importantes Comissões de Inquérito funcionam como conclaves daquele trio de macaquinhos cegos, surdos e mudos: ninguém viu, ouviu ou falou coisa alguma. A turma do faz de conta, fiéis escudeiros de seus superiores são apenas marionetes reféns de verdades previamente estabelecidas. Sustentam discursos caóticos para justificarem decisões amparadas em disparates. Saindo dos maus exemplos apresentados pelo festivo andar de cima, percorremos um caminho de obstáculos para garantir o exercício da liberdade de nosso arbítrio.
Vivemos a maior parte de nossas horas ligados num tipo de piloto automático, sem sequer nos darmos conta de milhares de pequenas escolhas que vamos fazendo. Essa economia mental faz com que ao final de um dia recheado de afazeres tenhamos a impressão de absoluto vazio. Não fizemos nada a que pudéssemos atribuir algum sentido. Andamos para lá e para cá, percorremos caminhos rotineiros, dobrando à esquerda, à direita, cumprindo rotinas e compromissos, sem nada pensar. Almoçamos e jantamos indiferentes diante do bombardeio de noticias catastróficas apresentadas pelos telejornais. Se não pensamos, é como se nem existíssemos. Nesse modo de viver nosso livre arbítrio permanece em estado de espera, com aquela lusinha piscante apenas alertando sua existência. Assim se passam a maioria das horas de nossos valiosos dias e os dias de nossa transitória existência.
Mas vez ou outra ligamos nossos sensores para fazer deliberar alguma coisa, para tomar alguma atitude. É aí que se apresentam outras dificuldades. Quando nos escapamos dos automatismos, caímos no universo das escolhas cegas.
Não é fácil decidir neste tempo em que a liberdade está apenas na aparência de coisas apresentadas em linguagem estrangeira, letras microscópicas de rodapé de página ou enigmáticos códigos alfanuméricos. Para complicar um pouco mais, somos estimulados a pensar que podemos ser salvos por alguém que nos conhece melhor do que nós próprios: são os especialistas, consultores e analistas de todas as espécies, que com suas batutas mágicas orquestram escolhas e decisões. E se seguirmos seus sábios conselhos, estaremos a salvo de nós mesmos, embora completamente perdidos naquilo que, em princípio, era a essência da vida: a nossa preciosa liberdade de pensamento.
Estamos ficando demasiada e perigosamente acostumados a lavar as mãos, fechar os olhos, tapar os ouvidos, cruzar os braços e transferir responsabilidades. Será que não é o momento de tentarmos preservar nosso sagrado direito de existir, de fazer nossas escolhas, ainda que disto resulte dar mancadas, cometer equívocos, fazer o papel de Mariazinha ou Joãozinho do passo certo?
A vida é valiosa e precioso é o direito de escolher, desde as menores e mais prosaicas trivialidades do dia a dia, até – principalmente - as questões mais fundamentais, aquelas que podem vir a justificar nossa existência ou comprometer moralmente nossa história. Enquanto tivermos ar para respirar e nos for concedido o dom da lucidez, ainda teremos chances de saber diferenciar a estrada do bem do caminho oposto, obscuro, mas com claros sinais de levar para um rumo nebuloso. Seremos capazes de escolher entre nos associarmos a pessoas iluminadas, transparentes, honestas ou nos juntarmos ao grupo cada vez mais numeroso dos Judas modernos, dos fariseus de gravata, optando neste caso por ancorar a vida numa filosofia de resultados, na qual os fins justifiquem os meios – por piores que sejam estes.
Publicado: Caderno Mulher
Jornal Agora 31/10/2009