sábado, 31 de outubro de 2009

LIVRE ARBÍTRIO

                                  O livre arbítrio está em franca extinção, pelo menos no sentido moral terreno.


     A liberdade de decidir agoniza, ceifada a golpes de foice diários. No universo coletivo, importantes Comissões de Inquérito funcionam como conclaves daquele trio de macaquinhos cegos, surdos e mudos: ninguém viu, ouviu ou falou coisa alguma. A turma do faz de conta, fiéis escudeiros de seus superiores são apenas marionetes reféns de verdades previamente estabelecidas. Sustentam discursos caóticos para justificarem decisões amparadas em disparates. Saindo dos maus exemplos apresentados pelo festivo andar de cima, percorremos um caminho de obstáculos para garantir o exercício da liberdade de nosso arbítrio.

    Vivemos a maior parte de nossas horas ligados num tipo de piloto automático, sem sequer nos darmos conta de milhares de pequenas escolhas que vamos fazendo. Essa economia mental faz com que ao final de um dia recheado de afazeres tenhamos a impressão de absoluto vazio. Não fizemos nada a que pudéssemos atribuir algum sentido. Andamos para lá e para cá, percorremos caminhos rotineiros, dobrando à esquerda, à direita, cumprindo rotinas e compromissos, sem nada pensar. Almoçamos e jantamos indiferentes diante do bombardeio de noticias catastróficas apresentadas pelos telejornais. Se não pensamos, é como se nem existíssemos. Nesse modo de viver nosso livre arbítrio permanece em estado de espera, com aquela lusinha piscante apenas alertando sua existência. Assim se passam a maioria das horas de nossos valiosos dias e os dias de nossa transitória existência.

     Mas vez ou outra ligamos nossos sensores para fazer deliberar alguma coisa, para tomar alguma atitude. É aí que se apresentam outras dificuldades. Quando nos escapamos dos automatismos, caímos no universo das escolhas cegas.

     Não é fácil decidir neste tempo em que a liberdade está apenas na aparência de coisas apresentadas em linguagem estrangeira, letras microscópicas de rodapé de página ou enigmáticos códigos alfanuméricos. Para complicar um pouco mais, somos estimulados a pensar que podemos ser salvos por alguém que nos conhece melhor do que nós próprios: são os especialistas, consultores e analistas de todas as espécies, que com suas batutas mágicas orquestram escolhas e decisões. E se seguirmos seus sábios conselhos, estaremos a salvo de nós mesmos, embora completamente perdidos naquilo que, em princípio, era a essência da vida: a nossa preciosa liberdade de pensamento.

     Estamos ficando demasiada e perigosamente acostumados a lavar as mãos, fechar os olhos, tapar os ouvidos, cruzar os braços e transferir responsabilidades. Será que não é o momento de tentarmos preservar nosso sagrado direito de existir, de fazer nossas escolhas, ainda que disto resulte dar mancadas, cometer equívocos, fazer o papel de Mariazinha ou Joãozinho do passo certo?

     A vida é valiosa e precioso é o direito de escolher, desde as menores e mais prosaicas trivialidades do dia a dia, até – principalmente - as questões mais fundamentais, aquelas que podem vir a justificar nossa existência ou comprometer moralmente nossa história. Enquanto tivermos ar para respirar e nos for concedido o dom da lucidez, ainda teremos chances de saber diferenciar a estrada do bem do caminho oposto, obscuro, mas com claros sinais de levar para um rumo nebuloso. Seremos capazes de escolher entre nos associarmos a pessoas iluminadas, transparentes, honestas ou nos juntarmos ao grupo cada vez mais numeroso dos Judas modernos, dos fariseus de gravata, optando neste caso por ancorar a vida numa filosofia de resultados, na qual os fins justifiquem os meios – por piores que sejam estes.

Publicado: Caderno Mulher
Jornal Agora 31/10/2009                           

sábado, 17 de outubro de 2009

SIM, NÓS ACREDITAMOS!

     Deus é brasileiro, nós dizemos, repetimos e acreditamos. Deus nasceu aqui, Ele é nosso. Pronto!

     Por isso, inventamos coisas que ninguém no mundo pensou e que só aqui funcionam. E se não funcionam plenamente nossas criações geniais, que nos importa? O que vale é que nós acreditamos e nos basta isto. Somos movidos por uma fé inquebrantável.
    Um bom exemplo disto é que criamos o mais fantástico sistema de votação eleitoral. Não precisamos ter a trabalheira demorada de contar, recontar, conferir. Nossas eleições são sem cédulas, pós-modernas, totalmente digitais e nós acreditamos cem por cento na idoneidade de quem fez o programa e em todos que o controlam, pois sabemos que, seja lá quem for, são criaturas de ilibada conduta. Acreditamos, temos total fé em Deus e em nosso infalível, inviolável sistema eleitoral e em todas as gentes que dele se ocupam e que dele dependem.
    Os outros, aqueles alienígenas estrangeiros, vêm aqui, olham, bisbilhotam, mas nada entendem. Eles, criadores de céus e terras, inventores de hardwares e softwares, não conseguem decifrar nossa genialidade. Retornam a seus países, enrolados em sua racionalidade obtusa, incapazes de copiar, de reproduzir nossa agilidade. Continuam votando em grandes cédulas de papel e, pasmem, até lambendo os dedos para contar os votos manualmente. Como podem? Falta-lhes o que temos para dar e vender: falta-lhes fé. São dignos de pena. Eles não acreditam em votos que não sejam palpáveis, contáveis e recontáveis por várias mãos. Pobres povos ricos!
    Na área da Educação, inventamos o originalíssimo vestibular, pois não copiaríamos modelos estrangeiros. Temos mais fé em nosso taco, em nossa bola, em nossa ginga. Por aqui, cada universidade faz de seu jeito e a seu tempo, dando oportunidade para que os estudantes possam viajar pela extensa república dos estados desunidos, tentando exame aqui e acolá, próximo e alhures. Além desse aspecto turístico, o modelo criado possibilitou novos filões no mercado de cursinhos e apostilas. Temos fé de que este é um sistema muito melhor do que o de outras terras e de suas velhacas universidades; o jeito deles não nos serve.
    Sabe-se lá porque, mas ainda com toda a certeza e fé na boa vontade das ordens superiores, surgiu a brilhante idéia de criar mais uma prova, para tornar nosso excelente sistema ainda melhor.
    Na capital desta grande república, um dedicado grupo de especialistas de notório saber pedagógico elaborou um novo sistema de avaliação. A novidade logo foi absorvida, com a total confiança que sempre nos anima. Tudo ia maravilhosamente bem, como já é de nosso costume, até que uns amadores – só mesmo eles – tiveram a imprudente idéia de furtar um exemplar da nova prova. Ora vejamos! Só podiam ser amadores. Profissionais não seriam capazes de tamanha ousadia. Mas eles, meia dúzia de três ou quatro, fizeram a estripulia de tentar puxar nosso tapete, burlando a segurança das câmeras e fazendo escárnio da fé que temos em nossas instituições públicas e nas empresas que, por nos servirem, gozam de idêntico prestígio.
     E como ficaremos agora? Respondo eu sem titubear: ficaremos na mesma.
    Nós continuaremos a acreditar e essa boa fé nos protegerá.
    Nada e ninguém, nenhum escândalo, nenhuma falcatrua, vai nos fazer deixar de acreditar nas idôneas autoridades que nos governam, sempre imbuídas de boas intenções, elevado espírito público e eficientes projetos. Nossa fé canônica os reveste de uma plena e eterna confiança.
    Sim! Nós acreditamos.* Tudo segue absolutamente como antes estava, pois Deus é brasileiro e nossa fé eternamente inabalável.
    Amém!
(*também acreditamos em coelhinho da páscoa, papai Noel, etc,etc)
Publicado Jornal Agora
Caderno Mulher 17/10/2009

sábado, 3 de outubro de 2009

REENCONTRO

     Publicada Caderno Mulher
Jornal Agora 03/10/2009
     Após uma retirada necessária, retorno de uma ausência que eu pensava seria definitiva.


     Há momentos em que a vida nos é apresentada na amplitude de céu de brigadeiro, com amplas latitudes e longitudes existenciais; noutros se fecha o horizonte, restando-nos escassas possibilidades. Como numa prova de colégio, é optar por isto ou aquilo ou ainda aquilo outro. Se nenhuma das três ou quatro alternativas nos servir plenamente podemos fechar os olhos e contar: uni duni tê salame minguê a escolhida foi você. E seja lá o que Deus quiser – e que Ele permaneça conosco em nosso rumo forçado.

    Esses momentos uni duni tê são orquestrados pelo senhor destino, escapam do alcance de nossas mãos e da força de nossa mente. Este senhor instável e poderoso é capaz de traçar inesperadas rotas, estabelecendo novos contornos e fronteiras ao nosso arbítrio, deixando nítida apenas a certeza da fragilidade da existência. É ele quem marca ritmos ao curso dos ventos, brisas e de alguns fortes tornados que vão tocando nossa vida – às vezes de forma saborosamente amena e serena, noutras absurdamente turbulenta. Pois foi o regente dos humores do tempo e da vida quem arbitrou algumas condições muito adversas que me impediram de continuar a prazerosa atividade de escrever.

     Levo a sério minhas decisões, assumo minhas atitudes como se fossem definitivas e irreversíveis, mesmo aquelas que fui constrangida a tomar e que seriam de minha vontade poder modificar.

     Irreversível soa radical, mas, pensando bem, quão poucas são as oportunidades de reverter escolhas importantes? Claro que melhor seria poder ir e vir, quando e como se desejasse, encontrando tudo e todos exatamente como estavam em nossa partida. Não é assim que funciona a vida, tão rápida e transitória. Sob efeito do tempo passado, não fica pedra sobre pedra. Prédios são arruinados, móveis trocados e as pessoas tornam-se outras. Quando nos dispomos a uma ausência, quando nos retiramos, a vida segue seu curso, fluindo por entre as mudanças das cores das estações e nada, absolutamente nada, fica exatamente onde antes estava. Por isto, reverter decisões ou situações pode não ser impossível, mas é, no mais das vezes, algo que precise ser pensado como muito improvável.

     Este pensamento, entretanto, não me impede de manter um quinhão valioso de liberdade, ou de esperança, que me permita a possibilidade de adiante mudar de idéia. Não sou refém de minhas escolhas, aliás, esta é uma das preciosas oportunidades que temos na vida. Incoerente? Não. Tomo decisões com a firmeza de quem tem certeza do que faz e não vai se arrepender do que está feito. Mas se por um capricho da vida ou por algum aprendizado posterior, perceba que posso corrigir ou mudar alguma coisa, porque não o fazer?

     Não confundir este comportamento com aquela atitude de estar “dando um tempo”. Não faço parte da numerosa turma que “dá um tempo”, dos que querem ir sem ir ou ficar sem ficar. Esses pretendem driblar a responsabilidade de escolhas, imaginando assim se esquivarem de suas consequências. Diferente disto é assumir os custos e benefícios do compromisso de decidir e ter a coragem de manter a liberdade de, diante de outra situação ou momento, poder mudar de idéia.

     Dei por encerrado um trabalho, mas passados longos e rápidos dez meses, abriu-se a vida em novas possibilidades e estou retornando. Nesse período muitas coisas mudaram, até a Língua Portuguesa foi alterada e terei que me ajustar a estas e outras transformações.

     Retorno refeita, animada com o incentivo que recebi dos leitores durante minha ausência e muito grata pela oportunidade de voltar.

     É precioso poder reencontrar este espaço e muito bom estar de volta!